O Povo na História do Brasil: Linguagem e Historicidade no Debate Político (1750-1870)
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O Povo na História do Brasil - Luisa Rauter Pereira
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Revisão: Renata Moreno
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Capa: Matheus de Alexandro
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Edição em Versão Impressa: 2016
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Dedico este livro à minha bisavó Cristina Fróes da Costa Barros, uma das pessoas mais inteligentes e perspicazes que já conheci.
O povo tá sabido, o povo tá esperto!
(Luis Inácio da Silva, em um comício em Uberlândia, MG,
nas eleições presidenciais de 2010)
Sumário
Folha de rosto
Página de Créditos
Dedicatória
Epígrafe
Prefácio
Introdução
CAPÍTULO 1
Povo, conceitos políticos e temporalidade histórica: alguns referenciais históricos e analíticos
1. O povo-nação na tradição do pensamento político e social brasileiro
: alguns apontamentos
2. Linguagem e conceitos políticos na modernidade: ambiguidade, refutabilidade e fluidez
3. A temporalidade histórica moderna e os conceitos políticos
CAPÍTULO 2
Povo e temporalidade no antigo regime luso-brasileiro: o século XVIII
1. O conceito político de povo na tradição e na prática política do Antigo Regime luso-brasileiro
1.1 O lugar do povo no corpo
político
1.2 A tradição radicalizada: o retorno da soberania aos povos e o direito de rebelião
1.3 O pombalismo e a tentativa de instauração de uma nova relação entre povos e monarca
1.4 O conceito revolucionário: os povos contra a tirania na segunda metade do século XVIII
2. O processo de dissolução da estabilidade semântica do Antigo Regime
2.1 A questão da plebe colonial
2.2 O conceito de população: uma releitura da questão da plebe colonial
Considerações finais
CAPÍTULO 3
Regeneração, revolução, razão e o estado de civilização do povo: o período da independência (1820-1823)
1. O conceito político de povo no vintismo e a ideia de regeneração
2. O conceito liberal monárquico de povo e o diálogo com a tradição política luso-brasileira
3. Um outro conceito de povo: razão, insurreição e vontade geral
4. Alguns momentos-chave no uso do conceito
4.1 A atuação do povo em praça pública: o dilema da participação política
4.2 Duas formas de entender o lugar do povo no sistema político: a polêmica em torno do tipo de representação do povo brasileiro
4.3 A aclamação do povo-vassalo
4.4 Alguns debates na Assembleia Constituinte de 1823
4.4.1 O debate sobre a sanção real
4.4.2 O debate sobre o poder provincial
4.4.3 Mudar as circunstâncias, mudar o povo: os projetos de José Bonifácio
Considerações finais
CAPÍTULO 4
Revolução, regresso e historicização da linguagem política: o período regencial (1831-1840)
1. A crise do Primeiro Reinado: a eclosão do conceito de povo na luta contra o despotismo
2. Os conceitos moderado e exaltado de povo
3. Os motins urbanos de 1831 no Rio de Janeiro: quem é o legítimo povo?
4. O conceito de povo e a revolução nas províncias
5. Povo, ordem e civilização: a visão moderada a respeito das revoluções provinciais
6. As discussões em torno das leis descentralizadoras
7. O regresso conservador e a formação da tradição política imperial
8. O conceito de povo em algumas obras paradigmáticas da tradição imperial conservadora
9. O conceito de povo em algumas obras paradigmáticas da tradição imperial liberal
Considerações finais
CAPÍTULO 5
Povo e evolução: a geração de 1870
1. A reforma política como forma de transformar o povo: o evolucionismo político
2. A reforma social como forma de transformar o povo: o evolucionismo social e a questão da miscigenação
2.1 Mestiçagem: a chave do conceito sociológico de povo
Considerações finais
Conclusão
Fontes
Referências
Paco
Prefácio
O livro de Luisa Rauter Pereira é um convite para explorar a história do Brasil nos séculos XVIII e XIX a partir de uma perspectiva original, que se propõe analisar os diversos usos e significados que o conceito povo teve no discurso político. Trata-se de um objetivo ambicioso, como pode ser visto, apresentando não poucas dificuldades empíricas e interpretativas. Mas a autora conseguiu contorná-las com êxito e os resultados obtidos estão à altura da sua ambição. Entre os seus muitos méritos cabe destacar: a construção de um extenso corpus que reúne uma grande quantidade e variedade de fontes; o profundo conhecimento que mostra dos diversos momentos analisados e sua historiografia; a utilização inteligente de uma vasta bibliografia histórica, teórica e metodológica; a conexão do seu trabalho com problemas e questões da atualidade e que tem o povo como motivo do debate e reflexão sem que esta vinculação seja algo forçado e tenha um sentido teleológico; e, por último mas não menos importante, um estilo expositivo e uma escrita clara e agradável que o torna acessível a leitores não especializados na história dos séculos XVIII e XIX ou na história conceitual.
A decisão de abarcar mais de um século de debates e reflexões é um dos grandes acertos da pesquisa realizada pela autora, pois dá conta dos diversos usos e significados do povo numa trama extensa da história brasileira, permitindo apreciar assim suas mudanças, mas também a constituição de alguns conceitos que em mais de um caso se mantêm vigentes, ainda que em outros marcos discursivos. O livro oferece, nesse sentido, uma reconstrução precisa e rica em sugestões do processo através do qual foi se constituindo uma representação do povo brasileiro como um sujeito social caracterizado pela miscigenação e diversidade étnica e cultural e por seu caráter pacífico, mas carente de qualidades para agir politicamente. Além do recorte temporal e das qualidades de Luisa Rauter como historiadora, para tal também foi decisivo a abordagem sincrônica e diacrônica baseada na história conceitual que procura analisar as tensões que informam o conceito e suas mutações ao longo do tempo. Desta forma, além de examinar as diferentes concepções e nuances do povo em cada uma das conjunturas, atendendo também a outros conceitos com os quais se articulava como revolução, regeneração ou civilização, o livro também analisa e explica as mudanças conceituais entre meados do século XVIII e final do século XIX e que acompanharam também as profundas transformações sociais, políticas, econômicas e culturais profundas que ocorreram durante esse período.
Sem que a autora tenha deixado explícito, o trabalho tem, por si, a virtude de colocar em evidência algo que a mais recente historiografia brasileira vem indicando no sentido contrário a uma tradição profundamente enraizada: o fato de que a história do Brasil teve características particulares, mas não deve ser pensada como uma exceção. Ao explorar suas páginas, um leitor não brasileiro atenta com facilidade que muitos dos fenômenos e problemas discutidos no livro são semelhantes aos vividos pelos países latino-americanos. Assim, por exemplo, o debate sobre a manutenção ou não das juntas do governo eleito em setembro de 1821 e os argumentos empregados a favor ou contra a centralização do poder são análogos aos utilizados nas disputas entre federais e unitários ou centralistas em outros lugares, como o Rio da Prata, embora em um caso tratava-se de uma monarquia constitucional e no outro de uma república.
Mas, sem dúvida, a característica fundamental analisada no livro que compartilha outras experiências é o debate sobre a capacidade do povo para se constituir em sujeito soberano e atuar na política. Se um dos fundamentos da política contemporânea é a soberania popular, não é menos certo que em numerosas ocasiões do passado e do presente apresenta-se uma profunda desconfiança na capacidade do povo para poder exercê-la. Daí as discussões, com diversas inflexões em cada conjuntura histórica, sobre se um setor da sociedade constitui o verdadeiro povo, se os setores populares devem ser excluídos da cidadania política, se este estado das coisas é apenas um momento na história – seja no Brasil, na América Latina ou na humanidade – que será superado no futuro, etc.
Em resumo, o livro constitui uma contribuição fundamental para traçar uma genealogia do conceito de povo no Brasil. Mas, como todo bom trabalho de história, consegue transcender seu objeto de estudo específico, e contribui para delinear uma história do Brasil em que ocupam, num primeiro plano, seus dilemas e problemas. Neste sentido, constitui numa boa amostra do estado atual da historiografia brasileira, que além de ter um notável crescimento na sua produção, o faz com rigor e com uma destacada produção de jovens pesquisadores atentos aos debates da disciplina e das ciências humanas e sociais, bem como os problemas do presente.
Fabio Wasserman
Instituto Ravignani
(Universidade de Buenos Aires – Conicet)
Introdução
Povo é um conceito de significado fluido e ambíguo, um conhecido exemplo de polissemia na linguagem¹. Esteio do mundo moderno, o conceito de povo esteve no centro de suas grandes invenções políticas, a cidadania, a democracia e a nacionalidade, sendo, portanto, de uso abundante e plural, tanto na linguagem cotidiana quanto nos meios científicos e intelectuais. Pode significar a parte e a totalidade de uma população, tomar acepções positivas e negativas, ser glorificado, depreciado ou mesmo temido. É usado como justificativa para quase tudo na vida política e social, pois é dele que emana, ao menos em teoria, a legitimidade dos governos, assim como os problemas sociais e econômicos. É o ente a que se dirigem políticas públicas, assim como os chamados à ação política e à revolução. O povo é considerado responsável pelos sucessos e fracassos de uma sociedade e é em nome dele que as diversas vozes se elevam na cena pública. O povo é sempre uma questão a ser resolvida, um problema a ser solucionado, uma vez que defini-lo e encontrar os modos de sua efetivação político-institucional é sempre um grande desafio.
Como penetrar e interpretar essa massa semântica tão vasta e diversa? É preciso escolher o que e como observar, isto é, um objeto e uma concepção teórico-metodológica que possa nos amparar na busca pelo sentido em meio à aparente desordem da linguagem cotidiana. Neste emaranhado de significados e usos duas linhas fundamentais parecem se delinear: por um lado o conceito se refere a realidades históricas, sociais, culturais e econômicas, o que se verifica na fala cotidiana em expressões como índole do povo
, cultura do povo
, caráter do povo
e história do povo
, situação do povo
. Neste caso, pode também assumir características negativas, como nas expressões zé-povinho
, povão
, sendo assim associado a uma parte considerada inferior, pela pobreza ou nível educacional e cultural: a chamada plebe, populacho, malta ou canalha. Por outro lado, o conceito pode aparecer como um sujeito de vontade e ação política legítima. Neste caso, o povo assume toda a sua glória, por exemplo, em expressões como vontade do povo
, a soberania do povo
, o povo fez
, o povo unido jamais será vencido
.
São duas vertentes semânticas em constante conflito: se por um lado o povo possui um significado essencialmente político e abstrato, como entidade que detém o poder de decisão e ação políticas, é ao mesmo tempo o portador de características sociais e culturais empiricamente observáveis a que se atribui consequências – positivas ou negativas – para a execução prática de sua vontade no mundo da política. O verbete Povo (Política)
no Dicionário de Ciências Sociais publicado pela Fundação Getúlio Vargas em 1986 não deixou de apontar a presença da contradição entre uma acepção sociológica
e outra político-constitucional
do termo povo. Na primeira, são utilizados critérios de natureza quantitativa, étnica, cultural, linguística, religiosa e econômica para conceituar o povo através de um exame das condições reais em que se apresentam os grupamentos humanos
. Na segunda, o povo é percebido como componente do sistema político e é flagrante a insuficiência da observação de suas condições reais
, isto é, físicas, socioculturais e espirituais. Trata-se neste caso de construções abstratas, uma sistematização de certos elementos extraídos do real, e a partir da qual se elabora uma noção de povo
. Esta dubiedade se faz presente, de acordo com o autor, em diversos contextos históricos, desde a Antiguidade Clássica, passando pela Ilustração francesa, até os dias de hoje.²
É o percurso histórico desta contradição entre as duas construções semânticas, o conceito de povo como princípio abstrato e político e como realidade histórica social, cultural, econômica e empiricamente observável o que nos interessa abordar nesta investigação sobre a história do conceito de povo no Brasil entre as últimas décadas do século XVIII e últimas décadas do século XIX. Acreditamos que na disputa político-social deste período o conceito político e abstrato de povo, cujas origens remontam ao Antigo Regime, tendeu a ser vencido, ou subsumido pela vertente histórico-sociológica, fenômeno que não se restringiu ao caso brasileiro, mas diz respeito à linguagem política do período. É bom salientar que não se trata de um processo unívoco e linear, mas, na verdade, de uma intensa luta política, e é justamente o percurso desta disputa que iremos investigar.
Acreditamos que tal trajetória de disputa semântico-política pode ser entendida por meio de uma macrointepretação que aponta para a historicização da linguagem política como marca do mundo moderno, um conjunto de fenômenos que tiveram seus primeiros contornos delineados na Europa nas últimas décadas do século XVIII. Chamamos de historicização dois fenômenos correlatos: primeiramente, a inserção dos conceitos em concepções processuais do tempo, fenômeno que lhes confere uma profundidade histórico-temporal que não possuíam quando parte de concepções estáticas do tempo características de formas diferentes de conceber e vivenciar a temporalidade. A historicização como marca do pensamento moderno foi uma proposição comum da filosofia e da historiografia alemãs do século XX, que tiveram em nomes como Reinhart Koselleck, Hans Blumenberg, Hanah Arendt e Walter Benjamin alguns exemplos de peso.
Também definimos como historicização dos conceitos políticos seu contingenciamento, isto é, o fato de seus significados passarem a ser extraídos de percepções, análises, diagnósticos e julgamentos da realidade presente, sejam quais forem os pontos de vista que os presidem, deixando de se referir a teorias estáticas, tradições e exemplos históricos edificantes e norteadores da conduta. Podemos chamar este fenômeno, correndo o risco do anacronismo, de realismo sociológico
. Um autor que chamou a atenção para este fenômeno importante no campo do pensamento e das linguagens políticas foi Marcel Gauchet, que em seus estudos sobre Alex de Tocqueville, Guizot e Benjamin Constant apontou a abertura histórica
destes autores, no sentido de que procuraram extrair suas interpretações e propostas normativas para a política de análises da história, fugindo de teorias abstratas³. Estes dois processos que compõem o que definimos como historicização, amplificados no decorrer da segunda metade do século XVIII e especialmente no século XIX, afastaram cada vez mais a conceitualidade política de repertórios semânticos estáticos e a-históricos, trazendo-os para o domínio da temporalidade histórica linear e futurista.
Acreditamos que no Brasil, ao longo do processo de construção e consolidação das ideias e sentimentos nacionais, que se desenvolveu ao longo do século XIX, o princípio histórico-sociológico do povo se tornou especialmente estruturante da forma como os brasileiros entendem a si mesmos, sobrepujando o sentido ligado à ação, à participação nas decisões políticas e à revolução. A autopercepção dos brasileiros como povo-nação se funda ainda hoje em ideias e conceitos ligados à natureza, como raça e meio natural, a elementos específicos da cultura, como a música, o folclore, a dança, ou a sentimentos e índoles
, como a emotividade, alegria e a espontaneidade, o desapego às normas e regras muito rígidas e impessoais. A cristalização deste significado essencialmente sociocultural do povo no Brasil foi fruto de uma história que se confunde com a própria construção do Estado-Nacional e dessa sociedade complexa que chamamos Brasil
. Esta história pode ser entendida como parte de um complexo e conflituoso processo de historicização da linguagem política, que no Brasil assumiu características particulares.
Procuraremos abordar o conceito de povo a partir de seus usos na linguagem política cotidiana pelos diversos grupos políticos e sociais dos contextos analisados, utilizando-nos de materiais diversos, como debates parlamentares e jornais, sem esquecer os grandes textos doutrinários, procurando mapear as falas dos principais grupos políticos articuladores dos principais processos de debates e conflitos do período tratado. Não fizemos uso de um corpus documental homogêneo, selecionando o material a ser analisado de acordo com as especificidades de cada momento histórico abrangido na pesquisa, que faziam de um ou outro tipo o lugar mais apropriado para observar os usos e significados dos conceitos. Procuramos fugir da abordagem que caracteriza a tradição do pensamento social brasileiro que buscou uma substância do povo, própria das construções discursivas do caráter nacional: o que nos interessa são os significados e usos histórica e empiricamente construídos pelos atores políticos em cada momento histórico e o movimento diacrônico de sua transformação.
Por escolha metodológica, privilegiamos a linguagem política mais direta, isto é, tratamos pouco da historiografia e da literatura, embora não deixemos de apontar sua importância e lugar no debate político. A literatura e a historiografia foram o locus privilegiado em que a historiografia intelectual, das ideias e das linguagens políticas procurou perceber a transformação dos conceitos de povo e de nação. De fato, a literatura romântica de meados do século e a literatura naturalista das últimas décadas, assim como a historiografia oitocentista, longe de serem movimentos intelectuais
apenas, tiveram grande papel na reformulação da linguagem política do período em questão. Porém, optamos por deixar esse material em segundo plano, embora reconheçamos a pertinência de sua análise para nossos propósitos desta investigação.
O livro é organizado cronologicamente, iniciando nas primeiras décadas do século XVIII e finalizando por volta de 1880. Entretanto, essa periodização não pretende ser excessivamente rígida. Quando necessário para o esclarecimento de algum ponto de nossa investigação, poderemos recorrer a textos e documentos produzidos um pouco antes ou um pouco depois destes limites. Para facilitar a análise de um período tão vasto da história do Brasil, organizamos os capítulos em subcontextos
, que, acreditamos, expressam as principais fases do debate político e da transformação conceitual que pretendemos por em relevo. Trata-se de unidades destacadas da grande diacronia proposta, onde poderemos realçar o debate político sincrônico de momentos-chave específicos. Não pretendemos cobrir todos os anos desta história. Não hesitamos em deixar espaços em branco, situações e momentos históricos não tratados. Porém, acreditamos que a análise dos quatro períodos eleitos para configurar os capítulos, e os recortes temáticos e documentais feitos para cada um, contém os elementos fundamentais para nossa investigação. Da mesma forma que em relação ao período geral do trabalho, no que diz respeito aos subcontextos
, não os tratamos como unidades estanques, de modo que muitas referências podem extrapolar seu limite de datação.
CAPÍTULO 1
Povo, conceitos políticos e temporalidade histórica: alguns referenciais históricos e analíticos
1. O povo-nação na tradição do pensamento político e social brasileiro
: alguns apontamentos
No Brasil, poucos são os conceitos políticos tão carregados de sentidos como o de povo. Ele parece estar sempre em questão, tendo sido objeto de muitas reflexões no campo intelectual e acadêmico e no plano do senso comum. Um significado chama a atenção: a vinculação cotidiana do conceito de povo à realidade geográfica, étnica e cultural parece ser estruturante. No Brasil, é comum a identificação entre povo e nação, esta entendida de modo cultural, étnico e mesmo natural. Ao se falar de povo, referimo-nos primeiramente à raça, ao clima e aos elementos da nossa natureza, à música, à dança e às artes. Na usual e propagandista imagem do Brasil como terra da mulata, das praias e das florestas exuberantes
fica claro o sentimento de nacionalidade definido quase exclusivamente pelas noções de meio natural e raça.
Esta tendência foi percebida, por exemplo, por Marilena Chauí, quando tratou da representação homogênea que os brasileiros possuem de seu país e de si mesmos
, o que permite crer na unidade, na identidade e na indivisibilidade da nação e do povo brasileiro
⁴. Nesta construção identitária, o Brasil é, sobretudo, um dom de Deus e da Natureza
e não da vontade dos homens que o compõem, o que confere ao nosso sentimento de nacionalidade um caráter pouco político. Na mesma linha, José Murilo de Carvalho aponta o motivo edênico
que permeia nosso imaginário sobre a nação, fenômeno que tem como contraparte a visão negativa do povo como agente político.⁵
A significação que paira no senso comum percebe, portanto, o povo-nação no plano da natureza, distante da ideia de cidadania e da participação política. Esta tendência aparece também em obras clássicas que procuraram entender a substância
ou o caráter
do povo no Brasil. Este é o problema nodal nas obras de um conjunto de autores que nas ciências sociais forma o cânon do pensamento político e social brasileiro
. Trata-se de autores que desde meados do século XIX, mas especialmente no século XX, produziram grandes narrativas interpretativas da história e da sociedade brasileira, obras que, muitas vezes, transcenderam o debate intelectual, criando consensos em torno de políticas de Estado e movimentos amplos de opinião pública.
Este conjunto de autores se dedicou a procurar as raízes, o elemento primordial do povo-nação no Brasil através da análise histórica e sociológica. Esta busca pela substância do povo brasileiro levou em grande medida à percepção da ausência de povo
, no sentido da falta de um povo cidadão apto à participação política. Esta ideia da ausência já havia perpassado os escritos de viajantes estrangeiros como o francês Auguste de Saint-Hilaire, que esteve em terras brasileiras na primeira metade do século XIX. Segundo suas primeiras impressões havia um país chamado Brasil, mas absolutamente não havia brasileiros
. No mesmo espírito, Gustave Aimard afirmou em 1892 que no Brasil não há um povo
⁶. Assim como estes viajantes, um importante grupo de intérpretes do Brasil produziu em diferentes contextos diagnósticos da ausência do povo, no sentido de um conjunto de cidadãos organizados e conscientes de seu papel político, de uma opinião pública esclarecida e virtuosa, e apostaram que no Brasil somente o Estado poderia ser o agente das transformações de que o país necessitava. Em outras palavras, por sua formação racial, cultural e histórica, o Brasil não possuía um povo-nação com índole condizente com a de povo-cidadão. Nas próximas páginas, percorreremos alguns importantes intelectuais do século XX que desenvolveram tal tópico.
Já nos primórdios do século XX, Euclides da Cunha (1866-1909) apontou, referindo-se à nossa independência, que somos o único caso histórico de uma nacionalidade feita por uma teoria política
⁷, isto é, que nos tornamos um estado nacional sem que tivéssemos uma sociedade, um povo-nação constituído racial e culturalmente, que pudesse nele se refletir. O Brasil estava destinado a produzir no futuro um tipo antropológico nacional singular, o que já estaria ocorrendo nas populações esquecidas dos sertões. Mas, naquele momento, para o autor, o estado de nosso povo e de suas tradições era ainda muito incipiente, de modo que a intervenção firme do Estado sempre fora muito bem-vinda para evitar um liberalismo radical e sem base social.
Na mesma linha, Alberto Torres (1865-1917) em 1902 apontou que este Estado não é uma nacionalidade, esse país não é uma sociedade, essa gente não é um povo
. O Brasil teria uma unidade política e um patriotismo fortes, mas de viés lírico e infantil, sem a lucidez da razão e a energia do caráter
⁸, isto é, desprovido da comunidade de relações e de interesses morais, sociais e econômicos, para além de um mero laço afetivo. Tornava-se premente para o autor desenvolver o civismo e a o regime de opinião
em nosso povo, tarefa que somente a força do Estado poderia fazer, auxiliada por uma intelectualidade voltada para a observação e a solução dos problemas nacionais.
Capistrano de Abreu (1853-1927), em seu Capítulos de História colonial, publicado em 1907, viu nos primórdios da formação brasileira uma pura falta e ausência, ideia que fortaleceu a concepção da falta de povo no Brasil. Em seu diagnóstico, não havia uma sociedade, um povo realmente constituído, com um sentido de público e de consciência nacional, mesmo que rudimentar. Referindo-se aos três séculos de colonização portuguesa, observou que seu legado não foi nada além de:
cinco grupos etnográficos, ligados pela comunidade ativa da língua e passiva da religião, moldados pelas condições ambientes de cinco regiões diversas, tendo pelas riquezas naturais da terra um entusiasmo estrepitoso, sentindo pelo português aversão ou desprezo, não se prezando, porém uns aos outros de modo particular.⁹
É com Oliveira Vianna (1883-1951) que temos uma das maiores expressões desta interpretação da ausência do povo no Brasil e da necessidade de sua construção pela ação política de uma elite. Sua maior contribuição, a nosso ver, foi a ideia de que a ausência de um povo no Brasil pode ser entendida pela função simplificadora do domínio rural
¹⁰, impedindo que se desenvolvessem laços de solidariedade fortes e duradouros. O grande latifúndio monocultor teria excessiva autonomia e independência, o que impediu a formação de uma burguesia comercial, industrial e uma vida urbana. Freou a formação de uma classe média de pequenos proprietários poderosos e mesmo uma classe de trabalhadores livres do campo com alguma autonomia, de modo que estes permaneceram fragilizados ou dependentes dos grandes senhores. A singularidade do Brasil viria, portanto, do fato de ter como célula de sua formação o grande domínio rural, uma realidade estranha, por exemplo, à sociedade anglo-saxã. A existência de um povo dependia, para Vianna, da existência de verdadeiros laços sociais entre os segmentos da sociedade, o que só pode ocorrer plenamente com fundamento na cooperação econômica. Sendo esta muito tênue, o tipo de solidariedade que uniu nossa população foi a patronagem política
, isto é, a solidariedade entre as classes inferiores e a nobreza rural. Trata-se de um tipo de solidariedade afetiva, familiar, produto do medo e da impulsividade, e não uma solidariedade fundada na necessidade objetiva e material. Um dos produtos históricos importantes da grande propriedade rural foi a mestiçagem entre brancos, negros e índios. Vianna sugeriu, entretanto, que por mecanismos de seleção étnica e por salutares preconceitos
, uma aristocracia ariana permaneceu pura, preservando os bons valores frente à mestiçaria corrompida. Esta aristocracia formou o centro do poder político-estatal, destinado a conduzir de cima e reformar esta sociedade sem povo
.
Em 1939, Nestor Duarte (1902-1970) também diagnosticou em nossa história a deficiência na formação de um povo e a consequente tendência em nossa vida política a construir com a lei antes dos fatos
. Para o autor, ante a realidade do Brasil, o papel do Estado não é refletir e conservar tal ou qual ambiência, mas assumir a função de reformar, criar, educar um povo
.¹¹ Duarte, entretanto, não conclui pela necessidade de um Estado autoritário como a maioria dos autores. Ao contrário, para ele era a vida democrática que poderia transformar a apatia política em que vive nossa população.
Azevedo Amaral (1889-1950) também se debruçou sobre a questão da relação entre as formas orgânicas de sociedade
e a organização política
. O autor apontou a artificialidade do mundo político, marcado pela importação de modelos estrangeiros e sua aplicação a um povo inadequado a recebê-los. Durante toda sua história como país independente, os genuínos representantes da sociedade, os produtores rurais, foram reiteradamente afastados do poder político. No lugar destes, uma classe parasitária
e inadequada à política
de mestiços tomou a atividade pública. A República foi um momento em que os grupos econômicos assumiram sua devida função de dirigentes. Porém, mais uma vez houve contradição com a realidade nacional: a Constituição Liberal de 1891 fora excessivamente democrática, incondizente o estado do povo, que exigia regimes ditatoriais como imperativos de salvação pública
de massas falidas
.¹²
Na década de 1930, com Francisco Campos (1891-1968), a tese que atribuía ao Estado a força propulsora da mudança frente ao povo incapaz, inerte ou inexistente chegou ao ápice. A questão da relação entre o caráter do povo brasileiro e a institucionalidade política perdeu a importância, embora em alguns momentos o autor declare que o Estado Novo de 1937 é a forma de governo ajustada à nossa índole, e em continuidade com as nossas tradições
¹³. A política foi vista como o lugar da pura dominação e não da projeção do que a sociedade é objetivamente. Era o domínio da pura irracionalidade, da mobilização da massa pela personalidade do líder e pelo mito da nação. O povo em Francisco Campos não possuía qualquer singularidade positiva ou negativa que deva ser analisada, oriunda de sua história ou composição racial: era apenas massa
a ser governada.
Com a criação da USP em 1934¹⁴ cresceu a influência do marxismo no meio intelectual nacional. O Seminário Marx (1958-1964) e a influência pessoal de Caio Prado Júnior (1907-1990) contribuíram fortemente para isso. Caio Prado, em seu Evolução Política do Brasil, de 1933, procurou se valer de um método novo, o materialismo histórico, com o qual denunciou