O legado educacional do Século XX no Brasil
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Rosa Fátima de Souza
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O legado educacional do Século XX no Brasil - Dermeval Saviani
2004
O Legado Educacional do
Longo Século XX
Brasileiro
Dermeval Saviani
Professor emérito da UNICAMP, pesquisador emérito do CNPq, coordenador geral do Grupo Nacional de Estudos e Pesquisas HISTEDBR e professor titular colaborador pleno da Pós-Graduação em Educação da UNICAMP
Orecurso à categoria século
para datar e demarcar os acontecimentos e as fases históricas é uma prática recorrente entre os historiadores, especialmente quando o objeto de estudo incide sobre as épocas moderna e contemporânea. Assim é, também, no campo da história da educação. Sem aprofundar essa questão, apenas à guisa de ilustração, menciono o livro de Luzuriaga (1959), História da educação pública, em que ele se refere à educação pública religiosa
que teria predominado nos séculos XVI e XVII, sendo sucedida pela educação pública estatal
no século XVIII, que teria dado lugar à educação pública nacional
no século XIX, culminando com a educação pública democrática
no século XX. Igualmente no livro História da educação e da pedagogia, o mesmo Luzuriaga (1973) distribui o conteúdo em vinte capítulos tratando da educação primitiva, oriental, grega, romana, medieval, humanista e religiosa, mas, a partir daí, introduz a categoria século
abordando a educação e a pedagogia nos séculos XVII, XVIII, XIX e XX. O mesmo procedimento é adotado por Manacorda (1989) no livro História da educação: da Antiguidade aos nossos dias. Após estudar a educação no antigo Egito, na Grécia, em Roma, na Alta e na Baixa Idade Média, passa a tratar da educação no trezentos e no quatrocentos
(séculos XII e XIII), no quinhentos e no seiscentos
, no setecentos
, no oitocentos
, para chegar, finalmente, ao capítulo X, que versa sobre o nosso século em direção ao ano dois mil
. Um último exemplo: Franco Cambi (1999), História da pedagogia. O livro está dividido em quatro partes. A primeira trata da educação no mundo antigo
e a segunda versa sobre a educação na época medieval
. Já na terceira parte, que trata da época moderna, após o primeiro capítulo versando sobre as características da educação moderna
, sucedem-se quatro capítulos que abordam, respectivamente, os séculos XV, XVI, XVII e XVIII. Finalmente, a quarta parte aborda os séculos XIX e XX.
O século XX, mesmo antes de seu término cronológico, já fora objeto de análises que procuravam apreendê-lo em seu conjunto, na tentativa de efetuar um balanço de sua trajetória e significação histórica. A esse respeito chamam a atenção duas obras cujos títulos aparentemente se contradizem. Trata-se de Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991), de Eric Hobsbawm (1995), e O longo século XX, de Giovanni Arrighi (1996). Ambas foram publicadas na Inglaterra em 1994.
Hobsbawm toma como eixo de sua análise a questão política à luz da qual o século XX resulta breve
em contraposição ao longo século XIX
, no qual o autor identifica três momentos: a era das revoluções (1789-1848), a era do capital (1848-1875) e a era dos impérios (1875-1914). Por sua vez, no breve século XX
o autor também distingue três momentos: a era da catástrofe (1914-1947), a era de ouro (1947-1973) e a era do desmoronamento
, da instabilidade e das crises (1973-1991).
Diferentemente, Arrighi toma como eixo de sua análise a problemática econômica. Sua motivação inicial era compreender a crise mundial da década de 1970. Os primeiros estudos levaram-no a situar essa crise como o terceiro e último momento de um processo que se iniciou com a Grande Depressão de 1873-1896
e teve continuidade na crise de 30 anos de 1914-1945
. A primeira crise corresponde ao desmoronamento do sistema inglês de acumulação de capital em escala mundial com a correspondente ascensão do sistema norte-americano. Para compreender esse processo o autor foi levado a estudar o conjunto do sistema capitalista em seu desenvolvimento ao longo de toda a época moderna. Inspirado em Braudel, Civilisation matérielle, économie et capitalisme, Arrighi conceituou o longo século XX
como o último de quatro séculos longos, estruturados de forma semelhante, cada qual constituindo uma etapa específica do desenvolvimento do moderno sistema capitalista mundial
(ARRIGHI, 1996, p. x). Com isto, chegou à conclusão que a análise comparativa desses séculos longos
traria mais revelações sobre a dinâmica e o provável desfecho futuro da crise atual do que uma análise aprofundada do longo século XX como tal
(idem, ibidem). Os quatro séculos longos
referidos abrangeriam seis séculos cronológicos, cobrindo toda a evolução do sistema capitalista, de suas origens ao momento atual, abarcando os ciclos de acumulação genovês (do século XV ao início do XVII), holandês (do fim do século XVI a quase todo o XVIII), inglês (da segunda metade do século XVIII até o início do XX) e norte-americano (dos anos de 1870 até os dias atuais). Vê-se, assim, que os quatro séculos longos
se superpõem cronologicamente em suas fases iniciais e finais.
Quando voltamos os olhos para a situação brasileira, parece-me que a ideia de um longo século XX
não deixa de exercer uma certa atração. Com efeito, as transformações mais decisivas do nosso país nos planos econômico, político, social, cultural e educacional parecem situar-se nas duas décadas finais do século definido cronologicamente pelo número XIX e não na virada cronológica para o século XX ou na Primeira Guerra Mundial. Assim, se optássemos pela categoria breve século
, teríamos de deslocar o início do século XX brasileiro para 1930. Mas a explicação desse marco inaugural nos obrigaria a recuar aos anos de 1880, pois é nesse momento que foram gestadas as condições que desembocaram nas transformações condensadas na expressão Revolução de 1930
. Senão, vejamos.
Do ponto de vista econômico, no último quartel do século XIX a cultura do café consolidou-se como, se não o único (monocultura), o principal produto de exportação: a produção brasileira, que havia aumentado de 3,7 milhões de sacas (de 60kg) em 1880-1881 para 5,5 em 1890-1891, alcançaria em 1901-1902 16,3 milhões
(FURTADO, 1982, p. 177). Beneficiado pelos altos preços e pela situação de quase monopólio de que usufruía o país no mercado internacional, o café propiciou um alto grau de capitalização que, com a crise mundial do final dos anos de 1920, foi o fator básico da industrialização do país segundo o modelo de substituição de importações
que marca a nova fase vivida pelo Brasil inaugurada com a Revolução de 1930.
Pelo aspecto social, as transformações mais significativas também datam do final do século XIX: a Abolição da escravatura em 1888, o incremento da imigração que passou, apenas no estado de São Paulo, de 13 mil imigrantes europeus nos anos de 1870 para 184 mil no decênio seguinte e 609 mil no último decênio do século
(idem, p. 128) e o surgimento, também nas duas últimas décadas do século XIX, de novos grupos de pressão sobre o setor exportador, destacando-se a classe média urbana – empregados do governo, civis e militares, e do comércio – os assalariados urbanos e rurais, os produtores agrícolas ligados ao mercado interno, as empresas estrangeiras que exploram serviços públicos
e os nascentes grupos industriais
(idem, p. 172).
No âmbito político assinala-se a queda da Monarquia e a instalação do regime republicano em 1889.
Quanto ao aspecto cultural, vale o registro, tantas vezes lembrado, do depoimento de Silvio Romero, para quem um bando de ideias novas esvoaçou sobre nós de todos os pontos do horizonte […]: positivismo, evolucionismo, darwinismo, crítica religiosa, naturalismo, cientificismo na poesia e no romance, folclore, novos processos de crítica e de história literária, transformação da intuição do Direito e da política
(apud BOSI, 2002, p. 166). Foi esse o clima cultural que marcou as três últimas décadas do século XIX. A literatura, especialmente a poesia, ajusta seus registros aos novos temas
, que eram, em termos específicos do Brasil, a escravidão, que desembocou na Abolição em 1888, o regime político, que resultou na implantação da República em 1889, a questão religiosa, que opunha a renovação católica ao poder político e à maçonaria, e a questão militar, isto é, o problema da ingerência dos militares nos assuntos políticos; em termos gerais, os temas comuns a todos os países eram: a emancipação da mulher, a democracia, o trabalho, a distribuição da riqueza
(PICCHIO, 1997, p. 303). Em suma, os anos de 1880 e 1890 marcaram uma tomada de consciência realista
(idem, p. 251) protagonizada por uma plêiade de escritores que mereceram de Alceu Amoroso Lima a seguinte