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Mortes no Arpoador
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E-book113 páginas1 hora

Mortes no Arpoador

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Sobre este e-book

Seria apenas mais um dia de sol na orla carioca se o corpo de uma menina não fosse desenterrado na praia. A criança era neta de um homem muito poderoso. Sua morte pode estar ligada a outros crimes e a um passado que o Rio prefere esquecer.

Um assassino está à solta e não parece disposto a parar. Quem segue suas pistas é uma jornalista escolada nas nuances e contradições da Cidade Maravilhosa. Em seu caminho, vai cruzar com um misterioso surfista, um calejado profissional do Instituto Médico Legal, um sobrevivente da luta armada contra a ditadura, um líder do tráfico e outros personagens que podem ajudar a desvendar a trama. Ou tornar tudo ainda mais tortuoso e ameaçador.
IdiomaPortuguês
Editorae-galáxia
Data de lançamento4 de jul. de 2018
ISBN9788567080277
Mortes no Arpoador

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    Mortes no Arpoador - Monica Lams

    "… nothing can be proven except that it be made to bleed.

    Virgins, bull, men. Ultimately God himself."

    Cormac McCarthy

    O corpo da menina, em posição fetal, preenchia quase todo o baú de plástico. Ela parecia dormir, mas a temperatura e a rigidez do corpo mostravam que estava morta há algum tempo. Tinha seis, sete anos de idade.

    O sol abria caminho por trás das pedras do Arpoador, enquanto os barraqueiros desencavavam grandes caixas escondidas na areia da praia, como faziam todas as manhãs. Era ilegal usar a areia como depósito, mas também era a norma. As caixas de plástico ou isopor eram usadas para guardar os estoques de bebidas que abasteceriam os banhistas durante o dia. A criança havia sido colocada em uma delas.

    Os gritos do comerciante atraíram a atenção dos frequentadores matinais da praia: barraqueiros, pescadores de linha, moradores de rua, boêmios, madrugadores. Um surfista fincou a prancha na areia e andou na direção do homem que gritava. Enquanto caminhava, retirou a parte superior do macacão de neoprene que ficou balançando, presa à sua cintura, feito caça abatida. Ele se curvou e estendeu a mão para dentro do baú, como se para tirar a temperatura da menina morta. Então deu as costas, desenterrou a prancha e caminhou pela areia úmida em direção ao Arpoador.

    Terceira Laje

    Terça-feira

    Nina, acorda, é urgente. Nina Petere! Levanta!

    Na secretária eletrônica, às sete horas da manhã, a voz do meu editor Ludi Baptista, vulgo Ludi Pela-Saco, soava dois tons acima de seu soprano habitual. Impossível ignorar.

    Estou acordada. Quase.

    A apuração captou uma parada espantosa na frequência da polícia. Uma das atividades mais assíduas do jornalismo criminal é monitorar a comunicação dos agentes da lei sintonizando as faixas da polícia, bombeiros e Defesa Civil. Acabaram de achar o corpo de uma criança no Posto 8. Pausa dramática. Num daqueles baús que os barraqueiros escondem na areia à noite.

    O horror.

    A menina era aluna do colégio de bacanas perto do Arpoador. Um segurança da escola esteve lá e reconheceu o corpo. Maria Eduarda Basso. Neta do Zé Basso, porra! Ia lanchar com o avô no hotel Fasano, ali ao lado, mas sumiu. O cadáver dela foi encontrado hoje cedo. O povo da Delegacia Antissequestro mal teve tempo de se mexer.

    Zé Basso. Ex-guerrilheiro, ex-político de esquerda, atual lobista, recordista absoluto em plásticas, implantes capilares, botox e tráfico de influência. Despertei.

    Na cena do crime, filtrada pela maresia, os policiais da Delegacia de Homicídios acabavam de cercar o perímetro ao redor da caixa plástica. Os curiosos já haviam pisoteado a areia mole, dificultando a vida dos peritos. Anos de experiência na reportagem policial me ensinaram que, nessas horas, o melhor a fazer é esconder o bloco de anotações e agir como quem está de passagem. Nesses tempos em que as pessoas vendem a própria mãe por um pouco de visibilidade, alguns fragmentos de conversa podem revelar bem mais do que o depoimento de uma testemunha disposta a tudo para ter o nome publicado no jornal do dia seguinte. Aparentando um interesse difuso, entreouvi uma vendedora de empadinhas dizendo que o médico que acompanhou a remoção do corpo acreditava que a morte da menina tinha acontecido há aproximadamente oito horas. Haveria tempo para checar os fatos mais tarde, na redação. Pedi um mate no quiosque mais próximo, pretexto para escutar a conversa dos vendedores. Os dois homens falavam sobre o surfista e a sua tatuagem.

    Eu acredito na força dos clichês. Uma onda grande cobrindo as costas de um surfista ipanemense. Visualizei a imagem no mesmo instante. Era familiar, mas eu precisava saber um pouco mais sobre ela. Paguei o mate e caminhei até uma sonolenta lan house escondida numa antiga galeria da Visconde de Pirajá, onde pesquisei e achei tudo o que precisava saber sobre a Grande onda de Kawagana, a xilogravura do japonês Hokusai, mestre do período Edo. Fiz minhas orações para São Google pela graça alcançada e pedi ao atendente uma impressão de boa qualidade. O dia prometia ser longo e me preveni devorando um açaí com granola na loja de sucos na esquina da praça General Osório. Não costumo sentir fome pela manhã, mas um alvorecer na praia, com ou sem cadáveres, tem o dom de abrir meu apetite.

    Eu sabia que um dos mais conhecidos tatuadores cariocas tinha um ateliê ali perto, na galeria River. O homem tornou-se semifamoso quando um yakuza foi encontrado morto no banheiro feminino da Rodoviária Novo Rio anos atrás. Os conhecimentos do tatuador ajudaram a desvendar a origem das belas imagens que cobriam o corpo do defunto com a ponta do mindinho cortada. O crime nunca foi solucionado.

    A River é um claustrofóbico conglomerado de lojas de surfe, skate e roupas esportivas situada num ponto equidistante entre o Arpoador e o Posto 6. Foi construída nos anos setenta e atravessou um período de decadência até que um belo dia, por um dos habituais caprichos cariocas, passou a ser reverenciada como o berço da cultura do surfe na cidade. Theo era o nome do sujeito com quem eu devia conversar, e precisava fazer isso antes que a morte da neta de Zé Basso virasse notícia. Ainda não eram dez horas da manhã, portanto, a loja estaria fechada, mas decidi esperar do lado de fora e torcer para que o proprietário cumprisse o horário comercial. Não foi má ideia, já que os trabalhos mais recentes da Theo Tattoo estavam expostos na parede em frente à loja, cuja porta era protegida por uma porta de alumínio de enrolar, enferrujada pela maresia. A Grande onda não estava entre as imagens expostas, mas não desanimei. Enquanto apreciava aquela vasta extensão de peles pintadas e começava a me sentir meio nauseada pela combinação dos cheiros de mofo, mar e comida que impregnavam a River, Theo surgiu às minhas costas, sem ruído. Conseguiu me surpreender.

    E aí, vamos entrando?

    O tatuador seria uma figura paternal desde que se ignorasse os intimidadores rabiscos coloridos que cobriam seus braços até as mãos. O lado esquerdo era o mais estampado. A pele do homem era clara e desprovida de sardas, ideal para tatuagens. Usava a cabeça raspada, óculos sem aro e uma camiseta branca recém-lavada. Tentáculos ameaçadores emergiam sob a gola puída e se enrodilhavam ao redor do pescoço. Tive a sensação de que um polvo tentava puxar a cabeça dele gola abaixo. Sem se apressar, Theo abriu a porta do ateliê e acendeu as luzes frias, revelando um espaço asséptico como um consultório médico.

    "Nada de posters dos anos setenta, luzes coloridas ou incenso para disfarçar aromas indevidos?"

    Decepcionada?

    De modo algum. Considero sinais exteriores de rebeldia uma grande bobagem.

    "Então, imagino que não tenha vindo até aqui para se tatuar, fazer um piercing ou colocar um alargador de lóbulo. Eu trabalho no ramo da rebeldia. E você? Qual é sua desculpa para estar aqui?"

    Não quero nada com tatuagem. Mas preciso que você me fale sobre um tatuado. Desenrolei com cuidado a impressão da Grande onda de Kawagana, que Theo olhou por um nanossegundo.

    Kokusai, o favorito dos surfistas.

    "Como te disse, estou procurando um deles. Com uma tattoo igual a essa ocupando toda a extensão das costas. Ele foi visto pegando onda no Posto 8 antes das sete. Era muito cedo, portanto, imaginei que ele morasse por perto. Calculei que tivesse feito a tatuagem aqui mesmo."

    Por trás das lentes grossas dos óculos de Theo, o brilho disfarçado de uma sinapse.

    Faz sentido. Mas por que é que eu deveria te fornecer informações sobre um dos meus possíveis clientes, ainda mais a essa hora da manhã?

    "Desculpe. Meu nome é Nina. Nina Petere. Sou jornalista e preciso muito falar com ele. Se isso acontecer nos próximos trinta minutos, você leva de presente uma sensacional print do Kokusai e o surfista misterioso ainda concorre

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