Performance, recepção, leitura
De Paul Zumthor
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Sobre este e-book
No livro, Zumthor delineia conceitos como performance, movência e nomadismo; estabelece diferenças entre oralidade e vocalidade; e aproxima poética, história e ficção. Há, ainda, um capítulo em que o autor se detém no corpo e em suas relações com a leitura e a performance. Tudo isso com uma atitude teórica inovadora que se vale tanto de textos transmitidos pela oralidade, quanto de textos consumidos pela cultura de massas e produzidos pela vanguarda dos estudos da performance.
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Performance, recepção, leitura - Paul Zumthor
Ferreira
DA PALAVRA E DO ESCRITO
PRIMEIRA QUESTÃO:
aspecto interdisciplinar de seus trabalhos sobre a voz
A pesquisa que venho desenvolvendo há uma dezena de anos e de que a Introdução à poesia oral significou o primeiro resultado, situa-se de fato num cruzamento interdisciplinar.¹ Eu o compreendi desde o início e aceitei o risco que isso comporta: o de trabalhar em setores em que minha competência é limitada (como a etnologia), de segunda mão. Dediquei bastante tempo para me iniciar em disciplinas que muitas vezes me eram estranhas, como a acústica. É fato que a voz é hoje objeto de estudo para numerosas ciências, ainda dispersas: a medicina (pensemos nos trabalhos do Dr. Tomatis), a psicanálise (já há uma extensa bibliografia sobre o tema), a mitologia comparada (de maneira ainda muito parcial), a fonética (um belo livro de Fonagy surgiu há alguns anos) e, indiretamente, mas com grande pertinência, a linguística, em muitos de seus desenvolvimentos pós-estruturalistas, a pragmática, a análise do discurso, a teoria da enunciação. Foi, aliás, pela linguística que comecei minha pesquisa. Acrescente-se, quanto ao semiológico, tudo que concerne às formas de comunicação interpessoal; enfim, a sociologia das culturas populares (em autores como Ginzburg ou Burke) bem como a história das tradições orais.
Pode-se notar que essas diversas ciências não tiveram por objeto a própria voz, mas a palavra oral. Muitas vezes foi preciso modificar ou ampliar a perspectiva. O que muito me ajudou nisso foi o fato de que o interesse pela voz ultrapassa o domínio científico: basta ver a grande quantidade de números especiais em revistas (em particular na França e nos Estados Unidos) consagrados à voz, a partir de 1980. Além disso, não se ignora o movimento que, desde o início do século XX, compele os poetas a realizarem vocalmente sua poesia. Foram as diversas formas de poesia sonora que, inicialmente, levaram-me ao estudo científico
da voz.
Esta palavra (talvez abusiva), científica
, nos remete à questão da constituição de uma ciência global da voz. Global: de fato, a voz humana constitui em toda cultura um fenômeno central. Colocar-se, por assim dizer, no interior desse fenômeno é ocupar necessariamente um ponto privilegiado, a partir do qual as perspectivas contemplam a totalidade do que está na base dessas culturas, na fonte da energia que as anima, irradiando todos os aspectos de sua realidade.
Poderíamos, é verdade, nos exprimir nos mesmos termos a propósito da língua como tal. Intencionalmente, operei um desvio da própria língua para seu suporte vocal, tomando este último como realizador da linguagem e como fato físico-psíquico próprio, ultrapassando a função linguística.
Segundo desvio: depois de ter inventariado os dados gerais do problema da voz e da palavra, concentrei minhas preocupações nas formas não estritamente informativas da palavra e da ação vocal, e interroguei-me sobre a palavra e a voz poética
: sobre seus usos possuindo uma finalidade interna e uma formalização adequada a essa finalidade.
Essa estratégia coloca em termos particulares a questão metodológica da análise e da síntese. Gostaria, neste ponto, de remeter a meu livro, Falando de Idade Média. Ele se dedica, decerto, principalmente às pesquisas históricas: mas creio poder daí extrapolar o pensamento principal. Mais do que opor análise e síntese, erudição e interpretação, tendo a propor uma alternância do particular e do universal (ou pelo menos do geral), mas com esta importante reserva: a de que o ponto de vista inicial que faz deslanchar o processo de confirmação, e, se aí couber, o de prova, é da ordem da percepção poética e não da dedução. Esse é um ponto capital de importância epistemológica.
SEGUNDA QUESTÃO:
como definiria suas pesquisas em relação aos estudos literários?
Acabo de falar da necessidade de uma ultrapassagem (com toda prudência) das disciplinas particulares, tendo em vista uma apreensão mais global do objeto. Da mesma perspectiva, parece-me necessário quebrar também o círculo vicioso dos pontos de vista etnocêntricos, e, no caso da poesia, grafocêntricos.
Foi a propósito da Idade Média que se colocou para mim a questão da vocalidade. Os medievalistas dos anos 1960 e 1970 gostavam de polemizar sobre isso para saber se, e em que medida, a poesia medieval tinha sido objeto das tradições orais. Era um ponto válido de informação, mas que em nada alcançava o essencial, isto é, o efeito exercido pela oralidade sobre o próprio sentido e o alcance social dos textos que nos são transmitidos pelos manuscritos. Era preciso então se concentrar na natureza, no sentido próprio e nos efeitos da voz humana, independentemente dos condicionamentos culturais particulares… para voltar em seguida a eles e re-historicizar, re-espacializar, se assim posso dizer, as modalidades diversas de sua manifestação.
Nessa tarefa de desalienação crítica, o que tenho de eliminar logo é o preconceito literário. A noção de literatura
é historicamente demarcada, de pertinência limitada no espaço e no tempo: ela se refere à civilização europeia, entre os séculos xvii ou xviii e hoje. Eu a distingo claramente da ideia de poesia, que é para mim a de uma arte da linguagem humana, independente de seus modos de concretização e fundamentada nas estruturas antropológicas mais profundas.
Foi dessa perspectiva que me coloquei o problema da poesia vocal (insisto no adjetivo) e afastei os pressupostos ligados à expressão, infelizmente frequente, literatura oral
.
TERCEIRA QUESTÃO:
a oposição entre palavra oral e escrita constitui uma simples antítese retórica ou se refere a diferenças irredutíveis?
Parece-me, hoje, evidente que a dicotomia oral/escrito, proposta por McLuhan há quarenta anos, e, depois, de forma mais sutil por Walter Ong, nos anos 1970, não pode ser mantida rigorosamente como tal. No que concerne à minha posição pessoal, vou fazer comentários de uma outra ordem, mas ambas se conjugam, porque a primeira designa a base subjetiva da segunda.
Embora eu seja um homem da escrita por profissão (e em certa medida sinto-me e quero-me um escritor), sempre experimentei um interesse afetuoso, e, às vezes, uma paixão pela voz humana, ou mais, pelas vozes, porque elas são por natureza particulares e concretas. Na conclusão do meu Introdução à poesia oral deixei-me levar por uma espécie de confidência sobre esse ponto, mas o livro inteiro, quase sem que eu o tenha pretendido, deixa-se explicar por suas últimas páginas, presentes nas entrelinhas desde o começo. Sem dúvida, o leitor aí percebe, subjacente, como a nostalgia de um calor e de uma liberdade que são as de uma infância (quase) perdida, de uma história (quase) passada.
Não sou absolutamente ingênuo quanto a esse sentimento, mas estou persuadido de que tais disposições interiores não podem ser rechaçadas sem prejudicar (contrariamente ao preconceito positivista) o funcionamento da inteligência crítica.
Professei sempre a opinião de que, nas ciências humanas (qualquer que seja o objeto de estudo), a maior parte dos fatos se situa ao longo de uma escala que leva de um termo extremo a um outro. Por vezes, esses termos extremos têm apenas uma existência teórica, no entanto, importa defini-los bem claramente, um após o outro, porque é a única maneira de alertar as pessoas sobre os fatos que medeiam, tendo em conta sua especificidade.
Dito isso, nada mais é estranho ao meu temperamento e à minha prática do que o uso de oposições nitidamente demarcadas.
QUARTA QUESTÃO:
impacto dos meios sobre a vocalidade
Os meios eletrônicos, auditivos e audiovisuais são comparáveis à escrita por três de seus aspectos:
1. abolem a presença de quem traz a voz;
2. mas também saem do puro presente cronológico, porque a voz que transmitem é reiterável, indefinidamente, de modo idêntico;
3. pela sequência de manipulações que os sistemas de registro permitem hoje, os media tendem a apagar as referências espaciais da voz viva: o espaço em que se desenrola a voz mediatizada torna-se ou pode se tornar um espaço