Beijo na testa é pior do que separação: Crônicas do fim de tudo
De Felipe Pena e Rodolfo Melo
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Sobre este e-book
Décimo quinto livro do autor, em Beijo na testa é pior do que separação – Crônicas do fim de tudo estão reunidas crônicas que tratam da ruptura de relacionamentos e que versam sobre os mais variados assuntos, dentre os quais estão a separação entre os casais, a política, o jornalismo e a literatura. A conexão entre as crônicas está no tema: a separação. Alguns dos textos publicados neste livro são inéditos; já outros foram veiculados em jornais, revistas e livros.
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Beijo na testa é pior do que separação - Felipe Pena
autor
As frases não ditas são eternas. Não era o que eu queria dizer. Nem o que o ela teria dito. Mas já estava lá, escrito, como se fosse para nós. O que ficou de você em mim foram fragmentos, polímeros, fractais, resíduos.
E o teu queixo no queixo do meu filho. Teu genoma em cada livro. Tua face em cada linha. Teu sangue em cada frase. Minhas frases, tuas digitais, e teu queixo, teu texto. O que você lê agora é o que resta nos olhos do rufião. Sobrevivi, mas não voltei a me encontrar. Depois de você, todas tinham o mesmo defeito: nenhuma delas era você.
Nunca nenhuma delas será você.
Os outros são nossos narradores. Não há fuga possível para o discurso alheio que nos constrói. Estamos à mercê dos advérbios que não queremos, dos adjetivos que não merecemos, dos pronomes que foram trocados (de propósito?). Nossa história não nos pertence. Não temos tempo. Tempo é expectativa. É o portão de ferro da angústia.
Mas se você estivesse aqui, tudo seria diferente! Se você estivesse aqui, pela oitava e única vez, prometo que tudo seria diferente. Se você estivesse aqui, eu ouviria os comentários sobre meu egoísmo, concordaria com as mudanças, aceitaria as críticas, não me importaria com a verdade.
Se você estivesse aqui, o teu egoísmo não seria necessário.
Se você estivesse aqui, alugaríamos um apartamento bem pequeno para que os desencontros acabassem se encontrando.
Se você estivesse aqui, chegaríamos no mesmo passo, enfrentaríamos a chuva, dividiríamos a capa e a marquise.
Se você estivesse aqui, comeríamos no mesmo prato, dividiríamos a carne, beberíamos o licor no copo de vinho.
Se você estivesse aqui, levaria teu avô ao médico, cuidaria do teu pai, educaria teu irmão e te daria um filho.
Se você estivesse aqui, trocaria os pronomes só pra te incluir na minha gramática do caos.
Se você estivesse aqui, arrumaria um quarto pra tua mãe, fingiria que gosto dela e ainda acreditaria nos elogios.
Se você estivesse aqui, dormiríamos até mais tarde, com a cortina fechada e o mundo lá fora, sem importância.
Se você estivesse aqui, passaria o creme nos teus pés depois de lixar tuas unhas pra te livrar da solidão.
Se você estivesse aqui, eu me sentaria na beirada da cama por duas horas, com o paletó fechado, enquanto você escolhe o vestido da festa.
Se você estivesse aqui, puxaria o zíper até o final das costas, deixando minha respiração no pescoço perfumado.
Se você estivesse aqui, sairíamos pela noite da cidade iluminada, veríamos o filme do cineasta desconhecido, descobriríamos um restaurante íntimo, escolheríamos o prato da casa, cruzaríamos a ponte e veríamos o barco pela proa.
E tudo mais. Tudo o que você sempre quis:
Ouvir Indian Maracas, do Pelvs. Dançar na batida do Bob Sinclair. Degustar o macarron da esquina. Ler a bíblia do Roberto Bolaño. Ver a exposição do Albuquerque Mendes. Assistir à montagem do Cyrano. Ir ao show do Radiohead e não se conter na quarta música da lista. I wish I were special.
Se você estivesse aqui, eu teria evoluído.
Mas você não está.
Quando foi embora, deixou-me a culpa e o atraso.
Ela o manipulava utilizando a própria indignação como estratégia. E não precisava se colocar no papel de vítima. Bastava fazê-lo perceber os julgamentos injustos, a paranoia, a insegurança. Mostrava-se plena, absoluta. Uma confiança quase religiosa perpassava seu sorriso lateral enquanto falava, sem pausas, como se um regimento militar a ouvisse.
Mas só permaneceu no controle até reparar nas estantes vazias da sala e nos caixotes com livros perto do bar, onde, no lugar das garrafas, jaziam pedaços de jornal velho. Havia candelabros cobertos com plástico e quadros protegidos com papelão. Duas malas cheias estavam empilhadas ao lado da porta, junto a alguns objetos que ainda não haviam sido embalados.
Sentiu o golpe, mas fez-se de desentendida. Aquele idiota recalcado estava fugindo! Fugindo de verdade! Fisicamente. Geograficamente. Covarde filho da...! Por que ficar de conversinha se já estava decidido a partir? Teve vontade de ser mais violenta do que ele, e não apenas de forma verbal. Precisava mordê-lo, arranhá-lo, bater naquela cara bonita. Como ele era bonito! Agora ainda mais, como um soneto incompleto, uma escultura neoclássica sem os membros, algo inacabado e, por ser inacabado, muito mais bonito.
Não tinha um rosto geométrico. Era masculamente desproporcional: os olhos grandes, as maçãs salientes, o queixo pontiagudo e rachado, a barba meio grisalha com falhas visíveis em ambos os lados. E os sulcos laterais denunciando a idade, o detalhe preferido dela. Um rosto perfeito de um homem perfeito. Tão perfeito, que não o veria mais.
— Vou voltar pra casa. Não posso mais ficar aqui. Meu voo está marcado pra depois de amanhã.
Então era o fim. Antes mesmo do começo. O fim. O que poderia fazer? Segurá-lo pelo pescoço? Encenar um escândalo? Suplicar para que ficasse? Dizer: eu te amo, não me abandone
? Isso seria pior do que perdê-lo. Porque perderia a fleuma, a postura altiva, a verve crítica que o conquistara. E, nesse caso, o perderia de qualquer jeito.
— Não há encantamento na hora da partida — ele disse. E ela ficou em silêncio.
O jogo de aforismos de repente perdera o sentido. Não conseguia elaborar uma resposta à altura, uma frase de efeito, algo genial que a trouxesse de volta ao controle. Pela primeira vez, não sentia qualquer prazer na superioridade intelectual. Naquele instante, gostaria de ser uma dona de casa siciliana, com as ancas largas, a lasanha no forno e as crianças na barra da saia.
Queria não ter pensado na carreira, no mundo, na sociedade capitalista. Queria não ter se filiado a um partido de esquerda. Queria não ter brigado com a família. Queria não ter lido Nietzsche, Foucault, Marx, Freud, Deleuze, Lacan. Queria não ter ombros largos. Queria não ter opinião.
Mas tinha. E era estranho pensar como tudo o que representava tanto valor poucos minutos antes agora não passava de névoa, espuma de chuveiro, pó.
Deslizou o corpo pelo sofá, segurando no braço, para não cair. Olhou reto, certeira, nos olhos dele. Uma lágrima insistia em romper o bloqueio emocional, mas ela a segurou, refez o dique. Enxugou o canto, discretamente, dilatando a pupila para disfarçar. Ele se aproximou, curvou o corpo, tentou beijá-la na testa, mas ela o afastou.
Beijo na testa era pior do que separação.
Ela ligou o rádio. O medo de ter medo de ter medo. A Nina adorava o Renato Russo. Ouvia o dia inteiro, intercalando com a poesia do Rimbaud, os romances latino-americanos e a novela da Globo. Podia ser um recado personalizado se eu fosse capaz de entender. Bastava notar o aumento do volume no meio da música, sempre na mesma parte: o salva-vidas não está lá porque não temos.
Não notei. O salva-vidas não estava lá.
No primeiro ano, grudamos o couro um no outro até fazer ferida. Tínhamos que recuperar o tempo perdido. Outra música do Renato, eu sei. Mas nessa época ouvíamos Radiohead, Los Hermanos, Beatles e até nos divertíamos com a Lady Gaga, dançando seminus na varanda só pra escandalizar os vizinhos.
Nas noites calmas, as peel sessions de PJ Harvey e o remix do Yo La Tengo disputavam espaço com o velho Miles Davis. Bebíamos o Chateau Laplanche no copo de geleia mesmo, mas só após a decantação.
— Deixa o vinho respirar, meu amor.
Os fins de semana eram todos prolongados. Nina chegava lá em casa na quinta e só ia embora na terça. Vida de