Ad gentes: Texto e comentário
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Ad gentes - Estêvão Raschietti
Introdução
Ad Gentes (AG) é o título do decreto sobre a atividade missionária da Igreja do Concílio Ecumênico Vaticano II. Como todos os outros documentos do Concílio, esse título é tirado das primeiríssimas palavras do texto oficial em latim, neste caso: Ad gentes Divinitus missa [Enviada por Deus às nações
]. O sujeito é a Igreja, que é enviada obedecendo à ordem do seu fundador
e em virtude das exigências profundas de sua própria catolicidade
( AG 1). Ad Gentes é o predicado, e significa às nações
, aos povos
, entendendo por povos
, especificamente, as populações e os grupos humanos ainda não alcançados pelo testemunho de uma comunidade cristã e pelo anúncio do Evangelho.
1
A missão aos povos no Vaticano II
Aexpressão ad gentes é repleta de significados. De um lado, expressa o mandato explícito de Jesus de anunciar a Boa-Nova a toda humanidade (cf. Mc 16,15) e a vontade de Deus de salvar todos os seres humanos
(1Tm 2,4). Por outro, descreve, com certa ambiguidade, a epopeia histórica dessa missão a todos os povos. Com efeito, o conceito está impregnado de uma forte visão discriminatória e etnocêntrica. Em latim existem duas palavras para dizer povos
: populi e gentes . A primeira é referida, de alguma forma, ao povo eleito
: populus Romanus victor dominusque omnium gentium — o povo romano vitorioso e senhor de todas as nações
, declarou o filósofo Cícero. A segunda é dirigida aos povos bárbaros e pagãos , termo que também vem do latim pagani , que significa rudes
, toscos
, camponeses
, atrasados
. A partir desses pressupostos linguísticos e culturais, a missão cristã aos diferentes povos foi muitas vezes marcada por um trágico senso de superioridade, pela negação do outro e pela sangrenta expansão colonial, pois os destinatários da missão não eram todos
os povos, mas apenas os povos considerados selvagens (que vivem na selva, no mato).
1.1. A missão aos povos e o colonialismo
Pelo menos desde Carlos Magno (†814) o anúncio do Evangelho a esses povos concretizou-se com agressões militares que arrasavam e impunham com a espada novas leis, novos reis e novos deuses. No século XVI, com a experiência fundante do Novo Mundo
, mais uma vez, a missão cristã foi cúmplice e parceira estratégica de uma aventura de desencontro, de opressão e de domínio em relação às gentes. A própria palavra missão
, enquanto termo técnico de uma atividade específica de difusão da fé entre os não cristãos, surgiu nesta época de expansão e de conquista do Ocidente cristão, a partir da descoberta da América,¹ graças aos jesuítas,² para caracterizar a evangelização entre os pagani, contemporaneamente e conjuntamente aos projetos coloniais espanhóis e portugueses. Ela não consta nas Escrituras, nem nos Santos Padres, e é aplicada apenas na doutrina tomista da Trindade a respeito do envio do Filho e do Espírito Santo.³ Portanto, o termo missão
, assim como estamos acostumados a utilizá-lo, pressupõe o contexto de colonização ocidental dos territórios ultramarinos e a submissão de seus habitantes. A missão está definitivamente encravada na experiência colonial. Os muitos exemplos de missionários que resistiram corajosamente às potências coloniais e às suas políticas, a partir de Antonio de Montesinos e Bartolomé de las Casas,⁴ ainda na primeira metade do século XVI, não mudaram significativamente o quadro geral.
Em tempos mais recentes, no século XIX, o reaparecer do tema da missão na ação e na reflexão das Igrejas cristãs está, mais uma vez, explicitamente ligado a um progressivo expansionismo dos estados-nação emergentes.⁵ No entanto, o que é mais importante observar é o ingresso de um elemento inédito: nas épocas anteriores o fator que mais motivava a missão cristã era, essencialmente, religioso (salvar as almas); agora, avança progressivamente uma ênfase sociocultural, muito mais preocupada com a civilização das gentes. Os civilizados
não se sentem apenas superiores aos não civilizados
, mas também responsáveis por eles, ao ponto de saber o que é bom para os outros e impô-lo aos demais.⁶ São agentes do progresso e do desenvolvimento, de um Reino dos Céus que avança na história por meio de empreendimentos humanos, carregados de um forte espírito voluntarista.
A partir da metade do século XX, essa herança histórica e os consequentes questionamentos sobre a real validade e fundamento da missão causaram dentro e fora da Igreja um profundo mal-estar. A colonização do mundo por parte do Ocidente forneceu, de fato, o contexto para o surgimento da missão moderna. Por esse motivo, antropólogos reunidos em Barbados, em 1971, propuseram uma moratória para a atividade missionária das Igrejas. Reivindicações semelhantes surgiram também na VIII Conferência Missionária Internacional em Bangcoc (1972/73), convocada pelo Conselho Mundial de Igrejas. Afinal, as atividades missionárias das diversas Igrejas cristãs correspondem mesmo ao mandato de Jesus de fazer discípulos todos os povos (cf. Mt 28,19)? Esse Jesus não saiu de sua terra, não teve muitos contatos com os pagãos e entendeu a si mesmo simplesmente como enviado a seu povo: qual é, então, a verdadeira origem do impulso missionário universal do Cristianismo? A missão faz parte do verdadeiro patrimônio espiritual do movimento cristão ou de um episódio espúrio a ser entregue quanto antes aos arquivos da história?
1.2. A missão aos povos na mudança de época
É nesse clima que o Vaticano II debate o tema da missão aos povos, envolvendo todo o evento conciliar, desde seu anúncio até as conclusões, de sua inspiração até sua recepção, do começo das sessões até a redação de todos seus documentos. O Papa João XXIII convida toda Igreja a olhar para os sinais dos tempos
, particularmente, a situação mundial da humanidade, depois da trágica experiência da II Guerra Mundial, entre as conquistas do mundo moderno e o fim do colonialismo nos países do Terceiro Mundo. Tudo isso vem instaurar uma nova ordem de relações humanas
⁷ que, por sua vez, convoca a Igreja para um novo Pentecostes
⁸ e um salto adiante
,⁹ capaz de recriar uma nova e simpática
relação com a humanidade,¹⁰ a fim de colocá-la em contato com as energias vivificadoras e perenes do Evangelho¹¹ sobretudo através do compromisso com a justiça e a paz,¹² da unidade dos cristãos¹³ e da família humana universal.¹⁴
O discurso missionário do Concílio, de modo peculiar dos Papas que o conceberam e o conduziram, é o mais atento, aberto e dialógico possível. Antes de tudo, se exige da Igreja um decidido aggiornamento de uma cristandade intransigente e fechada em si, para uma Igreja voltada para o mundo com profunda compreensão, com sincera admiração e com franco propósito de não o conquistar, mas de valorizá-lo; não de condená-lo, mas de confortá-lo e de salvá-lo
.¹⁵ Na Ecclesiam Suam, sua primeira carta encíclica, Paulo VI faz uma incisiva declaração em ordem à missão:
Se a Igreja, como dizíamos, tem consciência do que o Senhor quer que ela seja, surge nela uma plenitude única e a necessidade de efusão, adverte claramente uma missão que a transcende e um anúncio que deve espalhar. É o dever da evangelização, é o mandato missionário, é o dever de apostolado […]. Dever seu, inerente ao patrimônio recebido de Cristo, é também a difusão, a oferta, o anúncio: ‘Ide, pois, ensinar todos os povos’ (Mt 28,19). Foi a última ordem de Cristo aos seus Apóstolos. Estes, já com o simples nome de Apóstolos, definem a própria missão indeclinável. A este interior impulso da caridade, que tende a fazer-se dom exterior, daremos o nome, hoje comum, de diálogo
(ES 37).
É nesse contexto que o mandato missionário de Mateus (cf. Mt 28,16-20) assume um grande significado e volta a ser reproposto como o trecho bíblico mais citado em suas variadas formas nos documentos finais do Vaticano II. Contudo, apesar de o Concílio estar totalmente embebido de uma forte tensão missionária, diversos nós precisavam ser desatados através de uma reflexão missiológica específica que olhasse peculiarmente à atividade missionária ad gentes e, ao mesmo tempo, a todo discurso conciliar. Afinal, a missão colocava sérias questões de ordem pastoral e doutrinal aos assuntos principais que desembocaram na redação das quatro grandes constituições do Vaticano II: Dei Verbum (Constituição dogmática sobre a Revelação); Lumen Gentium (Constituição dogmática sobre a Igreja); Sacrosanctum Concilium (Constituição sobre a Liturgia); Gaudium et Spes (Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo). Essas questões poderiam ser formuladas sinteticamente da seguinte forma, pela ordem dos documentos proposta:
• Tem sentido anunciar hoje Jesus Cristo como o mediador e a plenitude de toda revelação
(DV 2) para todos os povos, diante da pluralidade das diferentes religiões e culturas, e do direito à liberdade religiosa promovida solenemente pelo próprio Concílio?
• Tem sentido afirmar a necessidade de pertencer à Igreja Católica, se as pessoas podem conseguir a salvação do mesmo jeito fora dela, podendo ser de várias maneiras ordenadas ao Povo de Deus
(LG 16)?
• Tem sentido acreditar no valor dos sacramentos como meios que conferem a graça
(SC 59), quando esses não se tornam canais exclusivos, visto que elementos de verdade e graça já estão presentes no meio dos povos, fruto de uma secreta presença divina
(AG 9)?
• Tem sentido falar ainda de terras de missão
, de missionários
e de "missão ad gentes", quando as pessoas, animadas pelo avanço do progresso, passam com muita facilidade a negar Deus ou a religião (cf. GS 7), particularmente nos países de antiga tradição cristã, tornando assim o mundo todo uma imensa terra de missão
?
Para a Igreja essas são questões cruciais. Para a vida missionária de fronteira
tornam-se ainda mais angustiantes: por que sofrer as dores do exílio e as picadas de mosquitos, se as pessoas serão salvas de qualquer maneira? Afinal das contas, já é suficientemente ruim ter um trabalho árduo a realizar, mas muito pior quando se discute se vale a pena fazê-lo! Com efeito, se tirarmos os dois conceitos-chave da proclamação de um único e verdadeiro Deus, e da adoção de meios específicos para a salvação, não há mais nenhuma razão para a missão e nem para a existência da própria Igreja. Como então reafirmá-los evitando qualquer fundamentalismo e exclusivismo?
Francisco Xavier, em seu épico peregrinar pelos países da Ásia, estava motivado por uma granítica convicção: salvar as almas do fogo do inferno através do Batismo.¹⁶ O Concílio Vaticano II nos livrou dessa tarefa, pois aqueles que sem culpa ignoram o Evangelho de Cristo e Sua Igreja, mas buscam a Deus com coração sincero e tentam, sob o influxo da graça, cumprir por obras a Sua vontade conhecida através do ditame da consciência, podem conseguir a salvação eterna
(LG 16).
Então, quais seriam hoje as razões profundas para uma missão profética, oblativa e ousada de anúncio do Evangelho no meio dos povos?
1.3. O decreto Ad Gentes, sobre a missão aos povos
Para responder a essas questões, e para adequar a reflexão e a prática missionária às profundas mudanças em curso no mundo e na Igreja, o Concílio Vaticano II promulgava, em 7 de dezembro de 1965, o decreto Ad Gentes com 2.394 votos a favor e somente 5 contrários. Foi o documento conciliar com o maior número de aprovações, apesar de seu conturbado processo de elaboração: foram bem sete redações até chegar à reta final.¹⁷
O motivo de tanta dificuldade está, sem dúvida, no lento caminho de construção de um novo consenso em torno da missão, pois o sentido do decreto consistia, substancialmente, na vontade de superar uma concepção focalizada exclusivamente na organização das missões
em terras não cristãs, para uma concepção mais ampla e articulada de uma missão global da Igreja no mundo contemporâneo. Os padres conciliares, reprovando as propostas da Comissão de preparação, pediam claramente uma explanação teológica da missão
enquanto tal, que pudesse servir para iluminar essa segunda perspectiva.
Com efeito, o decreto Ad Gentes tem sem dúvida o mérito de haver resgatado a dimensão teológica da