A vida de Mat
De Mino Carta
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Sobre este e-book
Como Mat, Mino vive em duas construções edênicas: a Itália da infância e da juventude, e o Brasil, da maturidade, um Brasil que poderia ter sido – e não foi.
A Itália lhe concedeu Assunta, o prazer inigualável, e Nuvem, uma mulher formidável, que o romancista descreve com as tintas de Flaubert – e de uma dânea de Ticiano.
É exatamente na seção italiana do romance que Mino realiza uma bem-sucedida experiência estilística, que ultrapassa – na minha modestíssima opinião, como ele diria – o que realizou nos romances anteriores.
O Brasil é o do cárcere da ditadura, do filho morto em combate na luta armada, do interrogador imbecil com o nariz de nhoque.
É quando os maus tempos chegaram.
Mat e Mino não resolvem o conflito entre a Itália e o Brasil.
Sim, porque o fim do romance, deslumbrante trabalho literário, quando Mat, sem encantos e sem mulher, volta à Itália e ao mar, não é um epílogo aceitável.
A luta continua…
Em tempo: não se detenha na palavra "lúvega". É só mais uma das artimanhas do romancista.
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A vida de Mat - Mino Carta
Pró-memória.
Recordações esparsas, anotações súbitas, deixadas neste caderno sem método algum e para a serventia exclusiva de quem as fez nos últimos seis meses, ou seja, eu, a partir do dia do meu vigésimo terceiro aniversário, antes de procurar outro lugar para plantar minha tenda.
Naquele tempo eu me chamava Mat, embora tivesse sido batizado Aginulfo. Este nome sempre me soou pesado, mas tenho certeza que, atirados do alto da torre de Pisa, Aginulfo e Mat ao mesmo tempo atingiram o chão dezenas de metros abaixo.
Vovó Dudja, mãe da minha mãe, costumava repetir "questo bambino è matto", este menino é louco, daí o apelido, que muito me agradou, atirei-o sobre a pele do mar qual um seixo chato e liso e correu sobre a água aos saltos cada vez mais largos até o infinito. Era manhã de bonança.
Meus pais não teriam aprovado a mudança, morreram juntos antes de se pronunciarem, acidente de carro, meu pai não era bom volante, mesmo assim supus buscada aquela morte, diziam amar-se para sempre. Acabei entregue aos cuidados da vovó, vivia em sua casa de uma alvura cegante, a oferecer espaço para a dança das árvores, oliveiras, enodoadas nos troncos em imperscrutáveis tormentos e enfim liberadas pela agitação das frondes de prata.
* * *
Vovó vive na lembrança do marido, Lui, falecido aos cinquenta e seis de misteriosa enfermidade, talvez de origem tropical, comandava cargueiros pelas rotas do Atlântico e do Pacífico, e das viagens trazia jades, porcelanas, tapetes, molduras e telas peruanas dispostas a alimentar meus pesadelos, pratos, sopeiras, travessas da Companhia das Índias, ali nereides orientais perfumam-se de manjerico.
A família paterna é de um lugar muito distante e meu pai pareceu tê-la esquecido deliberadamente. Havia, dera-me a entender vovó já na minha adolescência, um nó de tormento no passado do meu pai antes de chegar à juventude, ainda não completara quinze anos ao fugir de casa. Com a mãe, marquesa de cabelos azuis, segundo Dudja, que no entanto jamais a vira, mantivera raros contatos epistolares. O pai de vovó era rico, amealhara fortuna ao produzir vinho e azeite e era dono de vastas extensões de terra, que Dudja acabou por vender para adquirir imóveis urbanos, um quarto da cidade era dela e hoje é meu, tudo alugado a bom preço.
* * *
Habitamos a beira-mar, e sobre a terra que cerca a casa se instala um vinhedo, em gárrula indisciplina um renque de ameixeiras, de soturna dignidade os marmelos, intrigados com a graça das mimosas, um eucalipto, raridade exótica, figueiras ásperas com seus frutos contraditórios, chorões resignados, fluem-lhes as lágrimas com abundância dramática.
À horta, vovó ia de volta da missa das sete, carregava um pequeno cesto e uma tesoura, ia colher os contornos do dia, tomates como aqueles nunca mais encontrarei, tampouco vagens, abobrinhas, ervilhas, alegradas pelo vento das glicínias. Pendurado de cabeça para baixo na grade da janela da cozinha, um coelho sangrava pela goela cortada por Nino, o colono, chamado a cometer o assassínio, mora na casinhola da encosta e de noite, deitado na cama de ferro esmaltado aos pés da tia bisavó cor de terra emoldurada em ouro, ouço seu ressonar. No dia seguinte, o filho me traz o tributo de uma vara de pescar.
* * *
De quando em quando, vovó recebia a visita da senhora Zonchello, fora amiga da minha mãe e, três anos após o acidente, brandia o propósito de consolatrix afflictorum, conquanto pousasse sobre os cílios alguma complacência benevolente como de quem, ao cumprir o papel, concede-se. Nem por isso deixava de me atrair de forma insólita e até surpreendente na comparação com os meus sentimentos de então, tinha eu pouco mais de três anos, razões havia, entretanto. Lembrava-me a fada dos cabelos turquesa protetora de Pinóquio, livro volumoso cujas ilustrações me encantavam, e sobretudo, ao cruzar as pernas, sentada na poltrona de couro merecedora de desvelo, no lugar de honra da sala por ter sido a preferida do avô, a seda das meias emitia um sussurro enternecedor.
Tomava-me o súbito impulso de cair de joelhos aos pés da senhora Zonchello tão logo se erguesse, para, ao investir por trás, abrigar-me debaixo de sua saia rodada, onde, os sonhos noturnos enfim esclareceriam, seria aspirado por uma força invencível capaz de me reassumir na crisálida ancestral. Faltava-me entender como o processo da reabsorção se daria, certo o desfecho, a beatitude do retorno ao começo. Somente agora abalo-me a registrar por escrito esta remota passagem da minha vida, silenciada não por vergonha, mas pelo receio da incompreensão alheia.
* * *
A costa despenca sobre o mar com determinação vigorosa e logo escava o fundo pedregoso atapetado pelas algas de verdes volúveis ao sabor do sol, às vezes a colher o faiscar das agulhas dos ouriços, pretos e vermelhos (magenta), ou a fuga lampejante de um polvo, de um esconderijo a outro.
Pesca de vara, embora equipado pelo filho do colono, exigia a paciência que a dos polvos dispensa, basta uma vara curta e uma isca eficaz a camuflar o tridente arrebitado, torneado por anzóis graúdos, basta mergulhar ao fundo onde as sombras arrepiam as algas enquanto o pescador tateia com a ponta da vara o sopé das pedras. O bicho sempre aparece, só cabe ser mais veloz do que ele, e então capturado, dilacerado pelos anzóis, trazê-lo à tona para mordê-lo no topo víscido da cabeça, de sorte a aplacar os tentáculos frenéticos no delírio da defesa. Isso tudo aprendi mais tarde, dois ou três anos depois. Por enquanto, fingia pescar de vara. Do alto de uma pedra, vagueio com o olhar, sonho.
Lembrança viva, e de conforto. Os galhos da árvore de damasco batem nas venezianas do meu quarto, abro a janela para o infinito, um veleiro voa na manhã sem céu e sem mar como um grande pássaro de asas imaculadas. Os frutos estavam maduros e o sol recém-nascido perfuma-se de damasco, estico a mão e logo mastigo a manhã de pele aveludada e polpa inebriante. Não sei dar um nome ao que sinto, uma empolgação aparentemente sem motivo.
* * *
Ouço a voz de Nino, sugada pelo sotaque da terra, tomada de saída por precipitação, não sei se pelo receio de não atingir o fim do período ou para afirmar uma presença imperiosa, e de todo modo respeitável, e logo a se extinguir mansamente como um canto que receia perder-se. Cada palavra assume este pentagrama, com a preponderância do si bemol. Nino trouxe dois polvos recém-capturados, são de bom tamanho, e ele os soergue com a ponta dos indicadores, intrusos entre os tentáculos desmilinguidos, breve cascata cor-de-rosa represada ao cabo em um penacho invertido de tom violeta. Pinga água salgada.
Um polvo é dele, o outro da vovó, brilham os olhos de Assunta, teremos salada de polvo para o almoço, a panela aí está, o fogo arde. Dudja sustenta a inadiável presença do aipo cru, o qual nasceu nas encostas do Olimpo aos cuidados de Ceres, que lhe mantém a fragrância herbácea. Nino gaba-se de seus talentos íticos, estes dois deram trabalho
, sei que se fia da credulidade infantil, é um homem tosco, de mãos infinitas e índole generosa. Não parece falar comigo, os olhos não acompanham a direção das palavras, seguem os movimentos de Assunta além do fogão central, o coração da casa
, como dizia Lui.
Os olhos de Nino me conduzem a Assunta como se a visse pela primeira vez e lhe notasse com curiosidade ansiosa a morfologia circular, ela é redonda, senti, sem verbalizar interiormente a descoberta. Assunta não é de carnes fartas, como a mulher de Nino, que neste verão usa blusas sem manga, dentro delas controem-se camadas regurgitantes, e a pele dos braços é de rosa murcha. Assunta é esférica de pele lisa, reluz de tão esticada.
Os olhos de Nino fixam-se em linha reta, mas se movem sem perder o prumo a perlustrar a silhueta redonda que desenha seus movimentos useiros na penumbra, onde a luz do fogo destaca ora as ancas, ora o decote, ora um braço intrometido.
* * *
Obedeço aos apelos da memória e neste momento me vejo a nadar entre Ftia e Ítaca. Venho de uma longa ausência, tempo passado na aldeia entre as colinas, lá sofria a ausência do mar, agulhado de nostalgia, faltava-me a casa branca entre as oliveiras e o arquipélago de recifes diante dela.
Ítaca emergia sobre a pele do pélago homérico, nos seus lombos cravavam-se os mariscos, e se não viesse Ulisses, eu chegaria. Tomara o largo a partir de Ftia, semi-submersa e atapetada por algas robustas e macias, caminhava entre elas, a pisar o prado ondeante, acariciavam-me as pernas, sensação voluptuosa me invadia a ponto de adiar a partida e desde logo desejar a volta. Mas o senhor de Ftia, Aquiles, agita em mim uma ojeriza indignada pelo guerreiro invulnerável, dele não cabe exaltar a valentia que torna heroico Heitor, o príncipe troiano a