Viver segundo o espírito de Jesus Cristo
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Viver segundo o espírito de Jesus Cristo - Francisco de Aquino Júnior
Francisco de Aquino Júnior
Viver segundo o espírito de Jesus Cristo
Espiritualidade como seguimento
www.paulinas.org.br
Para Pedro Casaldáliga,
profeta do Reino,
patriarca da Igreja dos pobres,
irmão-companheiro na caminhada,
testemunha fiel.
Prefácio
Escrevo um brevíssimo comentário às palavras do título do livro, repetindo o que disse há muitos anos.
Em 1980, propusemo-nos, com outros teólogos da libertação de então, a escrever um texto conjunto sobre espiritualidade de Jesus e da libertação
. Eu já havia escrito sobre cristologia e me propus a escrever sobre espiritualidade. Mais concretamente sobre seus pressupostos e fundamentos. Em minha opinião, não mudaram muito as coisas mais importantes ou, ao menos, minha maneira de pensar. Os fundamentos de toda espiritualidade, disse, são os seguintes:
1. A honradez com o real. Pareceu-me o fundamental, sobretudo quando se observa o que ocorre quando o espírito parte da mentira. Na famosa passagem de Rm 1,18ss, diz Paulo: Manifesta-se, com efeito, a ira de Deus, do alto do céu, contra toda impiedade e injustiça dos homens que mantêm a verdade prisioneira da injustiça
. As consequências são espantosas: 1) privam-se as coisas de seu significado próprio, de sua capacidade de ser sacramentos de transcendência e de desencadear sua história; 2) priva-se o próprio sujeito de conhecer adequadamente a realidade, pois seu coração se entenebrece
; 3) leva à negação prática de Deus, a não reconhecê-lo como o fundamento do real, como o próprio espírito do sujeito; 4) e o ser humano termina dominado por todo tipo de paixões. Em nosso contexto, deve ser honrado com a realidade de Jesus e pode captar em Jesus o ser humano que foi honrado com Deus, deixando-o sempre ser Deus.
2. A fidelidade ao real. A história muda e manter a honradez com o real tem suas dificuldades e seus custos. Por isso, há que manter essa honradez, há que ser fiéis à realidade. Na teologia da libertação, viu-se logo essa necessidade. Disse-se que, propriamente falando, não pode haver uma teologia do cativeiro, mas, sim, deve existir uma teologia que se faz a partir do cativeiro, como disse Leonardo Boff. Enquanto exista cativeiro, e dentro dele, há que ser honrados com a realidade. Dito com palavras que costumava usar o padre Ellacuría, conhecer e ser fiéis à realidade é carregá-la/assumi-la (cargar con ella). Essa fidelidade ao real é o que exemplifica a cabalidade da cruz de Jesus. Mesmo quando não percebe a vinda do Reino de Deus e mesmo quando só escuta do Pai seu silêncio, Jesus continua fiel, continua encarnado na história que quer transformar, mesmo que agora a história se transforme em cruz para ele.
3. Ser levado pelo mais
da realidade. A história não é apenas negatividade e carga. Paulo afirma também que a criação vive da esperança de sua própria libertação de toda servidão e corrupção. Na mesma realidade há algo de promessa e de esperança não aplacada pela experiência dos séculos. A mesma realidade, apesar de sua longa história de fracassos e de miséria, apresenta sempre de novo a exigência e a esperança em plenitude. Sempre surge um novo êxodo, uma nova volta do exílio, uma libertação do cativeiro, embora estas nunca sejam tampouco definitivas. Sempre encontra um porta-voz, um Moisés, um novo Moisés que anuncia uma nova terra e um novo céu, uma vida mais humana, um homo vivens. E como disse dom Romero, um pauper vivens.
A honradez com o real é, então, esperança exigida pela direção que a realidade quer tomar. Mas uma esperança ativa, não apenas expectante; um ajudar a que a realidade chegue a ser o que quer ser.
4. A experiência de Deus. Mas, mais profundamente, ao enunciar estes pressupostos, temos falado também das mediações da revelação e comunicação de Deus e do modo fundamental de responder e corresponder a essa revelação e comunicação. O problema da espiritualidade não é outra coisa que a correspondência à revelação de Deus na história real. O fato de essa revelação ser considerada dogmaticamente como concluída em Cristo não significa que a experiência espiritual de Deus se faça à margem da história atual; pressupõe, antes, que Deus continua se manifestando nela.
A revelação de Deus no passado, compreendida simplesmente como depósito
, só possibilita uma doutrina sobre Deus, mas não garante uma experiência de Deus. Para isso é necessário que Deus continue se manifestando. Mas isso, hoje como no decurso da revelação bíblica, só se realiza na história real. Por isso, a honradez e fidelidade com o real não são apenas pressupostos, mas também fundamentos da espiritualidade no que ela tem de mais fundamental. Permitem seguir ouvindo a Deus na história e expressam a realização fundamental da resposta à sua palavra.
Essa é a espiritualidade teologal de Jesus. A Carta aos Hebreus o explicita muito claramente unificando sua experiência histórica e teologal, sua misericórdia e sua fidelidade. Dito sistematicamente, em Jesus aparecem unidas a fidelidade ao Reino de Deus e ao Deus do Reino, sua prática histórica e sua experiência do Pai. Na prática de humanizar a outros, Jesus aparece como o homem ante Deus; na prática de irmanar a outros, aparece como o Filho ante o Pai. Ele é o homem espiritual. Clama a Deus Pai
e nisso mostra sua explícita relação com ele de obediência e confiança; mas o invoca como Pai em uma ação histórico-libertadora
. E esse Pai para Jesus continua sendo Deus, maior, imanipulável
. E Jesus o deixa ser Deus.
5. Os mártires. A vida em El Salvador me tornou evidente o que não costuma ser evidente em outros lugares, o que costuma passar despercebido ou ao menos o que não se tem por realidade central na história. E a teologia costuma se desentender disso.
Não basta dizer que Jesus morreu; há que acrescentar que foi morto. E há que insistir em que essa morte foi assassinato. Assim, a cruz do Calvário recobra vigor e rigor histórico.
Não basta dizer que Jesus foi testemunha. Se quer saber, foi uma testemunha muito especial: foi um mártir!
Nenhuma espiritualidade cristã pode ignorar nem o martírio de Jesus nem os milhares de mártires que ocorreram antes e depois dele. Certamente, mudam as circunstâncias. Mas, desgraçadamente, continua havendo mártires no planeta, povos crucificados, como dizia Ignacio Ellacuría. E o que não muda é que a origem do cristianismo vem de um mártir, não de um Jesus qualquer. E que o melhor da história do cristianismo tem suas raízes em mártires, Marthin Luther King e dom Romero, Edith Stein e Dorothy Stang.
Jon Sobrino
Introdução
Este livro não é um estudo global e sistemático da espiritualidade cristã, mas uma abordagem de alguns de seus aspectos, traços e desafios.* Por isso mesmo, pode e deve ser tomado como tópicos ou escritos de espiritualidade cristã, porque todos eles dizem respeito à vida cristã, compreendida como vida segundo o Espírito de Jesus Cristo; tópicos ou escritos, porque se trata apenas da abordagem de alguns aspectos, traços ou desafios dessa espiritualidade. Nesse sentido, tem uma unidade temática fundamental que permite tomá-lo como um livro de espiritualidade e um caráter tópico ou pontual que confere autonomia a seus artigos ou capítulos – escritos e publicados, aliás, independentemente uns dos outros.¹
Dito isso, convém destacar as características ou os traços fundamentais de nossa abordagem da espiritualidade cristã ou, mais precisamente, das experiências ou dos aspectos desenvolvidos neste livro.
Em primeiro lugar, a espiritualidade é compreendida e desenvolvida, aqui, como seguimento de Jesus Cristo ou como vida segundo o Espírito de Jesus Cristo. Portanto, algo fundamentalmente experiencial/acional/práxico (vida, seguimento) e algo explícita e assumidamente cristão (Jesus Cristo). Numa palavra, espiritualidade cristã significa viver como Jesus viveu. Por mais que ela tenha uma dimensão ritual-simbólico-litúrgica e uma dimensão teórico-doutrinal que precisam ser cultivadas e desenvolvidas, não pode ser reduzida a ou identificada com ritos ou práticas religiosas nem com doutrina. Diz respeito, em última instância, a um modo concreto de viver a vida: não basta louvar a Jesus (rito) nem confessá-lo como Cristo (doutrina), é preciso viver como ele viveu; não basta andar com Jesus no peito, é preciso ter peito para andar com Jesus
; quem diz que permanece com ele, deve agir como ele agiu
(1Jo 2,6).
Em segundo lugar, a espiritualidade diz respeito a todos os aspectos e a todas as dimensões da vida cristã: pessoal, eclesial, social; valores, ideias, intenções e práticas; sentimentos e decisões; família, sexualidade, lazer, trabalho etc. Exige tanto a conversão dos corações e das relações interpessoais quanto a transformação das estruturas da Igreja e da sociedade. É a vida na sua totalidade e complexidade que deve ser vivida segundo o Espírito/dinamismo de Jesus Cristo. A espiritualidade não pode jamais ser reduzida a um departamento da vida nem a um conjunto de ritos e doutrinas. Por isso mesmo não é nada fácil ser cristão. Nem para uma pessoa nem para uma instituição. É algo profundamente comprometedor e pode custar caro – os mártires que o digam... Sem falar que, mais que uma conquista, o ser cristão é um desafio e uma tarefa constantes: o pão nosso de cada dia
que pedimos, buscando.
Em terceiro lugar, a espiritualidade cristã diz respeito ao modo concreto como Jesus viveu sua vida a partir e em função do reinado de Deus, cuja característica mais importante e decisiva é justiça aos pobres e oprimidos deste mundo. Por isso mesmo, essa é a característica e o desafio mais centrais da vida cristã. É impossível ser cristão sem, como Jesus, des-viver-se eucaristicamente para que os pobres e oprimidos possam viver. O Espírito que agiu em Jesus e que continua agindo na vida de muitas pessoas e comunidades é Espírito de compaixão, de misericórdia, de perdão, de fraternidade, de amor e de justiça. Se uma pessoa ou comunidade não produz esses frutos, é sinal que é movido/motivado por outro espírito – o espírito do anticristo. Essa é a prova de fogo da vida cristã, tanto individual quanto comunitária/institucional. Os pobres/oprimidos são, em Jesus Cristo, juízes e senhores de nossa vida (Mt 25,31-46; Lc 10,25-37).
Esses são os traços fundamentais de nossa abordagem da espiritualidade cristã. Todos os artigos aqui publicados têm como base e princípio estruturador a compreensão da espiritualidade cristã como um modo de vida, como algo que diz respeito à vida em sua totalidade e complexidade e como algo que nos compromete radicalmente com os pobres e oprimidos deste mundo.
O primeiro capítulo apresenta os fundamentos filosófico-antropológicos da espiritualidade cristã e esboça sua estrutura fundamental. Os capítulos seguintes tratam da espiritualidade cristã ou de aspectos da espiritualidade cristã, tal como ela é vivida ou deve ser vivida nas comunidades eclesiais de base (capítulo segundo), na pastoral do povo da rua (capítulo terceiro), na vida religiosa (capítulos quarto e quinto) e na orientação ou diretriz geral da ação pastoral/evangelizadora (capítulo sexto). Os dois últimos capítulos nos confrontam com uma das dimensões ou notas fundamentais da Igreja de Jesus Cristo: o ser dos pobres (capítulo sétimo) e com o desafio e a tarefa de colaborarmos na construção de uma nova ordem mundial (capítulo oitavo).
A pretensão deste livro
é ajudar a comunidade cristã a acolher o Dom maior que Deus nos deu em Jesus Cristo (seu Espírito ou dinamismo vital/salvífico) e fazê-lo frutificar em nossa vida, produzindo os mesmos frutos que produziu na vida de Jesus (compaixão, misericórdia, perdão, fraternidade, amor, justiça etc.). Essa é a única herança que Jesus nos deixou, essa é a nossa vocação fundamental e essa é a única riqueza que temos a oferecer ao mundo: um modo concreto de viver e configurar nossa vida pessoal, eclesial e social, na certeza e na esperança de que vida vivida como Jesus é vida vitoriosa, mesmo se crucificada
.
Por fim, o livro está dedicado a Pedro Casaldáliga – profeta do Reino, patriarca da Igreja dos pobres, irmão-companheiro na caminhada, testemunha fiel... Na história da humanidade, algumas pessoas viveram em uma comunhão tão intensa com Deus que se tornaram sinal e expressão do próprio Deus no mundo. Para os cristãos, Jesus de Nazaré é a expressão máxima da presença e ação de Deus no mundo. Por isso, ele foi e é confessado pela comunidade cristã como o Cristo de Deus – o ungido, o messias, o enviado... Na história do cristianismo, em particular, há pessoas que configuraram sua vida a Jesus de tal modo que se tornam sinal e expressão inequívocas de Jesus e, por extensão, do Deus de Jesus neste mundo. Assim é que se canta, a propósito de Francisco de Assis: e ninguém sabia já dizer com veras se eras Francisco ou se Cristo eras
; assim é que Ignacio Ellacuría podia dizer que em dom Oscar Romero Deus passou por El Salvador
e podia falar dele como um enviado de Deus para salvar seu povo
; e assim é que uma liderança indígena podia falar de Pedro Casaldáliga na romaria dos Mártires da Caminhada em julho de 2001 em Ribeirão Bonito, onde foi martirizado o Pe. João Bosco Penido Burnier, como um grande presente que Deus deu aos índios e aos pobres desta região
. É de Deus, vem de Deus... para os pobres, é dos pobres... Obrigado, Pedro, pai na fé e irmão/companheiro na caminhada, por seu testemunho, por sua vida toda entregue ao Deus de Jesus, que é o Deus dos pobres, e aos pobres deste mundo, sempre na procura do Reino
. Seguiremos juntos na caminhada, nas lutas do povo, acompanhados sempre daquela nuvem de Testemunhas fiéis que sempre te acompanhou – os profetas e mártires da caminhada. Os pobres e oprimidos deste mundo serão, n’Ele, juízes de nossas vidas, igrejas, pastorais e teologias...
Viver segundo o espírito de Jesus Cristo
Espiritualidade como seguimento²
Espiritualidade é uma das palavras mais usadas na Igreja nas últimas décadas: tem sido tema constante de homilias, retiros e encontros pastorais; há uma quantidade enorme de artigos e livros sobre o assunto. Aparece como o conceito que melhor resume e expressa a vida cristã.³ É como se espiritualidade fosse sinônimo de vida cristã; como se houvesse uma