O Annel Mysterioso Scenas da Guerra Peninsular
()
Leia mais títulos de Alberto Pimentel
Uma visita ao primeiro romancista portuguez em S. Miguel de Seide Nota: 0 de 5 estrelas0 notasDa importancia da Historia Universal Philosophica na esphera dos conhecimentos humanos Nota: 0 de 5 estrelas0 notasEntre o caffé e o cognac Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPoetas do Minho I - João Penha Nota: 0 de 5 estrelas0 notasAs Noites do Asceta Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO Romance da Rainha Mercedes Nota: 0 de 5 estrelas0 notasChristo não volta (Resposta ao «Voltareis, ó Christo?» de Camillo Castello-Branco) Nota: 0 de 5 estrelas0 notasVinte Annos de Vida Litteraria Nota: 0 de 5 estrelas0 notasChronicas de Viagem Nota: 0 de 5 estrelas0 notasRainha sem reino (Estudo historico do seculo XV) Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA ultima ceia do Doutor Fausto Nota: 0 de 5 estrelas0 notasNoites de Cintra Nota: 0 de 5 estrelas0 notasOs netos de Camillo Nota: 0 de 5 estrelas0 notasIdyllios á beira d'agua: Romance original Nota: 0 de 5 estrelas0 notasNervosos, Lymphaticos e Sanguineos Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA guerrilha de Frei Simão: Romance historico Nota: 0 de 5 estrelas0 notasUm contemporaneo do Infante D. Henrique Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO Annel Mysterioso, Scenas da Guerra Peninsular Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO Anel Misterioso: Cenas Da Guerra Peninsular Nota: 0 de 5 estrelas0 notasAs Netas do Padre Eterno: Romance original Nota: 0 de 5 estrelas0 notasHistorias de Reis e Principes Nota: 0 de 5 estrelas0 notasManhãs de Cascaes Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO poeta Chiado (Novas investigações sobre a sua vida e escriptos) Nota: 0 de 5 estrelas0 notasJulio Diniz Esboço Biographico Nota: 0 de 5 estrelas0 notas
Relacionado a O Annel Mysterioso Scenas da Guerra Peninsular
Ebooks relacionados
O Annel Mysterioso, Scenas da Guerra Peninsular Nota: 0 de 5 estrelas0 notasNoites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº5 (de 12) Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA Conjura Nota: 0 de 5 estrelas0 notasSuicida Nota: 0 de 5 estrelas0 notasNoites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº1 (de 12) Nota: 0 de 5 estrelas0 notasEstrellas Propícias Nota: 0 de 5 estrelas0 notasViagens na Minha Terra (Volume II) Nota: 0 de 5 estrelas0 notasAntes e Depois Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO crime do padre Amaro scenas da vida devota Nota: 4 de 5 estrelas4/5As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes (1873-10/11) Nota: 0 de 5 estrelas0 notasUrupês Nota: 0 de 5 estrelas0 notasEntre o caffé e o cognac Nota: 0 de 5 estrelas0 notasQuerida cidade Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO crime do padre Amaro, scenas da vida devota Nota: 0 de 5 estrelas0 notasPiano Tout-puissant Nota: 0 de 5 estrelas0 notasEstrellas Propícias Nota: 0 de 5 estrelas0 notasCamões Bem-dotado Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO Mysterio da Estrada de Cintra Cartas ao Diário de Noticias Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA senhora Rattazzi Nota: 0 de 5 estrelas0 notasInfelizes Historias Vividas Nota: 0 de 5 estrelas0 notasNovelas do Minho Nota: 5 de 5 estrelas5/5Sol de Inverno ultimos versos : 1915 Nota: 5 de 5 estrelas5/5Os Primeiros Amores de Bocage: Comedia em Cinco Actos Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA Casa dos Fantasmas - Volume II Episodio do Tempo dos Francezes Nota: 0 de 5 estrelas0 notasContos gauchescos Nota: 0 de 5 estrelas0 notasAgulha em Palheiro Quinta edição Nota: 0 de 5 estrelas0 notasO crime do padre Amaro Nota: 4 de 5 estrelas4/5A Morgadinha dos Cannaviaes Nota: 0 de 5 estrelas0 notasDespedidas: 1895-1899 Nota: 0 de 5 estrelas0 notas
Avaliações de O Annel Mysterioso Scenas da Guerra Peninsular
0 avaliação0 avaliação
Pré-visualização do livro
O Annel Mysterioso Scenas da Guerra Peninsular - Alberto Pimentel
The Project Gutenberg EBook of O Annel Mysterioso, by Alberto Pimentel
This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org
Title: O Annel Mysterioso
Scenas da Guerra Peninsular
Author: Alberto Pimentel
Release Date: September 17, 2010 [EBook #33749]
Language: Portuguese
*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O ANNEL MYSTERIOSO ***
Produced by Pedro Saborano
Notas de transcrição:
O texto aqui transcrito, é uma cópia integral do livro impresso em 1904.
Foi mantida a grafia usada na edição original de 1904, tendo sido corrigidos apenas pequenos erros tipográficos que não alteram a leitura do texto, e que por isso não foram assinalados.
{1}
O ANNEL MYSTERIOSO
{2}
{3}
NOVA COLLECÇÃO PORTUGUEZA
II
O ANEL MYSTERIOSO
SCENAS DA GUERRA PENINSULAR
ROMANCE ORIGINAL DE
ALBERTO PIMENTEL
3.ª EDIÇÃO, ILLUSTRADA, REVISTA PELO AUCTOR
LISBOA
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
Sociedade Editora
LIVRARIA MODERNA
Rua Augusta, 95
TYPOGRAPHIA
45, Rua Ivens, 47
1904
{4}
{5}
PROLOGO DA 3.ª EDIÇÃO
Este é um dos romances da minha mocidade. Foi publicado pelos editores da Bibliotheca Universal, de Lisboa, em 1873. Precederam-n'o os Idyllios á beira d'agua, (1870), a minha primeira tentativa no romance, e O testamento de sangue, escripto aos vinte e trez annos.
Estas datas desculpam hoje, aos meus proprios olhos, tudo quanto ha de hesitante e incorrecto em todas as trez novellas, que foram as primicias litterarias de um rapaz educado n'uma terra essencialmente commercial, avessa a idealidades romanescas e ao convivio e apreço de escriptores, bons ou simplesmente toleraveis.
Pelo que especialmente respeita ao Annel mysterioso, se quando agora o reli me não descontentou a acção dramatica, achei-lhe comtudo algum excesso de floração declamatoria, que é um defeito peculiar a todos os estreantes.
A grande arte de escrever está na ponderada sobriedade da expressão, no equilibrio estavel entre a phrase e o pensamento.
Fóra d'isto ha rhetoricos, mas não ha escriptores.
Se eu, no decorrer dos annos, consegui aproximar-me d'este requisito essencial, não perdi de todo o meu tempo. Mas, ainda n'esse caso, é defensavel a reimpressão de uma novella, que póde fornecer elementos de confronto entre duas épocas da vida de um escriptor.{6}
Como quer que seja, o Anel mysterioso agradou quando foi publicado em 1873. A breve trecho sahiu a segunda edicção. E os mesmos editores me convidaram a escrever logo em seguida outro romance, que foi A Porta do Paraizo.[1]
Ambos estes livros me abriram caminho entre o publico de Lisboa.
O exito da Porta do Paraizo explica-se facilmente pelo interesse que inspirava ainda então o reinado de D. Pedro V.
Quanto ao Annel mysterioso, que não é senão a biographia de uma celebridade das ruas do Porto, parece que foi o entrecho commovente que no espirito dos leitores lisbonenses suppriu a falta de conhecimento directo do protagonista.
Quando eu escrevia este romance, muitas pessoas d'aquella cidade se lembravam ainda de ter visto frequentes vezes o Desgraça.
Uma d'essas pessoas era Camillo Castello Branco, que, seis annos depois da publicação do Anel mysterioso, dizia a pag. 296 do livro Sentimentalismo e historia: «A um canto (do botequim da Aguia d'ouro) estava um velho de semblante livido, muito desgraçado, com um chapeu enorme de sêda d'um azulado decrepito, com um grande cigarro no canto da bocca. Ao lado, sobre um mocho, via-se uma guitarra com manchas gordurosas de suor que punham brilhos, e aos pés um cão d'agua com o felpo encarvoado, cheio de torçidas, encaroçado, dormia, e acordava de salto, apanhando com muita furia, no ar, as moscas que lhe picavam as orelhas. Era o José das Desgraças, o legendario mendigo, que morreu de saudades do seu cão, aggravadas pela fome».
Esta referencia authentíca hoje o retrato de uma individualidade popular, cujos contemporaneos dormem, como ella, o somno eterno da morte.
Lisboa, 10 de abril de 1903.
Alberto Pimentel.
[1] A quarta edicção, luxuosa, d'este romance, foi por nós publicada em 1900.
(Nota dos editores.)
{7}
O ANNEL MYSTERIOSO
I
O Desgraça
Entre os typos populares, que pouco a pouco vão rolando a sepulturas ignoradas, deixando após si o rasto de uma vida sobremodo accidentada de peripecias quasi sempre sombrias—rasto que só um ou outro escriptor se compraz em prucurar desde a cadeia ao degredo, do albergue ao cemiterio—avulta na tradição portuense um homem que por longo tempo ahi foi o alvo das assuadas do rapazio e dos chascos dos frequentadores de botequim. Uns chamavam-lhe o José das Desgraças, outros simplesmente o Desgraça.
Parece dever inferir-se de tão lutuosa alcunha que a população da cidade lhe conhecia a biographia exuberante de lastimosos lances. Tal não ha. Quando elle passava coxeando arrimado ao seu bordão, sobraçada a guitarra inseparavel, de velho chapéo alto amassado, sobrecasaca abotoada, pendente a medalha de prata da guerra peninsular, annel d'ouro na mão esquerda, na bocca o enorme cigarro que elle proprio manipulava com pontas de charuto, seguido do cão fiel, que se chamava Junot, por motivos que mais tarde desvelaremos, o gentio das ruas ou sorria alvarmente da pittoresca pobresa do excentrico mendigo, ou rompia em apostrophes de Ó Desgraça! Ó Desgraça! que elle parecia não ouvir ou despresar em sua imperturbavel serenidade.{8}
E a populaça, sem sequer suspeitar da tenebrosa origem do cognomento, quedava-se a ouvil-o, calmadas as arruaças com que era saudado, quando elle, sentado á porta de um café, especialmente o do Jardim de S. Lazaro, começava a tanger melancolicamente a sua guitarra, na qual executava operas completas, queimando o seu enorme rolo de tabaco e contemplando, de cabeça inclinada, o cão que parecia escutal-o attentamente...
Depois, quando a mão caía extenuada sobre as cordas silenciosas, affigurava-se, tão alheado ficava, que estava rememorando maguas intimas, segredos da sua vida obscura, sem que parecesse dar tento das esmolas que lhe atiravam ao regaço os que entravam ou saíam a porta do botequim.
Ás vezes, como se não houvesse conseguido linimentar com a musica as recordações dolorosas acordadas no imo peito, voltava a tanger na guitarra uns dulcissimos arpejos que finalmente lhe serenavam a alma tempestuosamente alanceada, chorando por elle, que não tinha lagrimas.
Restituido á realidade da sua resignada nobresa, erguia-se firmado no bordão, sobraçava a guitarra, e continuava a peregrinação, vagueando pelas ruas da cidade, sem todavia dirigir-se aos transeuntes e recebendo impassivel os óbolos que jámais solicitava. E o cão, o leal companheiro de infortunio, seguia egualmente resignado seu dono, e quasi sempre indifferente ás provocações do rapazio que se divertia em apedrejal-o e açulal-o.
Frequentemente intervinha o Desgraça ameaçando com o bordão os perseguidores do seu dedicado companheiro; mas como o inquieto rapazio conhecesse que a velhice lhe desnervava o braço, entrava de levantar celeuma atroadora, em que, ainda assim, quasi sempre se distinguiam vozes de «Morra o Desgraça e o Junot! Vende o annel e não andes a pedir!»
Estranho homem devia de ser esse, que parecia guardar grande mysterio, e tinha por unico amigo, entre uma população inteira, que o apupava, o cão fiel, e por consolação unica a sua guitarra, e por unica protecção a piedade dos seus conterraneos, que elle não implorava.
O povo não suspeitava sequer que a biographia{9} d'aquelle homem justificasse o appellido. Quando o Desgraça fazia chorar a guitarra entre os dedos, e o cão denunciava comprehender a guitarra, como que ligeiramente se commovia a turba acatasolada, mas d'ahi a pouco, quando estrondeavam os apupos, era o cão o unico espectador que mostrava lêr na physionomia do velho o mysterio de uma vida tormentosa.
Ria a gentalha torpe d'aquella intima convivencia de homem e cão. E todavia não saía d'entre a arraia miuda o mais desgraçado dos populares a dizer ao pensativo guitarrista: «O teu cão sente e não fala; eu falarei por elle. Soffres decerto muito e precisas consolação. Eu sou tambem muito infeliz, muito mais do que tu, porque não tenho guitarra nem cão. Deixa-me pois compartir do teu cão e da tua guitarra, que eu te darei o que tu não tens, dois ouvidos que te escutem, uma voz que te responda.»
Não. A desgraça é tão infeliz, que se ri da desgraça; é ella que se desauctorisa a si mesma. Só lhe falavam para chasqueal-o, para lhe cuspir na face a zombaria que elle, absorto no seu continuo cogitar, deixava resvalar aos pés.
E todavia aquelle homem era um grande desgraçado, que só tinha no mundo a sua guitarra, o seu cão, e as suas recordações. O annel, que trazia na mão esquerda, podia matar-lhe talvez um dia de fome, mas não haveria miseria que lh'o arrancasse do dedo, porque as suas recordações estavam n'aquelle annel.{10}
II
Na quinta das Chãs
Na noite de 17 de fevereiro de 1809, a morgada viuva da quinta das Chãs conferenciava gravemente com o seu capellão n'uma das salas terreas do solar, a duas leguas de Braga, sobranceiro á aldeia de Carvalho d'Éste. A morgada, senhora de uns sessenta annos, deixava entrever nas sombras da physionomia a tempestade que lhe agitava a alma; o capellão, passeando de um para outro lado, enviesava á morgada olhares investigadores, que para logo revelariam perfidia e cupidez.
—É preciso partir, padre capellão, dizia afflictivamente a morgada. Se os francezes logram atravessar o rio Minho, estarão brevemente em Braga. A mim pouco me importaria a vida se não fosse Augusta, que a esta hora está dormindo na serenidade da sua innocencia. Tomára que chegasse o Teixeira para contar o que se passou. Diga o que disser, padre capellão, é preciso pensar maduramente. Meu genro fez-me depositária de um thesouro, que eu hoje quero salvar de todos os perigos, custe o que custar, porque se me affigura que já estimo mais Augusta do que aos seus proprios paes, e a seu irmão. Recebi minha neta aos 5 annos, porque á luz da consciencia conheci que melhor poderia eu sustentar uma criança, apesar das hypothecas da minha casa, do que um pobre capitão do exercito poderia sustentar dois filhos. O padre capellão administrava as propriedades. Que me restava a mim para não morrer de aborrecimento durante o dia? Augusta, a criança que me tinha sido confiada. Era ella a minha unica distracção, o meu unico amor; ha dez annos que este tecto lhe abriga a innocencia, e ha dez annos que eu abençôo a resolução de a chamar para amparo da minha velhice. Olhe que os annos tornam a gente egoista,{11} padre capellão; a abnegação é só apanagio da mocidade. Não pense que me bastava a unica distracção do voltarete; é sempre a mesma cousa! Quando eu peço licença o padre capellão prefere, e o Teixeira dá-lhe codilho. Tambem é boa embirração a sua de preferir sem jogo. Nem que tivesse vontade de fazer mal... E o dia, estes longos dias da provincia, que não teem fim! Era morrer de fastio. Augusta trouxe-me cuidados e variedade. A principio com as suas exigencias de criança; agora com as suas ingenuidades de donzella. Vi, anno a anno, desabotoar a flôr. A flôr, disse bem, porque Augusta é realmente uma rosa... de quinze annos. E é que eu a estimo como seu jardineiro que sou. Instantemente lhe pedi que se deitasse para que não ouvisse dizer ao Teixeira as proezas que os senhores francezes teem feito lá para esse rio Minho. Mas, padre capellão, o que é certo é que eu já haveria partido para o Porto, se n'esta occasião estivesse prevenida com recursos. O padre capellão bem sabe...
—Sei, sei, senhora morgada, que a occasião é má para todos.
—Se os caseiros pudessem pagar o resto das rendas...
—A senhora morgada devia conhecer o que é guerra sobre guerra. Tivemos esse excommungado Junot, mais as suas aves de rapina, a comer-nos os olhos da cara. Nem as egrejas respeitou, o maldito! A senhora morgada ainda fala em pedir o resto das rendas aos caseiros! E para quê? Para fugir para o Porto, para casa de seu genro, para abandonar as suas propriedades!
—O padre capellão velará por ellas. É que eu bem sei os sustos que curti aqui durante a primeira invasão. Se no Porto não estivesse a soldadesca do Taranco, teria fugido para lá.
—E que teima essa de me querer confiar as suas propriedades, capacitado como estou de que a senhora morgada suppõe que lh'as administro mal! Administro mal, administro, porque não forço os caseiros a pagarem o resto das rendas para vossa senhoria o ir gastar no Porto com a familia de seu genro. Depois de uma guerra e em vesperas de outra é que a senhora morgada fala em pagar!
—Pagar é um dever, padre capellão, e quanto mais{12} nos apressamos a fazer o que devemos tanto maior é o repouso do espirito. Bem sei que são más as circumstancias, mas é que tambem esta pobre gente se importa pouco com o calendario, e acha que todo o tempo é tempo. É que tambem não imaginam que se esconda a pobresa detraz de pergaminhos e genealogias. Pois esconde, se esconde! Sabe o padre capellão que eu falei no resto das rendas porque n'esta occasião não ha dinheiro em casa. Ninguem melhor o sabe, porque lhe passam os negocios pela mão. O que é certo é que eu sinto ameaços de pobresa...
—Nem tanto ao mar, senhora morgada...
—Se presinto! Vivo modestamente n'estas solitarias Chãs, encantada nas graças d'Augusta, cerrando ouvidos ao bulicio da cidade que está proxima. Não posso fazer despezas extraordinarias, é preciso não largar a brida da mão para costear as indispensaveis.
—Os chás não são indispensaveis, senhora morgada...
—Magôa-me a sua ironia, padre capellão! Tanto mais que sabe como é limitado o serviço da nossa mesa de jogo. E depois queria que eu fechasse as minhas portas na face do velho Teixeira, amigo leal da nossa casa desde a mocidade de meu marido? Sabe o padre capellão como o morgado deixou as propriedades sobrecarregadas de hypothecas. Mal tenho podido rehabilitar o casal, apesar de todas as economias e da maxima abstenção d'obras de beneficencia...
—Maxima abstenção!...
—É injusto, padre capellão! Refere-se talvez á Augusta... Não sabe que é filha de minha filha, casada por inclinação com um honrado militar do exercito portuguez, a quem não basta unicamente a sua immaculada honradez para ser feliz! Era-me impossivel soccorrer a mãe; soccorri a filha. Eu não podia ir mais longe, senão teria ido. Sempre contrariedades! Sempre o padre capellão a annunciar-me algum novo desastre! Ah! mas d'esta vez creia que não haverá desastre nem contrariedade que me véde o tirar dos hombros uma enorme responsabilidade, levando Augusta para a companhia dos seus, e minha tambem, porque ella é minha, e muito minha, pelo sangue e pelo coração... Em ultimo caso, recorrerei ao emprestimo...{13}
—Outro?
—É minha filha e meus netos que eu prejudico; o padre capellão, não. Todavia, como é para bem d'elles, elles m'o perdoarão. O padre capellão por sua propria mão recebe os juros das quantias que tem desembolçado, e creio que as propriedades que conservo fartamente abastarão ao pagamento do capital, no momento em que queira usar dos seus direitos de crédor.
—Eu não quero...
—Deixe-me figurar a peior hypothese, e evidenciar-lhe que lhe não causam detrimento os seus desembolços.
—Falando francamente, senhora morgada, sou a dizer-lhe que o juro é pequeno...
—Augmente-o como lhe apraza. Não é meu costume questionar cinco réis ao padre capellão.
—Eu sou tão pobre como a senhora morgada, tartamudeou o reverendo com um frouxo de tosse que denunciava estar providencialmente entalado com o osso da mentira.
A morgada gesticulou de incredulidade e enfado.
—Eu sou tão pobre como a senhora morgada, reatou o capellão ajudando-se a engulir a falsidade com um sorvo de rapé—e é á custa de trabalho que tenho recolhido escassas mealhas ao canto da gaveta. De inverno arrosto as neves da madrugada para saír aos campos a espionar os trabalhadores no interesse de vossa senhoria. No verão aguento as calmas do meio dia para os estimular ao trabalho. As horas feriadas de canceiras externas passo-as á banca a fazer a escripturação ou no quarto a rezar as minhas orações. Tenho envelhecido ao serviço de vossa senhoria, e o magro peculio do pobre padre ao trabalho o devo. E o mais é que já vou achando ser horas de descançar... Vejo porém que não seria facil encontrar quem com zelosa dedicação governasse a casa alheia, e, se me é canceira o dirigil-a a despeito da velhice, tambem me é consolação o ouvir dizer-me a consciencia que devo trabalhar por não ver quem facilmente me substitua. Digam embora o senhor seu genro e a senhora sua filha o que quizerem, e me consta que dizem: a verdade é esta...
—Convenho, padre capellão, e é por conhecer a sua desinteressada—a morgada deu a esta palavra{14} uma inflexão sensivelmente ironica—desinteressada dedicação, que tenho batido á sua porta sempre que a necessidade me obriga a incommodar alguem. Se lhe pedia agora para passar aviso aos caseiros, era porque não queria importunal-o com repetidas mercês...
—Nunca me incommodaram as ordens de vossa senhoria, atalhou o padre, curvando-se respeitosamente a meio da sala.
—Eu é que a mim mesma me incommodo com a ideia de incommodal-o, posto que eu não seja dos devedores que mais devem aborrecer por egoistas...
—Creio que já tive a honra de dizer á senhora morgada que a occasião é má para todos.—E proseguiu mirando ao alvo que elle queria attingir: Era porém grande a quantia que vossa senhoria desejava?
—A sufficiente para me transportar ao Porto com a menina, e para não tornar pesada a hospedagem que minha filha haja de