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    Ilustração: Carvall

má alimentação à brasileira

Em 2030, sete em cada dez brasileiros estarão acima do peso

Pesquisa mostra que epidemia de obesidade atinge principalmente os mais vulneráveis, como negros e pessoas de baixa escolaridade

Camille Lichotti e Amanda Gorziza | 01 set 2022_09h47
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Esta reportagem integra a série Má alimentação à brasileira, sobre a fome e a epidemia de obesidade que afetam a população mais pobre do país. Participaram Amanda Gorziza e Camille Lichotti (reportagem), Plínio Lopes (checagem), Fernanda da Escóssia (edição) e José Roberto de Toledo (coordenação).

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Em 2030, sete em cada dez brasileiros estarão com excesso de peso. Desses, estima-se que três serão obesos. É o que mostra um estudo publicado no último mês de julho na revista Scientific Reports. Nele, os pesquisadores projetaram a tendência futura a partir da curva de casos de obesidade entre 2006 e 2019, com dados da plataforma Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), do governo federal. Em 2019, último ano contabilizado no estudo, a prevalência de obesidade era de 20,3%. Mas além de estimar o rápido espalhamento da obesidade entre a população brasileira, a pesquisa revela ainda o aprofundamento de uma crise em curso. No início da próxima década, a maior prevalência de obesidade será encontrada, segundo as estimativas, entre pretos e outras minorias raciais e adultos com baixo nível de escolaridade (isto é, com até sete anos de estudo) – grupos que convivem com as maiores vulnerabilidades socioeconômicas no Brasil. E a maior prevalência dos casos mais graves de obesidade – grau 2 e 3 – estará entre os brasileiros com baixa escolaridade. 

A disparidade socioeconômica que aparece na projeção de dados segue uma tendência mundial. Conforme os países se desenvolvem economicamente, as taxas de obesidade crescem e afetam a população mais pobre de forma mais marcante. Entre 2006 e 2019, os dados da Vigitel já mostravam um aumento proporcionalmente maior do excesso de peso entre mulheres, jovens, pretos e minorias étnicas no Brasil – e a disparidade tende a se intensificar no futuro. 

“É difícil achar explicação única para isso”, diz o epidemiologista Leandro Rezende, professor do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) que participou do estudo. “O que explica a alta prevalência entre mulheres não necessariamente explica o fenômeno racial e de escolaridade. Mas é impossível separar isso do fator econômico e do menor acesso a alimentos saudáveis.” Segundo ele, os determinantes sociais do processo saúde-doença mostram que a epidemia de obesidade, e o recrudescimento que se avizinha, não é apenas uma questão de escolha individual.

A alta do preço dos alimentos, que ajudou a levar milhões de brasileiros ao cenário da fome, provocou uma mudança no cardápio das pessoas. Um levantamento feito pelo ex-secretário nacional de Segurança Alimentar e Nutricional Arnoldo de Campos mostrou que, das 20 maiores altas de preços acumuladas este ano até o mês de abril, 19 foram de alimentos in natura. A previsão de pesquisadores da USP é que produtos ultraprocessados se tornem mais baratos que os alimentos saudáveis a partir de 2026. Mas, de certa forma, a crise brasileira adiantou esse processo. A piauí já mostrou que esses produtos acessíveis e baratos estão aprofundando a desnutrição de crianças e criando fome oculta entre os mais pobres. Existem dados ainda não publicados que relacionam 50 mil mortes por ano ao consumo de ultraprocessados”, diz Rezende. “Quando falamos de insegurança alimentar focamos muito na questão da fome porque isso chama a atenção. Mas a obesidade também entra nesse cálculo. O resultado é uma dupla carga para essa população mais vulnerável.”

A insegurança alimentar está relacionada ao sobrepeso e à obesidade no Brasil, especialmente entre mulheres. Um paper publicado este ano no British Journal of Nutrition mostrou que mulheres com maior insegurança alimentar desenvolveram mais obesidade comparada à média geral. Entre as brasileiras em situação de insegurança alimentar moderada e severa, a prevalência de quadros mais graves de obesidade é quase o dobro da reportada entre mulheres em segurança alimentar. “Os brasileiros mais jovens estão comendo cada vez mais alimentos ultraprocessados e preparando menos sua alimentação”, diz a epidemiologista Rosely Sichieri, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), especialista em análise nutricional e uma das autoras do estudo.

Analisando a última Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), de 2018, ela notou pela primeira vez o aparecimento do sanduíche entre os alimentos mais consumidos pelos brasileiros. “Não há detalhamento sobre o tipo de sanduíche, mas só a forma já chama a atenção, porque provavelmente significa o consumo de lanches em vez de refeições”, explica. De 2020 a 2021, por exemplo, a taxa de crianças de 2 a 4 anos que comem feijão, diminuiu 35%, e a das que comem hambúrguer aumentou 43%. “E quanto pior a qualidade dos alimentos, mais você come para se saciar”, continua Sichieri.

É basicamente o que diz a teoria da alavanca proteica, segundo a qual a falta de proteína levaria a uma ingestão excessiva de gorduras e carboidratos. De acordo com os estudos desenvolvidos pelo professor David Raubenheimer, da Universidade de Sydney, na Austrália, o ser humano é capaz de combinar diferentes apetites para manter uma dieta equilibrada, que contém cerca de 15% de proteína. Caso haja um desequilíbrio – o consumo, por exemplo, de ultraprocessados e fast food – nosso “apetite proteico” nos levaria a consumir mais gordura e carboidratos, normalmente de má qualidade, para compensar o déficit de proteína. Isso ajuda a explicar por que a obesidade também se manifesta quando as pessoas seguem uma dieta mais pobre em nutrientes. “E é especialmente grave no Brasil atual, onde a proteína animal de boa qualidade praticamente sumiu do prato”, lembra Sichieri.

 

O aumento da obesidade no Brasil trará um dos maiores desafios para o sistema público de saúde, que já está subfinanciado. Só em 2019, foram gastos mais de 1,4 bilhão de reais com doenças crônicas não transmissíveis relacionadas ao excesso de peso no Brasil, além de 496 mil hospitalizações e 32 milhões de procedimentos ambulatoriais realizados pelo SUS atribuíveis ao sobrepeso e obesidade.“A gente vai precisar dar conta dessa avalanche de doenças que vem por aí. Vamos ter, por muito tempo, uma predominância de doenças crônicas como principais causas de hospitalização e morte.” Nesse quesito, a desigualdade também dá as caras. Um estudo recente publicado na revista Nature Reviews Disease Primers  – em que o Brasil foi um dos países analisados – mostrou que os mais pobres começam a apresentar múltiplas doenças crônicas dez anos antes dos ricos. 

“Além disso, o aumento da obesidade deve colocar, em breve, a obesidade como principal causa de câncer no Brasil e no mundo, superando o tabagismo”, prevê o epidemiologista Leandro Rezende, da Unifesp. Não bastasse todas as doenças crônicas relacionadas ao excesso de peso, a obesidade está entre as maiores causas de pelo menos dez tipos de câncer – associação que já é reconhecida pela Organização Mundial da Saúde e pelo World Cancer Research Fund. O risco individual para o desenvolvimento de câncer é comprovadamente maior para tabagistas que para obesos – mas, por outro lado, uma parcela muito maior da população está exposta ao excesso de peso em comparação ao tabaco, o que aumenta o risco coletivo. “Você tem hoje 9% da população fumante, considerando o cigarro, e é um número que continua em queda. Para o excesso de peso a prevalência é 50% e pode chegar a 70%. É isso o que deve fazer com que o excesso de peso seja a primeira causa de câncer no Brasil”, avalia Rezende.

O epidemiologista evita fazer competições entre os fatores de risco porque, segundo ele, todos são grandes desafios de saúde pública. “Eu prefiro colocar em perspectiva o controle do tabaco para pensar na obesidade”, afirma. “Para controlar o tabagismo a gente teve que tributar, rotular adequadamente, criar ambientes livres de cigarros, reduzir consideravelmente o marketing etc. É uma boa receita para pensar no controle da obesidade, que está crescendo num ritmo catastrófico no Brasil.” O setor alimentício é, contudo, muito mais difícil de ser regulado porque as empresas são implacáveis no marketing e fazem lobby contra a aprovação de leis que restringem o consumo de produtos. “Apesar de todos os malefícios conhecidos do refrigerante, a televisão diz: ‘beba a felicidade’”, exemplifica o pesquisador. “Em última instância, se você tributa e a pessoa não consegue mais comprar, ela vai entender que não pode mais ser feliz, mesmo sendo algo que claramente não faz bem.”

Segundo Rezende, a estimativa para 2030, feita em colaboração com outros pesquisadores, ainda é conservadora. Como os cálculos foram realizados levando em conta a curva até 2019, o estudo não contabilizou o “efeito pandemia”, que pode aumentar ainda mais a velocidade de crescimento da doença. “Pode ser que o futuro seja bem pior. Podemos chegar, por exemplo, ao nível dos Estados Unidos [que tem a maior população obesa do mundo].

 

O isolamento imposto pela pandemia de Covid elevou o nível de estresse e a ansiedade do gaúcho Cassio Silva. Para ele, recorrer à comida foi uma forma de aliviar a sensação do período turbulento. Com 34 anos, ele chegou a pesar 150 kg em junho de 2021. Segundo a Organização Mundial da Saúde, o peso ideal para sua altura e idade é de 60 a 81 kg. Apesar do momento de crise ter agravado sua condição alimentar, Silva convive com o sobrepeso desde os 10 anos de idade. Ainda criança, o ganho de peso veio como uma combinação de fatores: a maior ingestão de ultraprocessados, somada ao uso de remédio para asma que contém corticoide (substância que pode aumentar o apetite). Ao longo dos anos, Silva teve uma rotina alimentar regada a fritura, bolachas recheadas e salgadinhos – e, com isso, passou a engordar cada vez mais. 

“Para quem já tem excesso de peso, comer é uma saída aos desconfortos da rotina”, diz Silva. Em função da obesidade, o gerente administrativo desenvolveu hipertensão aos 18 anos, além de hérnia de hiato (parte do estômago acima do diafragma por causa do excesso de gordura), dor nas articulações, colesterol e alta taxa de triglicerídeos. Em 2019, ele iniciou o tratamento com acompanhamento de nutricionista, endocrinologista e psicólogo – um privilégio a que poucos têm acesso. Seu objetivo é chegar a um peso adequado para evitar novas complicações de saúde no futuro. “Parei de comer besteiras, larguei as frituras e estou comendo mais legumes e verduras”, afirma. Atualmente, ele está pesando 135 kg. 

A alta prevalência da obesidade tanto na infância quanto na fase adulta fazem parte da história epidemiológica do Rio Grande do Sul. Dados compilados pela piauí e pela agência de dados Fiquem Sabendo, com base no Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan), do Ministério da Saúde, mostram que a obesidade em crianças gaúchas de 5 a 10 anos cresce constantemente desde 2008. No ano passado, 14% estavam obesas – o dobro do que foi registrado no início da série histórica. O Sisvan registra peso e altura de crianças que chegam à rede de atenção primária do sistema público de saúde, a maioria atendida por programas sociais. Somando os dados de sobrepeso, obesidade e obesidade grave, o Rio Grande do Sul apresenta a situação mais crítica dos estados brasileiros, com 44% das crianças com excesso de peso. Ao todo, o país já tem quase um terço das crianças de 5 a 10 anos com excesso de peso

“Para os pacientes que já tinham obesidade, a pandemia agravou ainda mais a condição”, afirma Carolina Petry, endocrinologista do Centro de Tratamento da Obesidade do Hospital Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Mas a pandemia apenas piorou um cenário que já era grave. Antes de 2020, o Rio Grande do Sul já era o estado com a maior proporção de pessoas obesas no Brasil. Junto com o aumento do excesso de peso infantil, a obesidade entre adultos também praticamente dobrou entre 2008 e 2021: saltou de 25% para 43% nesse período. Somando os dados de sobrepeso, obesidade e obesidade grave, mais de 70% dos gaúchos pesados no sistema público de saúde estavam com excesso de peso no ano passado. 

Os dados do Sisvan também foram utilizados para outras reportagens da série Má alimentação à brasileira. Elas revelaram que, em nove estados, a taxa de crianças de 5 a 10 anos em situação de magreza ou magreza acentuada aumentou nos últimos dois anos. Os dados também mostram que a proporção de grávidas com obesidade dobrou nos últimos anos, fazendo o ciclo de má nutrição começar ainda na barriga da mãe. 

“Não podemos tratar a obesidade de forma individual e centrada só na pessoa, sem olhar para o contexto dela. É um problema complexo”, diz Ilaine Schuch, professora de Nutrição da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O aumento desenfreado da obesidade no estado se reflete na atual sobrecarga do sistema de saúde regional – e como algumas das doenças relacionadas ao excesso de peso são crônicas, os pacientes estarão sempre demandando atendimento do serviço de saúde. “São doenças que necessitam de diferentes especialidades de tratamento, medicação e internação, o que gera uma sobrecarga”, explica Schuch.

 

A situação do Rio Grande do Sul dá o tom da crise que se dissemina pelo Brasil – e demonstra a dificuldade em reverter o cenário da obesidade. Tanto que a meta do Ministério da Saúde é reduzir a velocidade de aumento dos casos até 2030. “Até o Ministério já reconhece que não é factível reduzir a obesidade até 2030, tampouco manter a prevalência estável. A meta é reduzir o incremento, para depois a gente discutir a manutenção da taxa e só então pensar na queda”, ressalta Rezende. Para ele, será necessário discutir políticas públicas, prevenção e promoção de saúde. “Não vai ser só falando de tratamento individual porque isso é enxugar gelo”, afirma ele, lembrando que é necessário mudar a forma como a sociedade se organiza no acesso à alimentação – uma ação nada trivial.

Em seu primeiro dia de governo, o presidente Jair Bolsonaro extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), comitê que reunia representantes da sociedade civil e da administração pública para pautar e monitorar as políticas de segurança alimentar e nutricional. O conselho era a cabeça do sistema de segurança alimentar no Brasil. Atualmente, os representantes estaduais são referência de resistência institucional frente ao retrocesso do governo federal. No final de julho, foi realizada a 8ª Conferência de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável do Rio Grande do Sul, no qual foram aprovadas 94 diretrizes. Mesmo assim, as propostas elaboradas para tentar reverter o quadro nutricional estadual não encontram respaldo da administração pública. “Não há nenhuma perspectiva no que se refere ao orçamento governamental de incorporar essas propostas que vieram da sociedade civil”, afirmou o presidente do Consea do estado, Juliano de Sá.

Além disso, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), um dos mais importantes para a segurança alimentar do país, ficou à deriva durante a pandemia, o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA) foi esvaziado e substituído pelo Alimenta Brasil, que teve o orçamento quase zerado em 2021. Até hoje, o governo Bolsonaro não apresentou o Programa Nacional de Segurança Alimentar, documento que deveria orientar as políticas nutricionais entre os anos de 2020 e 2023. E não existe mais Consea para cobrá-lo. 

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