Sátira britânica sobre a fuga de dom João para o Brasil: ideais e mentalidades, ainda que necessárias para sustentar a ação política, não bastam para explicar a deflagração de revoltas CRÉDITO: BIBLIOTECAS BODLEIAN_1808_THE BRITISH MUSEUM
A crise inaugural
Na raiz da Independência do Brasil, déficit, inflação e insatisfação generalizada
Rafael Cariello e Thales Zamberlan Pereira | Edição 181, Outubro 2021
O Brasil nasceu de uma crise fiscal. Seu pai foi o déficit. Sua mãe, a inflação. Às vésperas da Independência, assim como viria a acontecer outras tantas vezes na história do país, a gestão das contas públicas se revelou decisiva para a sustentação política do governo – e o de dom João VI, depois de ter raspado os cofres, finalmente ruiu.
Brasileiros de quase todas as idades, em qualquer época, são capazes de reconhecer os contornos do problema enfrentado pelo monarca e por seus ministros naquele início do século XIX. Mas foram poucas as crises desse tipo que tiveram implicações políticas tão profundas. O que estava em jogo nas décadas de 1810 e 1820 não era a disputa entre grupos partidários ou ideológicos sobre o cabimento deste ou daquele gasto, ou mesmo um embate circunstancial por maior ou menor equilíbrio orçamentário – disputas que pouco mais tarde se tornariam corriqueiras e legítimas. O que estava em jogo, animando as conversas dos grupos maçons, as trocas de ideias nos quartéis e nos seminários, os artigos de jornal e, afinal, as manifestações nas sacadas e nas ruas, era a própria definição de quem poderia tomar as decisões sobre o orçamento: se o rei, sozinho e discricionariamente, ou representantes de cidadãos e contribuintes. No fim das contas, as insatisfações e os conflitos provocados pelo descalabro financeiro da Corte joanina trariam como resultado a ruína do absolutismo e a instalação de uma monarquia constitucional na América do Sul.
As receitas e as despesas estatais não explicam tudo, é verdade. Os gastos crescentes da Corte de dom João, ao longo de todo o seu período no poder, estiveram associados à criação e à elevação de tributos – para financiar os dispêndios determinados pelo monarca –, à desvalorização da moeda, ao aumento de preços e, ao fim e ao cabo, à paralisia e à desordem administrativa. Não era pouca coisa. Mesmo assim, a bolsa vazia do erário não foi a única causa dos sobressaltos e conflitos que abalaram a monarquia portuguesa dos dois lados do Atlântico. Como toda reviravolta política decisiva e traumática, uma série de modificações de longo prazo – ideológicas, institucionais e materiais –, ligadas a circunstâncias e peripécias particulares, precisaram confluir para que as coisas se passassem como hoje contam os livros didáticos. Mas o nexo fiscal, capaz de articular fenômenos políticos e econômicos, organiza a história melhor do que qualquer outro aspecto particular do processo. Sem ele, torna-se bem mais difícil conferir clareza e inteligibilidade às revoltas e aos embates que levariam à separação política entre portugueses e brasileiros.
Como costuma acontecer nesses casos, o problema orçamentário do Antigo Regime português foi crônico, antes de se precipitar numa crise aguda. Quando afinal dom João VI teve o seu poder contestado por levantes militares e da população urbana em Portugal e no Brasil, em 1820 e 1821, as dificuldades para manter as contas no azul já contavam pelo menos duas décadas. Desde o final do século XVIII, e em particular depois do início das Guerras Napoleônicas (1803-15), numa Europa conflagrada, Portugal vinha sendo obrigado a fazer gastos de defesa – com o Exército e com a Marinha – incompatíveis com as suas receitas. Embora consumisse durante todo esse período sempre mais de 50% das receitas portuguesas, o dispêndio de defesa não foi suficiente para impedir a invasão francesa, em novembro de 1807. Às pressas, quase à ponta das baionetas dos soldados de Napoleão, a Corte e a família real embarcaram em Lisboa, transferindo todo o governo, por mar, para a América do Sul. Ao se aproximarem da costa, em Salvador ou no Rio, cortesãos e funcionários do Estado português se depararam, ainda nos navios, com um cenário que não lhes era de todo desconhecido. Assim como eles, que haviam acabado de cruzar o Atlântico, também “as igrejas, os sobrados, as moradas-inteiras, as meia-moradas e até a porta e as janelas que se apertavam nas ruas estreitas podiam ter sido trazidos inteiros de Lisboa”, segundo a descrição do historiador Alberto da Costa e Silva.
Haveria contudo profundos contrastes entre o dia a dia no novo continente e a vida a que os recém-chegados estavam acostumados na Europa. Ao desembarcar, a elite administrativa portuguesa pôde afinal conhecer, de perto, a sociedade escravista que havia ajudado a montar. Uma sociedade em que os escravizados eram não apenas a força de trabalho essencial para quase todas as atividades econômicas, mas também bens suntuários, que conferiam status aos seus donos. “Os que possuíam muitos cativos faziam questão de, ao ir à missa de domingo, por exemplo, ser acompanhados por alguns deles, as escravas cheias de joias e vestidas de sedas ou algodões finos, com rendas e bordados, e os homens de coletes, camisas com folhos e calças cingidas às pernas”, observou Costa e Silva. “Uns e outros, porém, quase sempre descalços, porque era da condição do escravo andar de pé no chão.” A indignidade da falta de sapatos era de toda forma o menor dos problemas dos brasileiros e africanos escravizados. Sob as roupas talvez suntuosas naquele dia de domingo, muitos traziam as marcas dos açoites frequentes. Máscaras de metal acopladas ao rosto também eram usadas nos castigos e, como lembra Katia Mattoso, “até 1824, as mutilações de escravos desobedientes eram autorizadas e corriqueiras: marcas com ferro em brasa, dedos esmagados, orelhas cortadas, pés em parte amputados”.
A montagem da Corte nesse Novo Mundo, com seus gastos palacianos e centenas de funcionários, agravou o problema das contas do governo. Na Europa, os representantes de dom João continuavam a fazer pagamentos a soldados e oficiais, bancando os custos de um Exército liderado pela Inglaterra, empenhado nas repetidas campanhas de expulsão das tropas de Napoleão do território português. Enquanto isso, deste lado do Atlântico, cresciam os desembolsos com inúmeros cortesãos no Rio de Janeiro. Quando a guerra finalmente chegou ao fim no continente europeu, em 1815, trazendo promessas de alívio para o Tesouro, dom João decidiu abrir, no que seriam os seus anos derradeiros de reinado em terras fluminenses, uma nova e custosa frente de batalha na América do Sul, desta vez com o objetivo de conquistar a região Cisplatina, atual Uruguai, para a dinastia de Bragança.
A penúria constante do erário, assaltado por todas essas exigências, encontrou solução apenas parcial na elevação de impostos, desde logo gerando insatisfações – em particular nas províncias da região que no século XIX se chamava o Norte, da Bahia para cima, tributadas pesadamente em suas ricas produções de açúcar, tabaco e algodão. Como mesmo isso – o aumento de encargos e a criação de novos impostos – não bastasse para fechar as contas, o governo não demorou a recorrer ao Banco do Brasil, fundado ainda em 1808, tornando-se de longe o seu principal devedor nos anos seguintes. Aos empréstimos forçados no banco público, associou-se a recunhagem de moedas, com maior valor de face do que a prata ou o cobre que as compunha, e, no final da década de 1810, a emissão descontrolada de papel–moeda, numa tentativa derradeira de cobrir a diferença entre receitas e despesas. O resultado foi a inflação.
Itens essenciais de consumo das massas urbanas e dos escravizados no meio rural, como a farinha de mandioca e a carne-seca, sofreram aumentos de preços expressivos entre 1815 e 1820 – pelo menos dobrando de valor, no caso da farinha, enquanto a arroba de carne–seca triplicava de preço, nesse mesmo período. Farinha e charque mais caros significavam aumento de custos para os grandes proprietários, que compravam esses produtos a fim de alimentar os seus plantéis de cativos. Significavam também uma elevação repentina do custo de vida para a população das cidades, incluindo aí milhares de soldados e integrantes das milícias, garantidores da ordem e do statu quo, espalhados pelo país. Assim, nos anos derradeiros da década de 1810, a inflação havia se tornado um problema que afetava o conjunto dos súditos americanos de dom João VI, dos cortesãos aos simples professores de província.
Em 1819, por “conta da carestia, da inflação sobre os preços dos mantimentos, a população da cidade do Rio de Janeiro viu-se em meio à maior crise de abastecimento de que se podia ter memória e, irada, instou providências rápidas junto ao rei”, observou o historiador Jurandir Malerba. Naquele mesmo ano, os empregados nas escolas de primeiras letras de Salvador enviaram uma petição ao monarca solicitando aumento de ordenados, por causa da “carestia dos víveres”, que se encontravam “em uma grandeza de preço inconjecturável”. No documento, os professores primários indicavam que outros funcionários públicos já haviam recebido aumentos pela mesma razão, ou seja, para que seus salários não perdessem tanto poder de compra. Ocorre que àquela altura, às vésperas das revoltas que culminariam na instalação de uma assembleia constituinte em Lisboa, o governo já não conseguia fazer os pagamentos em dia – um problema que atingia parte das tropas, além dos oficiais que as comandavam. Dom João alcançou assim a façanha de unir em Portugal e no Brasil, numa onda crescente de insatisfações, quase todo o espectro social e econômico dos seus súditos.
Logo já se falava em mudança política, no fim do absolutismo – algo que não chegava a surpreender nem era exatamente uma novidade. Ao se verem constrangidos por problemas fiscais e seus efeitos econômicos e sociais, como a falta de pagamentos e a inflação, Portugal e o Brasil na verdade repetiam um roteiro cumprido antes, desde o século XVIII, por vários monarcas, governos e seus súditos, na Europa e na América. De modo geral, foram sobretudo as exigências de crescentes gastos militares que constrangeram as finanças de boa parte dos países europeus e das sociedades do mundo atlântico naquela época – embora os gastos palacianos, para manutenção da Corte e dos cortesãos, tenham contribuído para o problema no caso luso-brasileiro, ao diminuírem a margem de manobra dos ministros joaninos. Além de espantosamente frequentes, as guerras haviam se tornado também mais caras, crescentemente mais caras, entre meados do século XVII e o início do XIX. Na Inglaterra, por exemplo, os gastos militares mais que dobraram entre 1710 e 1780, crescendo em mais de 30% a fração da renda nacional consumida pelos dispêndios bélicos. Naquelas mesmas décadas, Espanha e França, inimigas tradicionais dos ingleses, não tiveram outra saída senão também aumentar o volume de recursos destinados à Marinha e ao Exército.
Por algum tempo os cofres estatais aguentaram a pressão – até que não puderam mais. Presas a uma espiral de gastos militares que haviam se tornado existenciais – quem não investia em defesa corria o risco de perder territórios e fontes de recursos –, as monarquias da época logo se viram obrigadas a repetir as mesmas fórmulas na tentativa de solucionar seus problemas financeiros: mais tributos, novos empréstimos, em geral seguidos de calotes, suspensões de pagamentos, às vezes inflação. Inevitavelmente, acabaram por gerar insatisfações generalizadas entre seus súditos – e, por fim, as crises políticas e econômicas que, na França, nos Estados Unidos, na América hispânica, empurraram governos e antigos arranjos políticos para além da beira do precipício. Seria só por meio de constituições e parlamentos, concedendo uma representação política ampliada aos seus cidadãos e contribuintes, que esses Estados afinal conseguiriam equilibrar as contas. De um lado, limitando gastos. Mas também ao ter, finalmente, acesso a volumes maiores de recursos, votando e autorizando tributos que, embora mais vultosos, detinham legitimidade maior. A era das revoluções foi também, e não à toa, a era das crises fiscais – e Portugal e o Brasil não constituíram exceções nessa história.
A primeira cidade a se levantar com sucesso contra os abusos do governo joanino foi o Porto, no Norte de Portugal, no dia 24 de agosto de 1820. O movimento não demorou a encontrar apoio em Lisboa, mas também do outro lado do Atlântico, numa sequência de sublevações militares que contaram com o apoio das populações urbanas: no Pará, na Bahia e logo no Rio de Janeiro, coração do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Todas pediam Constituição, ou seja, limites aos poderes do rei. As Cortes Constituintes, encarregadas de escrever as leis fundamentais da monarquia representativa, foram instaladas no início de 1821, em Lisboa. Contando com representantes brasileiros e portugueses, trataram de extinguir arbitrariedades do Antigo Regime antes mesmo que a nova Carta fosse promulgada.
Entre os direitos imediatamente discutidos pelos deputados, e logo assegurados, estava a liberdade de imprensa. Em julho de 1821 as Cortes aprovaram a legislação que abolia a censura prévia. No Rio de Janeiro, no dia 28 de agosto de 1821, o governo do príncipe regente dom Pedro emitiu ordem semelhante, em conformidade com o que já vinha sendo discutido nas Cortes, pondo fim a qualquer empecilho à publicação de textos. Apenas onze semanas mais tarde, no dia 10 de novembro, jornais fluminenses traziam o anúncio, pago por um livreiro carioca, da célebre obra de Jean-Jacques Rousseau, Do Contrato Social. O volume, “outrora” proibido, dizia o negociante, podia agora ser encontrado à venda em sua loja, no Centro da cidade. A pesquisadora Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, ao relatar a história no livro Corcundas e Constitucionais: A Cultura Política da Independência (1820-1822), chamou a atenção para o tempo exíguo que separava as duas datas – a do afrouxamento dos controles sobre as publicações, determinado por dom Pedro, e a do anúncio da obra de Rousseau. Como as viagens entre Lisboa e o Rio duravam, na época, aproximadamente dois meses, às vezes um pouco menos, em apenas onze semanas certamente não transcorrera o prazo das duas pernas de travessia atlântica necessárias para o livreiro fazer o pedido e receber de volta o livro, encomendado na Europa, antes de colocá-lo à venda. Rousseau muito provavelmente já circulava entre os leitores cariocas, e era vendido no Centro da cidade, mesmo antes de receber o beneplácito do novo governo constitucional.
A profusão de termos típicos do Iluminismo e do liberalismo nos jornais da época – liberdade, igualdade, razão, Luzes, tirania e despotismo –, assim que se viram livres da censura, e o grande número de publicações avulsas que traziam em seus títulos as palavras “Constituição” ou “Constitucional” – os termos apareciam no cabeçalho de 26 dos 100 folhetos editados no Rio de Janeiro em 1821 – indicam, de maneira mais ampla, algo que o caso específico do Contrato Social já sugeria: a liberdade de expressão, conquistada com o fim do absolutismo, se pareceu menos com uma lenta e cuidadosa abertura de comportas, permitindo a livre circulação de ideias, do que com o rompimento brusco e explosivo de uma barragem, dando vazão às ideias políticas iluministas que já pressionavam por mudanças na Península Ibérica e na América portuguesa.
Relatos de viajantes e processos judiciais confirmam que pelo menos desde o final do século XVIII as ideias liberais – ou seja, as ideias críticas ao absolutismo e defensoras de regimes políticos representativos – já circulavam na colônia. Ganhariam impulso redobrado depois de 1808, com a abertura dos portos. Como se sabe, ao chegar ao Brasil dom João VI pôs fim ao comércio exclusivo da América portuguesa com a metrópole, permitindo a partir de então trocas na costa brasileira com negociantes e navios provenientes de todas as “nações amigas”. O incremento de comércio contribuiu para a divulgação das ideias políticas iluministas entre os brasileiros, não só por colocar os principais centros urbanos locais em contato mais frequente com a Europa, mas também por elevar a renda dos súditos de dom João VI, ao mesmo tempo em que barateava o preço dos livros, antes monopolizados pelos vendedores portugueses. “A maior latitude do comércio produziu também mais ampla notícia do que se passava em outros países, e daí se seguiu muito descontentamento com o governo”, observou o comerciante inglês John Armitage, referindo-se ao período joanino. Louis-François de Tollenare, que morou em Pernambuco na década de 1810, notou que a política europeia era uma verdadeira “mania” entre os frades locais, ansiosos por debater detalhes da Revolução Francesa.
Tudo somado, em 1821 e 1822 assistiu-se no Brasil a um “triunfo do liberalismo”, na expressão de Pereira das Neves. De fato, o que se colocou em prática, quando à força das armas se esvaziou o poder de dom João VI, e quando por meio das cédulas de votação se instituiu um poder parlamentar, foram as ideias de John Locke – que sistematizou a possiblidade de resistência legítima a um monarca que abusa de suas prerrogativas – e de Montesquieu – autor da ideia de separação entre os poderes como mecanismo capaz de frear o impulso universal, demasiadamente humano, de abuso do poder –, entre outros teóricos e filósofos liberais. Sem esses pensadores, dificilmente a mudança política radical que se operou no início da década de 1820 teria sido levada a cabo, porque aos seus defensores faltariam tanto a justificativa política e moral, capaz de congregar e mover uma multidão de indivíduos insatisfeitos, como também o projeto, ou seja, a noção mais ou menos clara de para onde se desejava ir. Fazia diferença conhecer de antemão as instituições que a multidão rebelada pretendia colocar no lugar do rei despótico: Constituição, separação entre os poderes, garantia das liberdades individuais etc.
As ideias são tão importantes para as revoluções liberais – aliás, para as revoluções em geral – que houve quem lhes atribuísse um papel, se não exclusivo, certamente decisivo no conjunto de mudanças políticas por que passaram os principais países europeus e do mundo atlântico entre o final do século XVIII e meados do XIX. O Iluminismo, escreveu a historiadora Gertrude Himmelfarb, “transbordou dos filósofos e dos intelectuais para os políticos e os negociantes, penetrando naquilo que os historiadores contemporâneos chamam de mentalités dos povos, aquilo a que Alexis de Tocqueville se referia como os moeurs: os ‘hábitos da mente’ e os ‘hábitos do coração’ que perfazem ‘a totalidade moral e intelectual de um povo’”.
Diante dessa história de inequívoca mudança das mentalidades no período das Luzes – que afinal teria motivado transformações políticas entre os séculos XVIII e XIX –, será mesmo necessário apelar para o bolso, para os efeitos da crise fiscal? As ideias, as mudanças nos modos de entender o que é justo e aceitável, não bastam para explicar a derrubada do absolutismo, inclusive no Brasil? Qual o papel dos interesses particulares, dos prejuízos provocados pela gestão econômica, por exemplo, em um processo que parece impulsionado por ideais de igualdade e liberdade? As experiências históricas de Minas Gerais e de Pernambuco, pouco tempo antes da Independência, talvez nos ajudem a responder.
A frustrada revolução que pretendia libertar Minas do poder metropolitano português – a Inconfidência ou Conjuração Mineira – foi sem dúvida inspirada por ideais liberais. Alguns dos homens mais ricos e cultos da capitania produtora de ouro se associaram à conspiração que, no final da década de 1780, pretendia depor o governador local, o visconde de Barbacena. Esses homens não só eram donos de bibliotecas formidáveis – com inúmeras obras do Iluminismo francês, exemplares da Enciclopédia de Diderot e D’Alembert, os artigos da Confederação e constituições estaduais norte-americanas – como mantinham o costume de se encontrar regularmente para, à mesa do carteado, debater as ideias e as notícias políticas que chegavam da Europa e dos Estados Unidos. Os princípios liberais também apareciam nos planos que os conspiradores fizeram para a nova república sul-americana, depois do sucesso de sua rebelião: cada importante cidade mineira teria o seu pequeno parlamento, todos eles submetidos ao parlamento principal, em Vila Rica; e para preencher as bancadas dessas assembleias os cidadãos mineiros seriam chamados de maneira regular, anualmente, a votar. Embora os ideais representativos tenham ajudado a justificar e a organizar o quase levante, não foram eles, contudo, os responsáveis por unir os magnatas mineiros, nem por impeli-los, com urgência, a agir. A urgência veio do bolso.
Em 1788 chegou a Vila Rica um novo governador com ordens expressas para cobrar antigas dívidas ainda pendentes com o Erário Régio. Durante algumas boas décadas a elite local tinha sido capaz de manter relações profícuas, bastante lucrativas, com os representantes da Coroa em Minas – a tal ponto que alguns dos homens mais ricos da região haviam feito fortuna desviando recursos do Estado. Esses magnatas venciam leilões de contratos de impostos, realizados regularmente pelo governo, recebendo o direito de cobrar os tributos dos súditos mineiros. Em contrapartida, deviam adiantar à Coroa uma parte dos valores que só mais tarde iriam recolher. Dispondo de legitimidade e reconhecimento estatal, os contratadores batiam às portas dos moradores, ou interceptavam viagens nas principais estradas da capitania, cobrando e recolhendo montanhas de recursos. Ocorre que o dinheiro prometido à Coroa na hora do leilão demorava a ser entregue aos cofres estatais – em muitos casos, nunca chegava a ser recolhido. Como em meados do século o tempo era de vacas gordas, e o principal tributo da capitania, o quinto do ouro, fluía regularmente para Lisboa, o governo metropolitano por muito tempo fechou os olhos para essas dívidas, e para os impostos a que elas se relacionavam – em geral ligados ao comércio local. Agora, com o declínio da produção aurífera, um novo governador havia sido enviado a Minas com ordens para cobrar as dívidas atrasadas, até o último centavo. Não demorou a surgir, em reação, um plano para cortar a sua cabeça e declarar a independência local.
Os princípios liberais, os valores iluministas, haviam sido condições necessárias, mas não suficientes para a tentativa de revolução. O que as ideias sozinhas, o mundo das mentalidades, nunca conseguiriam responder é a pergunta fundamental de qualquer pesquisa histórica: por que naquela data? Afinal, fazia décadas que os magnatas mineiros dispunham das ideias e das condições mentais e materiais para se dissociarem da metrópole. Locke publicou a sua obra de filosofia política ainda no final do século XVII. O Espírito das Leis, de Montesquieu, é de 1748. As ideias não bastaram. Foi preciso que algo, algum outro incentivo, deflagrasse a ação. O incentivo estava no fato de que, como mostrou o historiador Kenneth Maxwell, a cobrança efetiva de todo o montante devido por aquela pequena elite mineira aos cofres de Lisboa representaria a sua ruína financeira. Os magnatas acossados pelo visconde de Barbacena se viram subitamente ameaçados de “perder todo seu patrimônio” e reagiram.
A Revolução Pernambucana de 1817, que a rigor já faz parte das contestações ao governo de dom João VI no Rio de Janeiro – contestações que iriam desaguar na instalação das Cortes Constituintes e na Independência do Brasil –, também tem origens materiais, circunstanciais, associadas à influência dos princípios liberais. Tollenare observou que naquela segunda década do século XIX no Recife, depois que a “comunicação com a Europa” se multiplicou, muitos homens ricos trataram de formar e renovar suas bibliotecas, com especial apreço pela filosofia francesa do século XVIII. Um dos entusiastas da sublevação contra a Corte fluminense, Antônio Gonçalves da Cruz, o Cruz Cabugá, chegou a ser descrito por um contemporâneo como um “prisioneiro dos franceses revolucionários”, um “encantado da liberdade”. Ocorre que, mais do que as discussões nos salões e nas bibliotecas, foi o aumento repentino do preço dos alimentos que acabou por empurrar parte das tropas e das classes pobres urbanas de Olinda e do Recife para a causa revolucionária da elite pernambucana – uma elite ilustrada que, sozinha, sem soldados, dificilmente teria ido longe.
Há indícios de que, no início de 1817, os preços dos gêneros alimentícios e dos bens de primeira necessidade cresceram velozmente, num surto inflacionário provocado, em última instância, pelas políticas da Corte. A alta dos alimentos foi constatada pelo cônsul-geral da França no Brasil, Jean-Baptiste Maler, que em um ofício ao seu governo apresentou como causas da participação militar na revolta em Pernambuco a inflação e a perda de valor dos pagamentos feitos às tropas. “Há mais de um ano que a guarnição de Pernambuco era mal paga e mal alimentada”, escreveu Maler. “A mandioca para a classe indigente vinha de fora [da província] e era comprada por preços muito elevados.” Diante dessa situação, propôs-se à tropa o “injusto dislate”, o despautério, de “dar-lhes as rações de pão em espécie e de lhes abonar 16 soldos por cada saco de mandioca, cujo preço no mercado era de 50 soldos”. A revolta que começou então nos quartéis logo transbordou para as ruas, unindo a população desesperada com a carestia à elite que havia muito estava insatisfeita com os altos impostos recolhidos na província e enviados ao Rio de Janeiro.
É ainda razoável supor que uma desvalorização das moedas de cobre em Pernambuco tenha contribuído para a elevação dos preços locais – e, assim, para a insatisfação popular, militar e a revolta contra a Corte fluminense. O comerciante e engenheiro alemão Johann Sturz, que passou uma primeira temporada no Brasil entre 1823 e 1827, registrou em sua obra sobre as finanças e a economia do novo país que, no governo joanino, “a Corte do Rio tinha frequentes e urgentes necessidades de dinheiro”, recorrendo por isso aos tesouros das províncias, das quais exigia a transferência de recursos antecipados. Pressionadas, as autoridades pernambucanas teriam tomado em determinado momento, segundo Sturz, a “resolução fatal de recolher todas as moedas de cobre então em circulação na província, com o objetivo de reemiti-las com o dobro do valor de face que antes portavam”. Sturz não diz, em seu texto, quando exatamente essa providência teria sido tomada, indicando apenas que se tratava de um fato anterior a 1822. Há evidências, contudo, de que a recunhagem e seus efeitos inflacionários tenham acontecido às vésperas da Revolução de 1817.
Na sua História Geral do Brasil, Francisco Adolfo de Varnhagen reproduz a correspondência de um morador de Pernambuco ao jornal O Portuguez, editado em Londres. Na carta, publicada no periódico em dezembro de 1816, o missivista brasileiro faz referência aos “danos causados” em Pernambuco “pela impolítica medida da alteração do valor da moeda de cobre”. Poucos meses depois, em março de 1817, rebentava a revolta no Recife – acompanhada, como aconteceria tantas vezes nas décadas seguintes, dos gritos de “mata marinheiro”, ou seja, de ódio contra os pequenos comerciantes portugueses, os quais muito provavelmente pagavam o pato por um aumento dos preços dos alimentos em última instância provocado pelos ministros de dom João.
Ainda que importantes, esses dois exemplos são insuficientes, por óbvio, para esgotar o debate entre idealismo e materialismo na história. Mas talvez sejam capazes de tornar mais convincente o argumento de que as ideias e as mentalidades, mesmo sendo necessárias para a sustentação dos movimentos políticos, são no fim das contas insuficientes para explicar a deflagração de revoltas – os momentos em que afinal se passa, justamente, das ideias à ação. Ameaças de prejuízos materiais, mudanças arbitrárias de regras ou costumes, graves ofensas à identidade ou aos valores de determinado grupo: o que impele os sujeitos históricos a agir não precisa necessariamente ser de ordem pecuniária, mas tem que lhes dizer respeito pessoalmente, profundamente, inclusive para suplantar os prováveis custos da derrota, que serão sentidos na carne. No caso da Inconfidência Mineira, os participantes, depois de denunciados e julgados, chegaram a ser condenados à morte, pena que na última hora foi convertida para o degredo na África – a exceção foi Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, que depois de ser enforcado teve o corpo desmembrado e exposto ao público. Os revolucionários pernambucanos, derrotados pelas tropas do Rio em maio de 1817, poucos meses depois de instaurarem um governo provisório na capitania, tiveram destino semelhante. Após retomarem o controle de Pernambuco, os enviados do rei dom João VI fizeram os revoltosos locais conhecerem castigos exemplarmente cruéis. Muitos foram executados durante cerimônias em praça pública. Depois de mortos, tinham as mãos cortadas e as cabeças decepadas, partes do corpo que passavam então a ser expostas nas ruas, enquanto se decompunham. Os troncos, ou o que restava dos cadáveres, eram arrastados pelo chão amarrados aos cavalos. Os que escapavam da morte exemplar recebiam chibatadas ou eram enviados aos cárceres na Bahia.
Os integrantes das tropas e da população urbana – funcionários públicos, profissionais liberais, comerciantes, mas também os seus empregados – que poucos anos mais tarde, em 1821, se levantaram em Salvador e no Rio para tentar depor os ministros do rei e impor ao monarca a submissão a uma Constituição sabiam do risco que corriam: o risco de serem acusados, se não fossem bem–sucedidos, do crime de lesa-majestade e de então sofrerem os suplícios aplicados aos que haviam tentado coisa semelhante em um passado recente. Mesmo assim, muita gente se arriscou. Tamanha determinação nos dá uma ideia dos altos custos impingidos a portugueses e brasileiros pelo absolutismo.
Embora em 1820 todos pudessem sentir, no Brasil e em Portugal, os efeitos do desequilíbrio fiscal promovido pela Corte joanina, poucos conheciam em detalhes, naquele momento, as contas da Fazenda Real. Ou seja, pouco se sabia de quanto dinheiro havia nos cofres, se é que ainda havia algum. Até a Revolução Liberal, as receitas e as despesas da monarquia portuguesa eram um dos segredos mais bem guardados pela burocracia régia, fosse em Lisboa, fosse no Rio. Assim, logo que o absolutismo caiu, uma das primeiras providências tomadas pelos novos governantes foi a de começar a fazer contas, de um lado e do outro do Atlântico.
Em Portugal, coube a um dos líderes da revolução, o magistrado Manuel Fernandes Tomás, preparar um relatório sobre a situação do Estado português herdada pelos revoltosos. No documento, datado de fevereiro de 1821 e destinado à apreciação das Cortes Constituintes, o magistrado registra com clareza o tamanho do problema fiscal com que seus colegas deputados teriam de se haver. Diz Fernandes Tomás que, “ao acabar do último governo”, ou seja, o de dom João com poderes fiscais irrestritos, os cofres do Tesouro Público tinham menos dinheiro do que o caixa de “um negociante de medíocre fortuna”. E continua o magistrado, referindo-se agora à Junta Provisória que assumiu após a vitória da Revolução Liberal em Lisboa, da qual ele fazia parte: “O governo encontrou logo, como era de esperar, todos os embaraços para fazer face às despesas da nação, e chegou a conceber, e até a propor a alguns dos mais acreditados comerciantes desta praça, o projeto de um empréstimo de 4 milhões de cruzados; porque a necessidade de pagar os soldos atrasados do Exército, a quem se deviam mais de oito meses, parecia justificar semelhante medida, indicando-a ao mesmo tempo como aquela que só era capaz de acudir à pressa em que nos víamos.”
O Exército foi pago, registra com algum alívio o magistrado, mas logo os novos administradores se viram obrigados a criar uma comissão específica para cuidar da momentosa dívida pública, que persistia. Segundo Fernandes Tomás, “o primeiro cuidado” do governo foi o de que “o Tesouro adquirisse crédito, e com crédito a confiança da nação”.
Pouco adiante, na mesma mensagem aos seus colegas deputados, o líder da Revolução do Porto tenta descrever as razões da penúria dos cofres públicos. “Senhores! A Fazenda precisa das mais prontas e mais ativas providências. Os desperdícios excedem muito qualquer ideia que se possa fazer, por mais exagerada que se considere. […] Recebia-se pouco, e esse pouco caía em mãos desmazeladas ou muito infiéis. O Tesouro está exausto, e crescendo com a nova ordem de coisas a necessidade de fazer novas e muito maiores despesas, nem por isso tem crescido por ora os meios de remediar nem as antigas, nem estas.” Em seguida deixa claro que o problema do atraso de pagamentos não se restringia aos militares. “A folha civil acha-se atrasadíssima. Não se pagam depósitos feitos no Tesouro, e de que ele se aproveitou. […] Muitos credores já perderam a paciência, e com ela a esperança de serem pagos.” A origem dos males financeiros estava em parte no Brasil, nos abusos do governo joanino, ele observa. A Corte gastava e distribuía privilégios como se não houvesse restrições ao erário.
“Nenhum navio chegava do Rio de Janeiro sem trazer decretos, avisos ou provisões de tenças”, ou seja, rendas, benesses bancadas pelo Estado, “ajudas de custo, aumentos de ordenado e outras graças”, enumera Fernandes Tomás. “No princípio o governo foi cumprindo tudo, e mandando dar a tudo execução; mas depois deixou de o fazer, convencendo-se de que não era possível, que el-rei fosse informado da verdade, quando tais despachos eram expedidos; porque ele bem sabia que o Tesouro, ainda em épocas mais venturosas, não poderia com tais encargos.”
Isso foi em fevereiro de 1821. Poucos meses mais tarde, em abril, dom João VI voltaria a Portugal, como exigido pelas Cortes Constituintes. O príncipe dom Pedro, deixado pelo monarca para governar o Brasil – ainda que várias províncias naquele momento não reconhecessem a sua autoridade –, fazia um balanço não muito diferente do estado do Tesouro deste lado do oceano, sob a sua responsabilidade. Numa carta ao pai, em julho, o príncipe contava do aperto financeiro em que se encontrava, adiantando já ter tomado providências para economizar nos gastos de administração da Casa Real: entre outras medidas, havia diminuído a própria mesada, a que ele e a princesa Leopoldina tinham direito, vendera os cavalos – reduzidos de cerca de 1,3 mil para não mais do que 156 animais – e agora mandava lavar a própria roupa em casa, pelas escravizadas que o serviam. Sabe-se lá de que serviço de lavanderia se valia dom Pedro antes de se ver em apuros, algo que infelizmente não é explicado na carta. Deixa claro, contudo, que os gastos no final do Antigo Regime eram exorbitantes. “Eu não faço de despesa quase nada em proporção do que d’antes era, mas se ainda puder economizar mais, o hei de fazer a bem da nação.” E não havia dúvidas de que outras economias logo seriam necessárias, pois em seguida dom Pedro expõe o balanço dos encargos sob sua responsabilidade. “As dívidas do erário andam: ao banco, por 12 milhões, pouco mais ou menos, porque o dito não pôde acabar de dar as suas contas.” O valor do montante tomado emprestado do Banco do Brasil, mencionado pelo príncipe, estava expresso em cruzados, o equivalente a 4,8 mil contos de réis, não muito abaixo do total de receitas do governo joanino no ano de 1820, que somaram cerca de 6 mil contos (um conto equivalia a mil mil-réis). Outros “2 mil e tantos contos de réis” eram devidos à firma inglesa Young & Fannie; mais mil contos ao visconde do Rio Seco, nobre e alto funcionário fluminense, tesoureiro da Casa Real; mil contos ao “arsenal do Exército” e outros 1,1 mil à Marinha. A penúria era tal que faltaram recursos até para providenciar a viagem de dom João VI de volta a Lisboa, em abril de 1821, exigida pelas Cortes, ou seja, pelos revolucionários liberais. A “indispensável despesa foi suprida pelo visconde do Rio Seco, que se ofereceu a pôr pronta a esquadra”, segundo registrou na época o funcionário régio José da Silva Arêas. “O visconde do Rio Seco é quem se obrigou a aprontar o que fosse necessário porque o erário não tem vintém”, explicou.
Como em Portugal, a Corte fluminense atrasava pagamentos a parte importante da tropa. “Aos voluntários reais de El-Rei devem-se 26 meses de seu soldo”, comunica dom Pedro ao pai, em referência aos militares empenhados na conquista da região Cisplatina para o monarca português. Ou seja: pouco mais de dois anos de atraso nos pagamentos de salários. Embora o príncipe reclamasse da interrupção no envio de impostos recolhidos em outras províncias, como Pernambuco e Bahia, para os cofres do Rio de Janeiro depois da Revolução Liberal, fica claro, pelo tamanho das dívidas, pelos relatos da época e pela duração do atraso nos soldos, que o problema fiscal precedia em muito a perda de poder do Rio em favor de Lisboa.
Em vez de consequência, a crise financeira havia sido na verdade uma das causas da revolta generalizada contra a sede da monarquia. Os problemas, de toda forma, não haviam cessado com a instalação das Cortes Constituintes em Lisboa e a volta de dom João à Europa. Na mesma carta, dom Pedro dá notícia ao pai de uma nova revolta militar, desta vez em São Paulo, pouco tempo antes. “Em Santos a tropa levantou-se e quis que se lhe pagasse o que se lhe devia, e como não havia com quê, foi [a tropa] à casa de um rico e pagou-se por suas mãos.” Crise fiscal, paralisia, desordem social e administrativa.
As sublevações liberais dos dois lados do Atlântico português, o estabelecimento de um parlamento em Lisboa encarregado de redigir uma Constituição e a transformação do monarca em representante simbólico do Estado, com poderes muito limitados – ou seja, o fim do absolutismo –, foram condições necessárias para a separação política entre brasileiros e portugueses. Uma vez neutralizada a principal figura de poder e garantidora da ordem do Antigo Regime, tudo estava em jogo: incluindo o contrato, agora em discussão, que poderia ou não manter unidos os súditos europeus e americanos de dom João VI. O fim do absolutismo e a consequente disputa por poder entre as diversas partes do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves – dois processos influenciados pela crise fiscal – criaram as condições para a Independência do Brasil em 1822. É verdade que o desenlace desse processo, com as províncias da antiga América portuguesa unidas em torno do Rio de Janeiro e separadas politicamente de Lisboa, não era inevitável – embora, mais uma vez, disputas políticas e fiscais, num contexto de crise das contas públicas, tenham exercido influência decisiva para a forma específica de emancipação do Brasil.
A princípio, a Corte fluminense se viu isolada. Em 1820 e 1821, tanto para os súditos americanos quanto para os súditos europeus de dom João, os gastos sem freio, a cobrança de impostos, o aumento nos preços dos alimentos e a falta de pagamentos às tropas e aos funcionários civis tinham responsáveis claros – os ministros do rei – e endereço – o Rio de Janeiro. À medida que as elites das províncias brasileiras se levantavam contra o absolutismo, formando juntas de governo locais, imediatamente cortavam relações com a Corte fluminense. O rompimento significava, em primeiro lugar, deixar de enviar para o Rio os impostos recolhidos em suas alfândegas – no Recife, em Salvador e em São Luís, por exemplo. Uma vez instaladas as Cortes Constituintes em Lisboa, e com elas um novo governo para o conjunto dos súditos portugueses, as elites locais da América não cederam em seus pleitos de autonomia, insistindo na concentração de poderes nas províncias, bem como na administração local, tanto quanto fosse possível, dos recursos amealhados em seus portos – e os tributos das alfândegas eram de longe a principal fonte de receita da época.
Todos os representantes nas Cortes em Lisboa concordavam em limitar os poderes do monarca – entre eles, o poder de criar impostos, de aumentar os seus encargos e de fazer gastos sem os freios de um parlamento. Mas os deputados di-vergiam sobre como repartir esses poderes, recém-tomados do absolutismo, entre as diferentes regiões do Reino Unido de onde provinham. Os conflitos que marcaram a redação de uma Constituição comum para portugueses na Europa e na América envolveram assim, a princípio, três grandes polos: Lisboa, onde se reuniam os parlamentares; o Rio, com numerosa burocracia, ciosa da manutenção de seus empregos; mas também as províncias, em particular duas das mais ricas e mais bem representadas na nova assembleia, Pernambuco e Bahia.
É difícil, com frequência, separar o que houve de especificamente político – disputas por divisão ou concentração de poderes administrativos, de órgãos dirigentes, de comando militar – e o que se dava por interesses fiscais e econômicos, nesses embates – e isso pela simples e bastante razão de que as duas questões, a de concentração de poderes e de competência fiscal, estão sempre, em toda parte, intimamente ligadas. O que caberia a cada província e de que recursos poderia se valer? O que caberia, se é que algo, ao reino do Brasil? E ao governo central, em Lisboa? Ao debaterem a partilha do poder, os representantes nas Cortes tinham, de toda forma, consciência dos limites orçamentários herdados de dom João VI. Assim, por exemplo, quando uma maioria de deputados portugueses, apoiados por representantes baianos e pernambucanos, propôs que fossem extintos os tribunais criados no Rio de Janeiro desde 1808 – órgãos que apesar do nome tinham funções administrativas, semelhantes aos ministérios atuais, e que empregavam centenas de pessoas –, um dos argumentos apresentados foi o das contas públicas. O deputado português Manuel Borges Carneiro defendeu a medida, argumentando que a província do Rio de Janeiro se encontrava à beira da bancarrota e não tinha como manter os tribunais – e nem era admissível a Borges Carneiro que Lisboa, quer dizer, o novo governo central, se desse ao luxo de continuar a bancar aqueles empregos, agora desnecessários, na antiga sede da monarquia. Citou, a esse respeito, as cartas de dom Pedro a seu pai, em que o príncipe reclamava da falta de dinheiro, comentando de resto que, na Corte do Rio, “os empregados públicos são sem-número”.
A indignação com a gestão dos recursos estatais sob dom João, que havia promovido o inchaço da Corte, aparecia com frequência nos discursos de Borges Carneiro. Nesse dia, em particular, o magistrado chegou ao ponto de defender o sequestro dos bens dos integrantes da burocracia que “foram para o Rio de Janeiro pobres, e sem terem tido gênero nenhum de comércio entraram em administrações públicas, e se acham hoje com milhões de seu, comprando casas e fazendas, vivendo em palácios, nadando em luxo, gastando cada ano 30 mil cruzados”. Era o caso de se arrancar dessas pessoas “todos os seus roubos, não se lhes deixando mais que um tênue comer e um simples vestir”, defendia.
As propostas da maioria lusa, nas Cortes, para as relações comerciais entre a América e Portugal também traziam embutidas consequências fiscais. Até 1808, a condição colonial do Brasil obrigava grande parte dos navios saídos de seus portos a passar por Lisboa ou pelo Porto, onde encargos eram recolhidos. De lá, as mercadorias eram reexportadas para outros países europeus. Também produtos importados pelos brasileiros tinham que provir de Portugal, o que tornava a metrópole um entreposto comercial para os tecidos ingleses ou os bens de luxo franceses, por exemplo. Depois da transferência da Corte para o Rio, e da abertura dos portos do Brasil para o comércio direto com todo o mundo, Portugal perdeu essa função de entreposto comercial de sua maior colônia – e, com a perda da função, foram-se embora também os momentosos tributos recolhidos em suas alfândegas. Não espanta, portanto, que o principal projeto econômico em discussão nas Cortes Constitucionais, em 1822, grosso modo buscasse reestabelecer Lisboa e o Porto como etapas obrigatórias da maior parte das cargas destinadas aos portos brasileiros, ou vindas de lá. O projeto fazia isso por meio de incentivos fiscais, cobrando menos de quem pagasse as tarifas aduaneiras em Portugal, ao mesmo tempo que impunha alíquotas proibitivas a quem se dispusesse a levar sua carga aos portos brasileiros ou a buscar açúcar e algodão diretamente na América.
Parecia inevitável, se a proposta fosse implementada, que os comerciantes dos demais países europeus deixassem, assim, de cruzar o Atlântico para ir fazer negócio em Salvador, no Recife ou no Rio, parando antes em Lisboa e no Porto – com condições privilegiadas, ali, de tributação, além de um custo de viagem menor. Como consequência lógica do projeto, previa-se o incremento de impostos recolhidos em Portugal, tendo como contrapartida a diminuição radical do montante de negócios nos portos sul-americanos, e portanto de tributos à disposição dos administradores locais, fosse no Recife, no Rio ou em Salvador. Se implementado tal como propunham os deputados portugueses, o novo arranjo comercial significaria um duro golpe às aspirações de autonomia provincial de baianos e pernambucanos – já que suas administrações locais ficariam praticamente desprovidas de recursos, e certamente mais dependentes, do ponto de vista financeiro, de Lisboa. Quanto ao Rio de Janeiro, de que adiantaria ver reconhecido na nova Carta o pleito de se manter como centro executivo de todo o reino do Brasil, se no fim das contas tanto o porto fluminense quanto as demais alfândegas, que a antiga Corte pretendia controlar, se veriam esvaziados e empobrecidos? A cada discussão de reordenamento administrativo ou comercial correspondia, como se vê, uma consequência fiscal, com impacto para a repartição de poderes entre as diferentes partes do Reino Unido, e ninguém na assembleia ignorava esse fato.
As sessões das Cortes Constituintes atravessaram os anos de 1821 e 1822. O que se viu nesse período foi um movimento de gradativo e crescente afastamento político das províncias da América portuguesa em relação a Lisboa. A princípio os focos de conflito entre os dois lados do Atlântico opunham os deputados portugueses, com apoio de baianos e pernambucanos, ao Rio de Janeiro – onde ainda residia, segundo os revolucionários de além-mar, a principal ameaça absolutista ao seu projeto, dom Pedro. Os interesses do príncipe, insultado e ameaçado pelas Cortes, logo se associariam aos da enorme burocracia fluminense, que se rebelava contra o esvaziamento de seu poder e sobretudo contra a possibilidade de ver extintos os seus empregos. Mas ao longo do ano de 1822 também os representantes de Pernambuco e da Bahia nas Cortes, como reação à resistência lusa aos seus projetos de maior autonomia administrativa, foram se tornando cada vez mais insatisfeitos com os rumos da futura Carta. O afastamento de pernambucanos e baianos, de um lado, em relação à maioria de representantes europeus, de outro, não se converteu, contudo, em apoio automático das províncias do Norte ao Rio de Janeiro – de cujo jugo despótico elas buscavam se livrar. Foi só quando dom Pedro e as elites do Centro-Sul acenaram com a redação de uma Constituição específica para o Brasil que a balança política começou a pender em favor do Rio e da separação política conjunta da América em relação a Portugal.
A promessa de uma Constituição brasileira, feita pelo príncipe regente já em meados de 1822, trouxe consigo a perspectiva de que as elites americanas, de Norte a Sul do Brasil, pudessem se fazer representar no Parlamento que iria votar orçamentos anuais e autorizar – ou barrar – os impostos que seriam recolhidos em suas províncias. Fariam isso com mais voz e poder, ao que tudo indicava, do que aquele de que agora dispunham na preparação da Carta luso-brasileira em Lisboa, onde os representantes portugueses, com cerca de 100 cadeiras, exerciam um acachapante poder majoritário sobre os menos de 50 representantes da América.
Em setembro de 1822, os mais importantes deputados de Pernambuco, Bahia, Rio e São Paulo, agora unidos nas Cortes, expressaram sua insatisfação com o trabalho constituinte em Lisboa, muitos pedindo para que fosse adiado o juramento da Constituição, ou solicitando licenças para se ausentarem sem votar o texto já quase pronto – pedido e licença que foram recusados pela maioria lusa. Quase simultaneamente – e agindo também em reação a decisões das Cortes, que não reconheciam legitimidade ou poder em sua “regência” brasileira – dom Pedro anunciava, com o grito do Ipiranga, a emancipação política do Brasil em relação a Portugal.
Haveria ainda avanços e recuos, do lado de cá do Atlântico – incluindo o fechamento da Constituinte local, em 1823, e a imposição por dom Pedro de uma Carta de gabinete ao país, escrita sob a sua encomenda. Mas afinal as elites regionais se fariam representar no Parlamento, de 1826 em diante, tornando-se responsáveis por definir os orçamentos do Império. O que logo provocou conflitos com o imperador.
Dom Pedro fazia, na segunda metade dos anos de 1820, dispêndios crescentes no front de batalhas, na guerra contra as Províncias Unidas do Reino da Prata, depois Argentina, pelo controle da região que viria a ser o Uruguai. Sem dispor de recursos suficientes para manter o esforço militar, seu governo cunhava moedas de cobre carentes de lastro e recorria ao Banco do Brasil e à emissão de notas, exatamente como fizera dom João VI, agravando assim a situação financeira herdada de seu pai. Ao final da década, a história parecia se repetir, com aumento alarmante do nível de preços, em intensidade ainda maior do que dez anos antes. A Assembleia Geral, ciosa em manter o equilíbrio de poder com o monarca, resistia a votar aumentos de receita. A crise política – que era também econômica, e tinha raízes fiscais – acabaria por se resolver com a abdicação do monarca, em 1831.
Com o controle das contas públicas afinal exclusivamente nas mãos da Assembleia, o país conseguiu equilibrar minimamente receitas e despesas, tornando os seus déficits financiáveis, ainda que frequentes. As dívidas com credores nacionais e internacionais passaram a ser honradas regularmente, a ponto de o Brasil se tornar um dos melhores pagadores entre as nações da época, digno de constante crédito na praça londrina. Em consequência disso, os juros cobrados dentro e fora do país para financiar o governo tenderam a cair da década de 1830 em diante.
A melhor síntese desse processo foi feita pelo historiador norte-americano William Summerhill. “Dado que a Coroa portuguesa tinha se valido de uma autoridade discricionária, sob o absolutismo”, ou seja, no governo de dom João, “para deixar de pagar suas dívidas e obter empréstimos forçados de seus súditos, a solução encontrada no Brasil foi a de um arranjo institucional que limitava a possiblidade da Coroa de conduzir unilateralmente a sua política fiscal”, escreveu Summerhill no livro Inglorious Revolution (Revolução Inglória). “Uma vez que a câmara baixa do Parlamento era eleita, ela tornava-se sensível aos interesses da elite com direito a voto. Essas instituições políticas formais constrangeram e em última instância eliminaram a habilidade do monarca de decidir unilateralmente sobre a cobrança de impostos, os gastos e a desvalorização da moeda.”
As instituições descritas pelo historiador norte-americano realizaram assim, quase uma década depois do Sete de Setembro, um dos objetivos do processo de Independência, que no Brasil se confundiu com o fim do absolutismo.
Apesar do nome singelo, quase humilde, a Real Capela realizava suas celebrações em uma igreja suntuosa, ricamente decorada, vizinha ao Paço Real, nos arredores do que hoje é a Praça Quinze no Centro do Rio de Janeiro. A instituição fazia parte do aparato palaciano, era a responsável pelos serviços religiosos destinados à família real e desempenhava papel central nos rituais de poder do governo joanino. Nela dom João VI se sagrou rei de Portugal, Brasil e Algarves, depois da morte de sua mãe, dona Maria i. Poucos anos mais tarde, o mundo político virou de cabeça para baixo. E então, na mesma igreja, em cerimônia oficialmente conduzida pelo cônego magistral da Real Capela, comemorou-se o gesto de certa forma inverso ao da sagração: o afastamento de dom João do centro do poder.
Em agosto de 1821, uma “oração de ação de graças” foi realizada na Real Capela do Rio de Janeiro por ordem de dom Pedro, em celebração ao aniversário de 1 ano da Revolução do Porto. No discurso que proferiu na ocasião, o cônego Francisco da Mãe dos Homens Carvalho não poupou de críticas o regime despótico ao qual ele próprio havia servido, não muito tempo antes. Como um filósofo iluminista, o religioso atacou a tirania, o capricho e o arbítrio dos poderosos. Exaltou os “heróis de 24 de agosto”, que proclamaram “liberdade e Cortes, segundo as ideias do século”. Embora tomando o cuidado de poupar dom João VI de qualquer responsabilidade, fez notar que os males do Antigo Regime resultavam da falta de separação entre os poderes, permitindo aos cortesãos, ao ministério e à magistratura enganar o povo – e até mesmo o rei. Surgem então, no discurso de Carvalho, os efeitos materiais do despotismo – em particular a crise fiscal, a falta de recursos, os atrasos nos pagamentos.
“Nome augusto, nome sagrado do senhor dom João VI! Ah! A quantos roubos, injustiças, concussões e peculatos não serviste de capa inocente?”, indaga. As vítimas desse regime, continua o religioso, ainda podiam ser vistas pelas ruas da cidade. “Olhai! Ali jaz um que ainda não pôde cicatrizar os males que as preterições lhe causaram; acolá aparece outro carregado das dívidas e vexames a que o reduziram tantos soldos demorados ou rebatidos.” É possível figurá-lo apontando o dedo, de maneira teatral, enquanto enumera as vítimas imaginárias do absolutismo e da crise fiscal. Para outro funcionário, “a falta de prêmios ou dos ordenados” prejudicou “a educação dos seus filhos”. O cônego chama então a atenção do príncipe dom Pedro, presente à cerimônia, para “uma desgraçada viúva, a quem os serviços do seu esposo mal recompensados”, ou seja, mal pagos, “reduziram à miséria, e a miséria à prostituição”. Carvalho reconhece que dom Pedro vinha se esforçando, naquele ano de 1821, para pôr as contas e os pagamentos em dia, mas não deixa de adverti-lo: “Toda a vossa atividade, toda a vossa economia, todos os vossos desvelos assíduos e incansáveis ainda não poderão remediar esse horroroso déficit que embaraça a nação, por ter o elemento que o deveria encher declinado o caminho para engrossar os cofres desses pérfidos, que se riam à custa das lágrimas públicas.”
Até nas igrejas se falava em déficit, como se vê, à época da crise que abalou o Antigo Regime. Nas ruas também, e já fazia algum tempo. Durante o auge da crise do governo joanino, a situação das finanças do Estado aparecia nos panfletos que pediam mudanças, reformas, Constituição. Não aparecia do modo como um economista ou um historiador se referiria hoje ao problema, claro, mas filtrada pela percepção popular de que os males econômicos da época – carestia, falta de pagamentos – se deviam à incúria, quando não à desonestidade, dos administradores públicos.
Um dos principais alvos do ressentimento popular naquele momento era Francisco Bento Maria Targini, o visconde de São Lourenço, tesoureiro do Erário Real. Em 1821, um panfleto ganhou as ruas contendo os seguintes versos: Excelso rei,/Se queres viver em paz/Enforca Targini/E degrada Thomaz. A segunda autoridade aí vilipendiada era o principal ministro do monarca, Tomás Antônio de Vilanova Portugal, identificado com o despotismo. Dois anos antes, em 1819, Targini havia sido elevado à condição de visconde (ele que já era barão desde 1811), o que provavelmente motivou outra quadrinha, popular naqueles anos: Quem furta pouco é ladrão,/Quem furta muito é barão,/Quem mais furta e esconde,/Passa de barão a visconde. Outro folheto criticava a “corja de ladrões que estão roubando os tesouros do rei”, pedindo que assumissem autoridades capazes de “pagar bem as nossas tropas finalmente”, antes de concluir com ênfase: “Morra tudo quanto é ladrão.” Atento ao ódio popular a Targini, “culpado pela voz pública de malversações”, um dos principais intérpretes da Independência, Manuel de Oliveira Lima, observou que o tesoureiro era acusado de “fazer descontos em pagamentos, mesmo de honorários e pensões”, em benefício próprio, “aproveitando-se desses abatimentos”. Mas o historiador pernambucano não deixa de notar logo em seguida que o próprio Targini, para justificar os atrasos e os calotes, “alegava falta de dinheiro no erário”.
A crise das contas públicas passou também a ser discutida nos jornais, depois que as revoluções liberais de 1820 e 1821 acabaram com a censura à imprensa. No Revérbero Constitucional Fluminense, principal órgão de divulgação das ideias dos liberais do Rio, reivindicava-se o pagamento dos soldos, pensões, ordenados e da dívida interna do governo; denunciavam-se as “irregularidades” na administração dos recursos do erário; e sugeria-se a redução do número de funcionários públicos. O que se ouvia nas ruas, nas igrejas, e se lia nos jornais, seria também tema de preocupação constante para os novos representantes políticos do país, depois de declarada a Independência – e uma quase obsessão de seu novo monarca, dom Pedro I.
No discurso que proferiu na abertura dos trabalhos da Constituinte, em maio de 1823, o imperador fez uma espécie de resumo da história política recente da América portuguesa, até a emancipação do Brasil. Nessa história pessoal da Independência, contada pelo próprio monarca, as finanças públicas aparecem com enorme destaque. Dom Pedro menciona as dificuldades para pagar credores e funcionários públicos, no ano de 1822; reclama da falta de remessas das províncias; e entra em detalhes sobre o corte que teria realizado nos gastos palacianos, já aludido por ele na carta a dom João de meados de 1821: segundo disse aos deputados, seu pai despendia 4 milhões de cruzados por ano com a Casa Real, ou seja, com o palácio – o equivalente a 1,6 mil contos de réis, quase 30% das despesas em 1820 –, enquanto ele havia reduzido o montante para não mais do que 1 milhão de cruzados, ou 400 contos de réis (as contas de 1820, relativas a dom João VI, indicam um gasto com a Casa Real na verdade ainda superior aos 1,6 mil contos reconhecidos por dom Pedro, embora de valor próximo, da ordem de 1,7 mil contos). “Eu não estava contente quando via que a despesa que fazia era mui desproporcionada à receita a que o Tesouro estava reduzido, por isso me limitei a viver como um simples particular”, afirma, com exagero, no discurso. Também se refere ao estado calamitoso do Banco do Brasil, principal fonte de recursos para o Estado nos anos finais da crise, na segunda metade da década de 1810. O banco, reconhece o imperador aos deputados constituintes, havia chegado à situação de “ter quase perdido a fé pública, e estar por momentos a fazer bancarrota”.
O tema das contas públicas ocupará o centro das atenções do imperador também nos anos seguintes, em seus discursos à Assembleia Geral, nas falas do trono que marcavam o início dos trabalhos legislativos, de 1826 até 1831, quando abdica da Coroa. Em 1827, dom Pedro dirá aos deputados e senadores que “um sistema de finanças bem organizado deverá ser o vosso particular cuidado nesta sessão, pois o atual (como vereis do relatório do ministro da Fazenda) não só é mau, mas é péssimo, e dá lugar a toda qualidade de dilapidações”. No ano seguinte, volta a alertar para o tema dos “negócios da Fazenda” na abertura dos trabalhos legislativos. Meses mais tarde, na declaração de encerramento da sessão, lamenta que ao longo do ano os problemas das contas públicas não tivessem sido “tomados na devida consideração” pelos legisladores – a rigor, tratava-se já da disputa entre a Assembleia e o monarca, na qual os deputados resistiam a conceder a dom Pedro os recursos por ele desejados. Em 1829, o imperador chama uma sessão extraordinária, antes da abertura oficial dos trabalhos, para tratar dos negócios da Fazenda e do Banco do Brasil, reclamando do “estado miserável a que se acha reduzido o Tesouro Público”. Novamente, em 1830, reclama da falta de atenção dos deputados ao orçamento – ou seja, de sua resistência a elevar receitas e despesas.
É razoável concluir que todas essas intervenções, entre 1826 e 1830, tenham se devido às circunstâncias, às efetivas dificuldades nas contas públicas, que constrangiam o monarca. O imperador falava das finanças do Estado, do banco, da emissão de moeda porque a rigor precisava de recursos – e o dinheiro dos impostos tinha que ser aprovado pelos deputados. Em 1823, contudo, ao discursar na abertura da Constituinte, dom Pedro não precisava pedir nada. Ainda assim, na história que decidiu contar, conferiu centralidade às finanças públicas. Parecia-lhe importante o tema, além de evidentemente ter ficado impressionado pelo aperto em que se viu metido, depois do retorno do pai a Portugal. Seja como for, tanto por necessidade quanto por liberalidade, dom Pedro era um monarca de uma nota só, ou quase isso, nas suas manifestações à Assembleia.
E, no entanto, o problema parece sumir dos relatos sobre essa mesma época, escritos algumas décadas mais tarde. “Os negócios da Fazenda não foram tomados na devida consideração”, reclamou o imperador ao discursar aos deputados, em 1828, quando poderia muito bem estar se dirigindo aos autores das principais obras sobre a Independência, nos dois séculos seguintes. Em contraste com a quase obsessão de dom Pedro, do cônego da Real Capela e dos autores de panfletos políticos, as contas públicas não cumprem papel central nas principais explicações do processo de separação política entre Brasil e Portugal. Trata-se de uma ausência notável, de um silêncio enigmático – como se fôssemos uma nação metafísica, na qual o Estado não se constrange com a escassez de recursos nem os atores políticos se mobilizam para disputá-los. É preciso tentar entender os motivos dessa lacuna nas interpretações da Independência do Brasil, antes de tentar preenchê-la.
Este texto corresponde, com pequenas modificações, ao primeiro capítulo de um livro sobre a Independência do Brasil, ainda sem título, a ser lançado no ano que vem pela Companhia das Letras.
Jornalista, foi editor da piauí. Publicou Adeus, Senhor Portugal: Crise do Absolutismo e a Independência do Brasil (Companhia das Letras), em coautoria com Thales Zamberlan Pereira
É doutor em economia pela FEA/USP e professor da Escola de Economia de São Paulo (FGV/EESP)