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Participe da nova seção do GLOBO ‘Conte sua história de amor’! É só mandar seu relato, com no mínimo 2 mil caracteres e no máximo 5 mil, para o e-mail [email protected]. É preciso se identificar e mandar um telefone para contato. No entanto, caso prefira, a publicação pode ser anônima. As histórias selecionadas pela nossa equipe serão publicadas a cada 15 dias na versão digital (às quintas-feiras) e impressa (aos sábados) do jornal. Não é preciso ser escritor, apenas ter um conteúdo verdadeiro, vivido por você e com emoção genuína. Qualquer tipo de amor vale a pena!

Um amor pelos estudos — Foto: Editoria de Arte/Renata Amoedo
Um amor pelos estudos — Foto: Editoria de Arte/Renata Amoedo

Confira a história desta semana, no depoimento de Ana Greenhalgh:

Assim como todo bom conto da Clarice Lispector (todo o conto da Clarice Lispector é bom), tudo começou quando percebi que eu era agoniada. Desde criança, sempre fui muito apaixonada. Era daquelas crianças que os adultos falavam que tinha muita energia. Eu ria sempre.

Passava o dia e a tarde inteira na pracinha brincando de areia, carrinho, boneca, pega-pega, balanço, pique esconde, pensa em um animal que o outro adivinha, desenhar e colorir, princesa, casinha, escorrega. Enfim, era só nomear um jogo e eu era a primeira a me voluntariar para começar a brincar. Não quer brincar de nada? Tudo bem, eu conversava também. Batia altos papos com qualquer um que me escutasse, paredes e bichos de estimação inclusos.

Acho que, então, talvez já subentendesse que eu vim de uma escola construtivista, que deixava a criança brincar e nunca me punha sentada na cadeira para aprender. Por certo, falo com toda a leveza que fui criança. Mas, desde criança, eu pressentia que aquele tempo era de descanso pois depois algo viria, como um grande apocalipse ou algo do tipo.

O apocalipse não veio, mas veio uma pandemia. Para fermentar essa narrativa, eu mudei de escola no começo de 2020 e para uma bem menos livre que a minha antiga. Menos de dois meses depois de ter entrado na minha escola nova, fui para a minha escola novíssima: a minha casa. Durante a aula online, eu não tinha mais nada para fazer. Não gostava do sentimento de ameba que me dava quando eu ficava a tarde inteira no celular e vendo série. Por outro lado, não gostava de ficar sem fazer nada e, também, como eu tinha 12 anos, já era bem grandinha para descer no parquinho e brincar.

Então, em um belo dia (eu não lembro como era o dia), eu abri a aula online para achar uma caixa de pandora, um presente grego, uma pedra no meio do aplicativo da escola: uma tarefa de matemática que a professora tinha acabado de publicar. Eu olhei para aquilo e aquilo olhou para mim. Meus pensamentos de menina de 12 anos cavalgaram em círculos pelo meu lobo frontal mal desenvolvido: “Vou fazer!”, “Nossa, que fácil isso!”, “Peraí, será que isso tá certo?”, “Vish! Errei aqui, vou apagar”.

Peguei a borracha rosinha da Faber Castell e apaguei. Mas o farelo da borracha suja deixou a página inteira suja. Como meu ímpeto era de ser uma pessoa normal, eu falei “ah dane-se, vou só continuar”. Foi então que o meu primeiro pensamento apareceu: “Ana Beatriz, faz direito”. Quem disse isso? Repete! Não sei. Nunca sei. A minha consciência. Eu brigando comigo. O rabo do cachorro brigando com o cachorro. O lobo do homem brigando com o homem. Foi a partir daquele pensamento que tudo começou: “apaga direito e entrega uma tarefa decente”.

Dito e feito. Fiz. Tirei 10 na tarefa. “Nossa, que legal! É tarefa de 0 a 10 que nem nos filmes (a minha escola antiga não dava nota individual para cada trabalho)!”. Fiz outra tarefa, tirei 10 na outra tarefa. Fiz uma terceira. E quarta. E quinta. E outras 10 tarefas até que uma nota que não era 10 apareceu. Mas aí eu já não conseguia parar. “Onde você errou? Porque aquela professora não te deu 10?” Era tarde. Inês é morta. A agonia é viva.

As brincadeiras da minha infância tinham sido substituídas pelo grande jogo que a escola se tornava para mim. Percebi que a minha agonia de não ser mais criança poderia ser superada. Percebi que as brincadeiras da “gente grande” era trabalhar e estudar. Percebi que não tinha brincadeira melhor do que buscar o conhecimento. A brincadeira é a própria vida para quem estuda. O estudo me dava vida.

A cada página lida, eu sorria. Adorava a adrenalina de antes da prova e o sentimento de que eu dei o meu melhor (além, é claro, do sentimento inigualável de ver a bela nota 10 com o seu nome embaixo). Me sentia querida pelos professores e tinha amigas que gostavam de contar com a minha ajuda em explicar o conteúdo. Me sentia inteligente e culta. Amo usar o fogo da alma para aprender. Quero aprender tudo. Eu amo o conhecimento, Meu Deus do céu! Eu amo estudar.

Em suma: ninguém nunca poderá traduzir exatamente o que acontece em uma alma agoniada e amante. A minha alma nunca deixou de amar estudar. Todos os dias eu me sentava, religiosamente, antes da aula começar e batia a porta na cara da minha família se ela me interrompesse, afinal de contas eu estava praticamente construindo um foguete. Prestava atenção em cada palavra de cada professor/a como se toda aula fosse a minha última.

Sei que não sou nem a primeira nem a última menina de 17 anos que quer aprender e saber de tudo que já existiu na vida. Sei que isso é impossível, e é aí que reside a verdadeira agonia no meio do caminho: o tempo.

Por saber que, daqui a pouco, minha vida irá se esvair como os grãos de areia do parquinho, pretendo amar ao máximo o estudo enquanto eu ainda tiver forças para virar a noite estudando e ir para a escola no dia seguinte com olheiras de retinas fatigadas, mas com um sorriso de criança no rosto. Tenha Deus agonia da minha agonia e me deixe aproveitar ao máximo a minha idade agoniada de voar pelo conhecimento, no sonho que a minha alma não caia no mar, junto com o meu corpo. Por fim, fecham-se as cortinas, Ismália enlouqueceu: o mar é agonia e eu amo estudar.

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