Amo a alegria dos pardais nas manhãs lamacentas. Não simpatizo com pardais, nem com manhãs lamacentas. O que amo é a alegria.
Enquanto escrevo estas linhas chegam-me risadas distantes, de mistura com o júbilo inconfundível das guitarras da rumba congolesa. Algures, num quintal aqui perto, homens e mulheres já de certa idade estão dançando ao som do mítico Francô Luambo Luanzo Makiadi, e da sua TPOK Jazz. Francô não é para jovens. Não aqui, na Ilha de Moçambique, e nem sequer em Kinshasa ou em Brazzaville. Talvez nalgum outro quintal, um pouco mais distante, estejam jovens dançando ritmos recentes. Tenho a sensação, porém, de que os moçambicanos velhinhos possuem mais talento para a alegria, e melhor gosto musical.
Dançar é uma forma que as pessoas encontraram para se conectarem umas com as outras e com o universo. Vejo, através da vidraça, a lua se expandindo na noite. Em breve brilhará, inteira e redonda, e amanhã ou depois de amanhã, na imensa maré baixa, as mulheres recolherão mariscos. Quando o mar subir, os pescadores cavalgarão canoas frágeis, retornando ao final do dia, rindo, carregando em triunfo o fulgor dos peixes.
Os homens, é claro, não são os únicos animais que dançam. Pássaros dançam. Abelhas dançam. Aranhas-pavão dançam. Consta que até algumas espécies de baleia sabem dançar.
Eu não. Gosto muito de dançar, mas não conseguia conectar-me com ninguém — muito menos com o universo. O problema é que gostando eu de dançar, ninguém gostava de dançar comigo (isso mudou, como logo revelarei).
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Há alguns anos, decidi contratar uma professora de dança. Era uma moça carioca, exuberante, otimista e muitíssimo paciente. Tentou de tudo. Desistiu, à terceira aula, diante da minha constrangedora e invencível disfunção rítmica.
Não eu! Eu persisti. Durante a pandemia inscrevi-me num curso de danças africanas. As aulas, naturalmente, não eram presenciais. Cada aluno, instalado na solidão do seu quarto, da sua sala, da sua varanda, tentava acompanhar a professora, à medida que esta exemplificava os movimentos básicos, reunindo-os, por fim, em coreografias mais elaboradas. Sobrevivi uma meia dúzia de aulas, enquanto treinávamos apenas os tais movimentos básicos. Mal chegamos à parte da dança, propriamente dita, compreendi que ou eu desistia ou desistiam as minhas colegas (eu era o único homem) — ou a nossa simpática professora sucumbia a uma crise nervosa. Então, desisti.
Hoje danço com a minha filha pequena, Kianda, que, tendo puxado a mim, ainda não se apercebe da minha infinita incompetência — e nem da própria. Não conseguimos conectar-nos com o universo, não. Nem sequer com o transverso (refiro-me ao músculo); em contrapartida, conectamo-nos um com o outro. Enquanto dançamos somos como aqueles pardais, bailando na lama, cuja alegria me faz tanto bem.
“A vida é a hesitação entre uma exclamação e uma interrogação. Na dúvida, há um ponto final”, escreveu Fernando Pessoa sob a máscara de Bernardo Soares. Enquanto danço com Kianda a vida são só exclamações.