Guga Chacra
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Guga Chacra

Colunista do Globo e comentarista de política internacional da Globonews.

Informações da coluna

Guga Chacra

Mestre em Relações Internacionais pela Columbia University de Nova York. É colunista do Globo e comentarista de política internacional da Globonews.

Por — Nova York

No ano passado, mais de 100 mil armênios foram expulsos de Nagorno Karabak (República de Artsakh), um enclave armênio no Azerbaijão — quase a totalidade da população. Séculos de história da presença armênia foram destruídos pela ditadura de Baku no que foi classificado por especialistas como limpeza étnica. Com as raras exceções do Líbano, da Argentina e da França, que são países com grandes comunidades armênias, não houve comoção internacional e solidariedade com os armênios. O governo de Joe Biden ficou calado, assim como o de Lula. Ninguém levou o Azerbaijão para Corte Internacional de Justiça. Não foram aprovadas resoluções no Conselho de Segurança da ONU. Países como Israel (aliado dos EUA), Turquia (integrante da OTAN) e Rússia seguiram vendendo armamentos para o regime azeri. Para completar, o Azerbaijão, exportador de petróleo, foi premiado para sediar a COP neste ano.

Até hoje, muitas nações sequer reconhecem o Genocídio Armênio, quando centenas de milhares de armênios foram mortos pelo regime dos jovens turcos no final do Império Otomano há mais de um século. Os EUA somente reconheceram o genocídio, mais de cem anos depois, em 2021. Isto é, nem mesmo Barack Obama reconheceu, apesar de toda a documentação histórica. O Brasil reconheceu somente em 2015 — Lula e FHC não haviam reconhecido. Países como o Reino Unido e Israel ainda não reconhecem. A Turquia repudia quem faz o reconhecimento.

Escrevo sobre o Genocídio Armênio e a recente expulsão dos armênios de Artsakh para servir como contexto para a acusação feita pela África do Sul na Corte Internacional de Justiça de que Israel tem a intenção de cometer genocídio contra os palestinos na Faixa de Gaza depois do atentado terrorista do Hamas.

Precisamos ter cautela e responsabilidade quando debatemos essa questão. Há uma série de informações sobre o que acontece no conflito, independentemente da classificação atribuída às ações israelenses. Algumas são inquestionáveis, como 1) O Hamas cometeu um atentado terrorista no qual 1.200 pessoas morreram e cerca de 240 foram capturadas (incluindo bebês e octogenários), sendo que mais de 100 seguem nas mãos dos terroristas, e mulheres foram estupradas 2) a remoção de centenas de milhares de palestinos do Norte de Gaza pelas forças militares israelenses; 3) destruição de mais da metade das construções do território palestino nos bombardeios de Israel; 4) morte de dezenas de jornalistas (cerca de 80) e de funcionários de organizações humanitárias e de agências internacionais como a ONU em ações militares israelenses; 5) morte de milhares de civis palestinos, incluindo crianças em ações militares israelenses; 6) Falta de remédios e alimentos para a imensa maioria da população devido à restrição imposta por Israel para a entrada de ajuda humanitária por temer contrabando de armamentos, como ocorreu no passado; 7) uso de bombas de mais de uma tonelada por Israel, com elevado grau de destruição, em uma proporção incomparavelmente superior à usada pelos EUA no Iraque e Afeganistão; 8) declarações de alguns membros do governo israelense generalizando a população palestina como se todos deveriam ser combatidos e não apenas os que integram o Hamas.

Há, no entanto, uma série de questões não esclarecidas, como 1) quantas pessoas morreram exatamente – o ministério da Saúde de Gaza, controlada pelo Hamas, fala em 23 mil, e governos ocidentais trabalham com dados similares, mas não há confirmação independente; 2) Não há diferenciação de quantos mortos seriam civis e quantos seriam militantes do Hamas e outros grupos nestes números. Israel fala em 9 mil terroristas mortos, mas tampouco existe confirmação independente; 3) não se sabe quantos teriam sido alvejados por fogo amigo do Hamas e quantos morreram ao serem usados como escudos humanos pelo grupo; 4) o governo israelense oficialmente sempre disse que a guerra é contra o Hamas e não contra os palestinos, independentemente do que membros do governo Netanyahu falem publicamente; 5) Israel argumenta que a guerra terminaria imediatamente se o Hamas se rendesse e soltasse os reféns; 6) Israel diz lutar contra uma organização terrorista e genocida que, se tivesse capacidade, mataria todos os judeus israelenses.

Caberá aos juízes da Corte Internacional de Justiça avaliarem se as ações de Israel em deve ser classificadas como genocídio ou não, levando em consideração tanto os pontos da acusação feita pela África do Sul como pela defesa de Israel. Recomendo ler ambas, que estão disponíveis na internet. Importante mencionar que os sul-africanos condenam o atentado do Hamas no primeiro parágrafo da acusação, diferentemente do que vem sendo propagado por alguns. Talvez demore anos para sabermos se a corte considerará genocídio ou não. Independentemente do resultado, Israel e seus defensores seguirão sempre argumentando que não houve genocídio enquanto seus adversários dirão que foi.

Esse debate polariza ainda mais as discussões sobre o conflito que é o que desperta mais paixões no planeta, como vemos quando comparamos ao que ocorreu com os armênios. Neste próprio artigo, serei acusado por alguns de ser anti-Israel e por outros de ser pró-Israel. Os defensores de Israel dirão que a ação da África do Sul tem um claro viés antissemita ao querer associar a palavra genocídio aos israelenses, levando em conta que os judeus foram vítimas do Holocausto, quando 6 milhões de pessoas da religião judaica foram mortas em escala industrial pelo regime nazista da Alemanha na Segunda Guerra. Já os defensores da África do Sul afirmarão serem coisas separadas e mencionarão que Israel foi aliado do regime de Apartheid sul-africano, chegando a fornecer tecnologia nuclear.

O que está claro é que a guerra em Gaza, que eclodiu por causa do atentado do Hamas, já provocou um número intolerável de mortes de civis, incluindo crianças, sem Israel ter atingido o objetivo de eliminar o Hamas ou de soltar os reféns. Na verdade, somente um refém foi libertado pelas forças israelenses, enquanto três acabaram mortos por fogo amigo de Israel que os teria confundido com terroristas, apesar de estarem sem camisa, com um pano branco e pedido ajuda em hebraico. O único momento de esperança neste conflito foi quando o Catar e os EUA negociaram a libertação de dezenas de mulheres e crianças mantidas como reféns pelos terroristas do Hamas. É óbvio que aquele processo deveria ser restaurado, assim como o cessar-fogo imediato e a entrada de ajuda humanitária, além de uma ampla discussão sobre o futuro de Gaza, que já está em andamento.

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