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    Bairro em Cartagena concentra deslocados por conflito colombiano

    SYLVIA COLOMBO
    ENVIADA ESPECIAL A CARTAGENA (COL�MBIA)

    25/09/2016 02h00

    "Nunca vi o mar. Desde que deixei os Montes de Mar�a prefiro sair de casa o m�nimo poss�vel. � daqui ao restaurante onde trabalho, e s�", conta Jessica Monta�o, 58, uma das habitantes do bairro Nelson Mandela.

    A terr�vel ironia da declara��o dessa mulher � que o "Mandela" (como � chamado por seus habitantes) fica na regi�o metropolitana de Cartagena, a menos de 5 km de uma das orlas caribenhas mais disputadas por turistas do mundo inteiro. "Eu tenho medo de tudo, prefiro ficar aqui dentro", disse, j� se esquivando da reportagem para dentro de casa.

    Fundado em 1994 por um conjunto de 30 fam�lias que vinham dos Montes de Mar�a, ao sul do Departamento de Bol�var, o Nelson Mandela � uma das maiores concentra��es de "desplazados" (deslocados pelo conflito armado) da Col�mbia.

    De sua popula��o atual de 50 mil habitantes, 85% vieram de outras regi�es (Urab�, Antioquia, Palenque, Magdalena Medio, Tolima, Guaviare), fugindo da viol�ncia causada pela guerra entre o Ex�rcito, as Farc (For�as Armadas Revolucion�rias da Col�mbia) e os paramilitares.

    A Folha visitou o Mandela �s v�speras da assinatura do acordo entre o governo e a guerrilha, marcado para esta segunda (26), e do plebiscito (no pr�ximo dia 2 de outubro), em que a popula��o colombiana escolher� aprovar ou n�o o documento.

    Pesquisas recentes mostram uma boa vantagem do "sim", com 55,3%, com rela��o ao "n�o", de 38,3% (instituto Datexco).

    O que torna o cen�rio incerto, por�m, � a tend�ncia apontada nas �ltimas semanas de crescimento do "n�o" (que subiu 9 pontos) e a expectativa de uma alta absten��o prevista por quase todos os institutos (o voto na Col�mbia n�o � obrigat�rio), o que pode afetar esse panorama.

    No Mandela, veem-se muitos jovens nas ruas e vielas, envolvidos em consertar ou pintar suas motos ou passear com elas, geralmente com algum amigo na garupa.

    Muitos ostentam camisetas de clubes de futebol, locais ou de times espanh�is. Meninas andam em grupos e sentam-se � beira das casas. N�o se veem tanto os mais velhos, mas eles espreitam de dentro de suas casas, geralmente de portas abertas devido ao intenso calor caribenho.

    DESCONFIAN�A

    "Eu n�o voto se n�o me derem algo. Sempre que � elei��o de um candidato, eles v�m aqui e nos trazem coisas. Agora � uma elei��o de ideias, de muitas coisas que n�o est�o ditas, ningu�m sabe direito o que h� nesse tal documento. N�o vou votar", diz Lucas Eugenio, que veio da regi�o do Guaviare, vive no Mandela desde 2004 e trabalha num caf� tur�stico de Cartagena.

    Contra essa desconfian�a que parece generalizada ao conversar com os habitantes do bairro, est�o algumas iniciativas como associa��es de moradores, de jovens, de ONGs independentes e de ex-guerrilheiros e ex-paramilitares desmobilizados, que v�m fazendo uma campanha informal pelo "sim".

    "Estamos tentando conscientizar as pessoas, mas � dif�cil. O que mais as preocupa hoje � o lado econ�mico, mais do que a viol�ncia, porque a viol�ncia sabemos que continuar� sem as Farc", diz um dos integrantes do movimento Colombia Nueva, Rafael Barraga, 24.

    Ele explica. "As pessoas n�o conhecem o texto do acordo, que � grande e dif�cil de ler, mas sabem que ali est� escrito que os ex-guerrilheiros v�o receber um sal�rio por dois anos. Enquanto isso, os moradores daqui, voc� est� vendo como n�s vivemos, todo mundo � pobre, e pagamos extors�o a grupos criminosos. Como aceitar que um ex-guerrilheiro, que matou, que sequestrou, tenha um sal�rio fixo, e n�s seguimos aqui tentando viver com t�o pouco e sempre sob amea�a?".

    Editoria de Arte/Folhapress

    De fato, um dos itens do acordo prev� que ex-guerrilheiros recebam 90% de um sal�rio m�nimo por 24 meses e, ao final desse per�odo, caso tenham participado de obras comunit�rias de repara��o �s v�timas, recebem um b�nus extra para recome�ar a vida.

    Barraga mesmo se considera uma v�tima, n�o da guerrilha em particular, mas do ambiente que a guerra criou, nos bairros pobres, onde est�o presentes grupos criminosos formados por ex-guerrilheiros, ex-paramilitares ("paracos", como o chamam) e narcotraficantes comuns —as chamadas "Bacrim" (bandos criminosos).

    Por algum tempo, Barrega andou pr�ximo a uma das gangues locais e logo passou a ser perseguido. "Tinham decidido que eu ia morrer, ent�o eu fazia um caminho diferente todo dia para voltar para casa. At� que o grupo que estava me amea�ando saiu daqui", conta, sem querer entrar em mais detalhes.

    J� seu colega, Alejandro V�zquez, 22, � mais otimista. "Creio que as pessoas que t�m familiares nos locais de conflito v�o ajudar a convencer o voto pelo 'sim'. Minha m�e est� fazendo isso, porque tenho um irm�o que est� no Ex�rcito, j� h� meses lutando longe de casa, e ela quer que ele volte e que esse horror termine."

    V�zquez conta que sua fam�lia deixou o sul do Estado de Bol�var porque "j� n�o distingu�amos mais do que ter medo, se dos 'paracos', das Farc ou de outra guerrilha, bastava ser algu�m de uniforme, e sab�amos que ia nos fazer mal".

    Apesar de os mais jovens, como os meninos do Colombia Nueva, n�o quererem saber de voltar �s suas regi�es de origem, porque preferem estar mais perto de urbaniza��es onde existam empregos e chances de estudo, os mais velhos sentem nostalgia da vida no campo antes de a guerra ter ficado t�o sangrenta.

    "Como eles sabem que a guerrilha tirou essa paz deles, muitos s�o rancorosos, e v�o votar 'n�o' porque querem que os que causaram a destrui��o de seu passado v�o para a cadeia", diz V�zquez, que hoje se diz adaptado ao Mandela.

    MASSACRES

    Apesar de receber refugiados de v�rias partes do pa�s, a ferida mais aberta entre os moradores do Mandela � mesmo a dos massacres dos Montes de Mar�a, ao sul de Cartagena, entre os departamentos de Sucre e Bol�var.

    Ali, desde os anos 1980, guerrilha e "paracos" estiveram em combate cont�nuo, causando mais de 80 mil mortes e o deslocamento de imensa quantidade de camponeses, muitos para as cidades da costa mais pr�ximas, como Cartagena e Barranquilla.

    Durante a gest�o �lvaro Uribe (2002-2010), houve um acordo para a desmobiliza��o dos paramilitares. Enquanto as lideran�as foram extraditadas para os EUA, alguns comandos m�dios cumpriram penas reduzidas e os milicianos de baixo escal�o foram em geral anistiados.

    A situa��o nos Montes de Mar�a se acalmou um pouco, mas os ex-paramilitares que n�o encontraram outro modo de sustento passaram a integrar as bacrim, que hoje ocupam parte do espa�o (rotas e laborat�rios) deixado pelos grandes cart�is de narcotr�fico de coca�na (Cali e Medell�n) dos anos 90.

    "O que existe na Col�mbia hoje, em lugares que n�o s�o exclusivamente de influ�ncia das Farc ou do ELN (Ex�rcito de Liberta��o Nacional, guerrilha de esquerda ainda na ativa), � uma mescla j� dif�cil de descrever. Uma esp�cie de 'tudo junto e misturado'", diz � Folha o jornalista norte-americano Jon Lee Anderson, que realizou oficinas de jornalismo para jovens no local.

    Para Anderson, isso faz com que as pessoas em lugares como o Mandela "n�o pare�am dizer a verdade ou que a digam pela metade, quando contam sua hist�ria. A sensa��o que tenho � que h� sempre um poder assombrando aquela popula��o, seja de 'paracos', de 'bacrins', do que for", completa.

    De fato, ao perguntar aos garotos do Mandela sobre a situa��o atual, as respostas s�o evasivas. J� sobre o passado, n�o se colocam reservas para contar hist�rias terr�veis de assassinatos e crimes.

    "Era comum as crian�as sa�rem para a escola e encontrarem corpos nas vielas, por exemplo", conta Barraga. "A gente sabia quando chegava um grupo novo e outro ia embora, pela diferen�a dos crimes que v�amos acontecer."

    Mas, quando questionados sobre o presente, preferem dizer apenas que esperam que as coisas melhorem depois do plebiscito.

    'VACUNAS'

    Quieta durante toda a reuni�o da Folha com os jovens da associa��o, Lorena Coronado, 21, � a �nica que, ao final do encontro, exp�e os perigos atuais de viver num bairro de "desplazados". E conta sua hist�ria.

    "Sa�mos de nossa casa no interior, fug�amos da extors�o (chamada aqui de "vacuna"), porque meu pai era comerciante e tinha que pagar impostos aos guerrilheiros e aos 'paracos'. Viemos para o Mandela e meu pai montou um bar. Mas n�o s� as 'vacunas' continuaram, a pre�os absurdos, como no bar ele escutava muitas coisas. Ouvia, por exemplo, criminosos combinando a��es, organizando sequestros e assassinatos. Um dia vieram me avisar que ele tinha sido assassinado. Sa� correndo e encontrei ele j� no ch�o, morto. A pol�cia diz que foi porque se recusou a pagar 'vacuna' a algum grupo, mas eu tamb�m acho que pode ter sido porque ele come�ou a saber coisas demais."

    Apesar das reclama��es generalizadas dos moradores, o governo nacional e regional v�m trabalhando numa lenta urbaniza��o do Mandela. O bairro ainda � de ruas e vielas irregulares e de terra, mas o sistema de eletricidade, que n�o havia durante a primeira d�cada desde sua funda��o, hoje chega � maioria das casas, assim como uma prec�ria rede de esgotos.

    Um dia antes da assinatura do acordo em Cartagena, o presidente colombiano Juan Manuel Santos e o l�der das Farc, Rodrigo "Timochenko" Londo�o, ir�o viajar juntos aos Montes de Mar�a, num gesto de demonstra��o de reconhecimento ao sofrimento da popula��o local.

    "O presidente Santos quer deixar claro que o foco do acordo s�o as v�timas, por isso � natural que visitemos um dos lugares mais lastimados da Col�mbia, onde houve v�timas de paramilitares, de guerrilhas, massacres e deslocamento for�ado dos camponeses", disse o senador governista Roy Barreras. "O que ocorreu nos Montes de Mar�a nunca mais deve se repetir."

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