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    Minha Hist�ria

    China fez lavagem cerebral, diz testemunha do massacre da pra�a da Paz Celestial

    MARCELO NINIO
    DE PEQUIM

    02/06/2014 02h00

    A brasileira Raquel Martins, 49, que vive em Pequim e testemunhou o massacre da pra�a da Paz Celestial, em 1989, diz que governo chin�s conseguiu fazer lavagem cerebral no pa�s

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    Em 1989, eu cursava o segundo ano de literatura chinesa na Universidade de Pequim, onde come�ou o movimento estudantil. Os estudantes aproveitaram o enterro de Hu Yaobang, dirigente comunista que defendia reformas pol�ticas e havia sido posto para escanteio, para pedir democracia.

    Mas a China mal havia come�ado sua abertura econ�mica, e os estudantes pediam democracia sem saber muito bem o que era. At� ent�o n�o havia nenhum clima de protesto na universidade, foi tudo espont�neo.

    O movimento cresceu, ganhou apoio popular e at� da m�dia estatal. No in�cio era festa. A meta n�o era derrubar o regime. Os estudantes se consideravam comunistas, s� queriam mais liberdade.

    Nunca houve a sensa��o de que o regime iria cair. O governo chin�s � forte demais, n�o cai assim. Ainda mais do jeito que eles s�o treinados, com lavagem cerebral.

    Fui � pra�a quase todos os dias do protesto, porque estava traduzindo para o meu pai [o jornalista Jayme Martins]. Cada um dizia uma coisa, n�o havia um discurso unificado. Uns apoiavam os grevistas, outros queriam democracia ou falavam em ter uma vida melhor.

    Houve baderna no fim, mas n�o quebraram uma s� loja. Nada parecido com os protestos recentes no Brasil. S� depois que o Ex�rcito entrou � que enforcaram alguns soldados.

    O �ltimo dia que n�s fomos � pra�a foi 3 de junho [v�spera do massacre]. Estava calmo, pouca gente. A pra�a estava imunda, lixo por todo lado, um fedor. T�o insalubre que jogavam desinfetante.

    Acho que faltou paci�ncia ao governo. O movimento estava definhando, se deixasse ele morreria sozinho.

    Sa�mos da pra�a e fomos caminhando at� o casamento de uma amiga brasileira. Fazia muito calor e tinha muita gente na rua, idosos, crian�as. O Ex�rcito j� estava dentro da cidade, ent�o se esperava que algo acontecesse.

    Perto da 0h, aumentou o movimento de tropas e houve p�nico. Ouvimos um barulho maior. No in�cio, pensamos que era jato d'�gua. Mas eram os tanques chegando. Um rapaz tentou atravessar a rua e o tanque passou por cima, na nossa frente.

    Pediam para tirarmos fotos. "Estrangeiros, mostrem ao mundo o que o nosso governo est� fazendo."

    Quando deu 2h da manh�, come�amos a ouvir tiros. Foi uma surpresa: ningu�m sonhava que o Ex�rcito seria capaz de atirar no povo.

    Marcelo Ninio/Folhapress
    A brasileira Raquel Martins, que em 1989 era estudante na Universidade de Pequim, na pra�a da Paz Celestial
    A brasileira Raquel Martins, que em 1989 era estudante na Universidade de Pequim, na pra�a da Paz Celestial

    Passamos a noite em claro. Tanques e mais tanques passavam, alguns atirando. O apartamento da secret�ria do embaixador do Brasil foi atingido, a parede ficou marcada por tiros. Muitos morreram por bala perdida.

    O clima era de indigna��o: como tudo podia acabar assim? Para mim a indigna��o veio depois, quando o governo negou tudo e acusou os estudantes de contrarrevolucion�rios. Mas eles s� queriam democracia!

    Quando amanheceu, Pequim era outra. Sil�ncio. Barreiras militares. �nibus e tanques queimados. A embaixada providenciou uma perua, cobriu com a bandeira brasileira e passamos as barreiras de janela aberta.

    Havia rumores de que haveria uma guerra civil. Ficamos acampados na Embaixada do Brasil at� que o embaixador, Roberto Abdenur, decidiu retirar todos os brasileiros da China. �ramos poucos na �poca, cerca de 20. Pegamos o primeiro voo que deu, da Pakistan Airlines.

    Era uma situa��o dif�cil. N�o sab�amos se haveria guerra, se poder�amos voltar.

    Quando voltei, em agosto, o clima na universidade era totalmente diferente. Voltou a tens�o da Revolu��o Cultural, que eu conhecia bem da inf�ncia: ningu�m confiava em ningu�m. A minha gera��o saiu da universidade e decidiu ganhar dinheiro.

    Continuo achando que poucos chineses sabem do massacre. O governo conseguiu fazer a lavagem cerebral.

    O discurso era: vamos olhar para a frente. Naquela �poca, o pa�s era muito pobre. Essa ideia do Deng Xiaoping de enriquecer fez a cabe�a de muita gente.

    Oitenta por cento da popula��o era rural. E a vida realmente melhorou. Hoje todos os meus amigos chineses est�o em situa��o melhor.

    Se um movimento n�o funciona assim, n�o � porque o Partido Comunista n�o deixa: � porque a tradi��o n�o permite desafiar a autoridade. O chin�s est� condicionado a obedecer h� mil�nios.

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