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    Burlar leis com o 'jeitinho' n�o � especialidade s� do Brasil

    ANTONIO RIS�RIO

    14/05/2017 02h06

    RESUMO Autor rebate a ideia de que o proverbial "jeitinho brasileiro" seja um tra�o distintivo da cultura nacional. De forma mais ou menos estruturada, o ato de burlar leis � corriqueiro em diversas partes do mundo, mesmo em sociedades tidas como severas na observ�ncia das normas, como a Alemanha.

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    N�o deixa de ser engra�ado, ou ao menos pitoresco, ver brasileiros encherem a boca para falar que "o Brasil n�o � para principiantes", frase tantas vezes atribu�da a Tom Jobim. Porque o Brasil est� longe de ser o �nico pa�s que pode dizer isso de si mesmo. Na verdade, ser� sempre bom desconfiar da especificidade da maioria das coisas que damos como especificamente brasileiras.

    A frase pegou por ao menos dois motivos. Primeiro, porque � muito boa: uma constru��o sint�tica, direta, sem meios tons, com um charme "profissional". E certamente encontra correspond�ncia fatual em nossa experi�ncia, tanto hist�rica quanto cotidiana. Um pa�s cheio de ambiguidades, contradi��es, paradoxos, coisas que parecem inusitadas e particularmente nossas.

    Segundo, porque ela afirma uma suposta singularidade brasileira no mundo.

    Como disse, entretanto, a observa��o n�o se aplica s� ao Brasil. Podemos muito bem dizer que a It�lia n�o � para principiantes. Tamb�m n�o me parece que a R�ssia, a Alemanha, a Nig�ria, o Egito, a China e o M�xico o sejam. Cada um � sua maneira, diversos pa�ses n�o s�o para principiantes.

    � preciso desconfiar tamb�m de certas singularidades nacionais apontadas em estudos eruditos, em livros de intelectuais que fazem sucesso entre intelectuais, os quais cristalizam perigosamente leituras sobre o Brasil que deveriam ser relativizadas.

    Exemplo disso � a tese de Roberto Schwarz acerca das "ideias fora do lugar", apontando um descompasso nosso entre a ado��o do ide�rio liberal e a manuten��o do escravismo –tese que merece ressalvas.

    Ela pressup�e a exist�ncia de algum espa�o perfeito em que princ�pios jur�dicos e pr�ticas sociais tenham sido feitos um para o outro –o que n�o passa de fic��o te�rica, como sublinhou Bernardo Sorj em "A Nova Sociedade Brasileira".

    Al�m disso, tamb�m nos Estados Unidos liberalismo e escravid�o conviveram por muito tempo, praticamente 90 anos. A Declara��o da Independ�ncia � de 1776, enquanto a emenda constitucional que aboliu o regime escravista data de 1865.

    JEITINHO

    Mas quero me demorar aqui num exemplo que atravessa classes sociais, faixas et�rias, n�veis educacionais, distin��es de cor e sexo, como suposto signo identit�rio nacional: o c�lebre "jeitinho brasileiro", a que todos parecem ter recorrido pelo menos uma vez na vida –e, por isso, transformado na mais democr�tica de todas as nossas contraven��es.

    Vamos, primeiro, definir "jeitinho", para n�o derrapar � maneira de Francisco de Oliveira, que, em "Jeitinho e Jeit�o: Uma Tentativa de Interpreta��o do Car�ter Brasileiro" (revista "piau�", n� 73, em 2012), entrega-se a tal debordamento conceitual que faz com que a no��o perca qualquer sentido, uma vez que passa a ter todos.

    Assim, a bossa nova � tratada como "um jeitinho de escapar das conven��es musicais � la Vicente Celestino". Bras�lia se v� reduzida a um jeitinho da classe dominante para implantar uma capital "nos ermos do Planalto Central".

    Bota-se na conta do jeitinho e da malandragem, tamb�m, a promo��o da imigra��o para enfrentar o fim do escravismo (e dane-se o Florestan Fernandes que t�o bem flagrou o desvirtuamento do movimento abolicionista, em "A Revolu��o Burguesa no Brasil", publicado em 1974).

    At� a CLT de Get�lio Vargas � definida como um jeitinho para civilizar as rela��es trabalhistas no Brasil. Ou seja, jeitinho vira uma esp�cie de Bombril conceitual: � multiuso. Ficamos girando em falso.

    De outra parte, jeitinho e malandragem n�o s�o a mesma coisa. N�o devemos fundir os fen�menos. Jeitinho n�o implica trapacear o pr�ximo, nem vender gato por lebre. O malandro recorre ao jeitinho, mas n�o � a encarna��o desse, como Oliveira defende.

    Vale dizer, h� conex�es entre jeitinho e malandragem, mas tamb�m diferen�as. Por exemplo: n�o h� lugar para a figura do ot�rio no espa�o interpessoal do jeitinho. O que se quer driblar � a norma, a regra, n�o o outro.

    No extremo oposto do espectro ideol�gico, Roberto Campos viu com mais clareza. Em sua "Sociologia do Jeito" (ensaio na revista "Senhor", publicado em 1960), o jeitinho se explica pela rela��o entre lei e fato social, que diferencia os latinos dos anglo-sax�es. Para estes �ltimos, a lei � express�o de uma pr�xis, fundada no costume, a partir de uma cole��o de precedentes. J� entre os latinos, a legisla��o � um conjunto formal de regras aprior�sticas que, em vez de nascer das condutas sociais, quer modelar comportamentos.

    � desse desencontro entre o formalismo da lei e o comportamento real das pessoas que nasce o jeitinho –modo de contornar uma normatividade jur�dica que se quer impor de fora � vida social.

    O curioso � que, em meados do s�culo que passou, a tese era a de que o jeitinho decorria do atraso de nossa forma��o e de nossas estruturas. Estaria condenado a desaparecer � medida que o pa�s experimentasse processos de atualiza��o hist�rica. N�o foi o que aconteceu.

    O jeitinho n�o era mero reflexo de uma determinada conjuntura sociot�cnica. Era coisa mais enraizada. As rela��es pessoais continuavam estruturando nossas vidas, nosso cotidiano etc. Vamos ent�o definir assim: o jeitinho � um modo de interpessoalizar um espa�o impessoal, com vistas a burlar a norma ou a lei.

    UNIVERSAL

    Por fim, tamb�m o jeitinho, como as "ideias fora do lugar", n�o � uma especificidade brasileira. � certo que ningu�m, depois de ouvir um rotundo "nein" de um funcion�rio da burocracia alem�, vai pensar que � poss�vel contorn�-lo na base do jeitinho.

    Ao mesmo tempo, sempre desconfiei dessa especificidade nacional, perguntando se n�o haveria jeitinho na Turquia, por exemplo. Recentemente, levantei essa bola nas redes sociais e recebi respostas que transformaram minha desconfian�a em certeza.

    Uma senhora falou da exist�ncia do jeitinho na S�rvia e no sul da �ndia. E disse uma coisa interessante: afirmamos a especificidade do jeitinho porque nossa refer�ncia � a Europa ocidental.

    Parece, contudo, que mesmo por l� o jeitinho d� o ar de sua gra�a. A professora Mar�lia Mattos lembrou, a prop�sito, um velho ditado espanhol: "hecha la ley, hecha la trampa" [com a lei nasce a brecha].

    O jeitinho n�o � a regra, como no Brasil, mas � poss�vel encontr�-lo tamb�m na Alemanha, segundo depoimento que a historiadora M�rcia Cristina Fr�guas me deu:

    "Posso te contar da minha percep��o em Berlim, onde vivi em 2004, estudando alem�o e audiovisual. Os alem�es t�m no��o de qu�o dif�cil � o idioma deles. Em Berlim, quando percebem que um estrangeiro se esfor�a para aprender e tem bons resultados, imediatamente se forma um v�nculo afetivo".

    Ela continuou: "Diversos jeitinhos me foram oferecidos, desde burlar meios legais para que eu pudesse ficar no pa�s (um dos meus professores queria atestar para a imigra��o que eu lecionava portugu�s num curso de idiomas que ele dirigia, o que era mentira), passando pela oferta de uma professora de utilizar sua rela��o com o reitor de uma universidade em Hamburgo para que eu pudesse assistir a aulas como ouvinte, burlando uma regra espec�fica da institui��o".

    E concluiu: "Enfim, os berlinenses com quem convivi se colocavam � minha disposi��o para entortar os tr�mites burocr�ticos locais".

    Para finalizar, o antrop�logo M�rcio Gomes, autor de "Os �ndios e o Brasil" (Contexto, 2012), entrou na conversa fazendo uma distin��o entre jeitinho t�tico ("um atalho diante de dificuldades"), que � universal, e jeitinho estrat�gico (no sentido de estrat�gia de sobreviv�ncia; modo estruturado de burlar regras e normas sociais), encontr�vel num n�mero bem mais reduzido de pa�ses, geralmente muito desiguais socialmente e onde n�o h� um sentimento de consenso cultural.

    "Pa�ses como Brasil, M�xico, R�ssia e outros aplicam esse jeitinho estrat�gico. Pa�ses que t�m consenso sobre suas regras, em geral as sociedades mais ou menos igualit�rias, usam o jeitinho t�tico com muita compet�ncia."

    Penso que, nesse caso, fazemos tanta quest�o de alimentar supostas especificidades nacionais, distinguindo-nos das demais na��es, porque certas sensa��es de singularidade, mesmo que meramente imagin�rias, refor�am e sublinham a identidade e o narcisismo de uma coletividade, ao delinear com alguma clareza, ainda que apenas no imp�rio das apar�ncias, o seu lugar no mundo.

    O fato � que, al�m de n�s, tamb�m a Inglaterra –e a Argentina, a Espanha, a Alemanha e a It�lia– se v� como "o pa�s do futebol".

    Ou seja: melhor a gente prestar mais aten��o no mundo, em vez de, olhando somente para si mesmo, achar que � mais singular do que realmente �. Existem singularidades brasileiras, � claro. Mas n�o somos t�o diferentes dos outros quanto �s vezes queremos acreditar.

    ANTONIO RIS�RIO, 63, antrop�logo, ensa�sta e romancista, � autor de "A Cidade no Brasil" (ed. 34) e "Que Voc� � Esse?" (Record).

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