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    H� meio s�culo, tropic�lia chegava para 'arrombar a festa'

    MARCOS AUGUSTO GON�ALVES

    09/04/2017 02h00

    RESUMO Autor lembra o caldo cultural em que o tropicalismo eclodiu. Por incorporarem o imagin�rio estrangeiro e temas da sociedade de consumo, seus art�fices destoavam da can��o engajada em voga nos anos 1960. Segundo o artigo, ecos do movimento ressoam ainda hoje na arte do pa�s.

    Bruno Santos/Folhapress
    Aquarela de Maria Lynch
    Aquarela de Maria Lynch

    H� tr�s anos, quando a turn� de "Abra�a�o" passou por Nova York, tive a oportunidade de encontrar Caetano Veloso em seu apartamento no East Village.

    Ele vinha de Los Angeles com a Banda C� e estava particularmente animado com os elogios que Randall Roberts, cr�tico do "Los Angeles Times", fizera ao show. Encontrou o texto na internet e fez quest�o de ler para mim a passagem que mencionava a presen�a de "Baby" no repert�rio.

    Roberts dizia que era preciso deixar registrado para a hist�ria o fato de o compositor brasileiro "finalmente ter cantado sua cl�ssica 'Baby' no glorioso espa�o ao ar livre do Hollywood Bowl" –lembrando de que se tratava de uma can��o tropicalista j� transformada, �quela altura, em uma "pedra de toque sem fronteiras".

    "Baby" foi gravada em 1968, um ano depois da explos�o de "Alegria, Alegria" e "Domingo no Parque" no festival da Record, que marcou o lan�amento dos tropicalistas na cena nacional.

    Com forma��es inusitadas para a �poca, Caetano se fazia acompanhar de um grupo pop argentino, chamado Beat Boys, e Gil aparecia escoltado pelos modern�ssimos Rita Lee e Os Mutantes.

    Assim como "Alegria, Alegria", "Baby" destoava da nota nacionalista dominante na can��o engajada que prosperava no pa�s e atra�a os cora��es e ouvidos de grande parte da juventude de esquerda, na onda de protestos contra a ditadura militar brasileira.

    A can��o de Caetano revestia-se de um internacionalismo "cool", enganosamente ing�nuo, que repetia palavras do universo do consumo pop e dizia que voc� precisava ouvir Roberto Carlos e aprender ingl�s.

    A letra, influenciada por conversas do compositor com sua irm� Maria Beth�nia, citava tamb�m outra m�sica, que n�o era da jovem guarda: a "Carolina", de Chico Buarque, que surgia justaposta � "margarina" e � "gasolina" –deixando transparecer a dimens�o mercadol�gica da m�sica popular, fosse ela escrita por um compositor de esquerda em registro po�tico elevado, fosse feita por um cabeludo do i�-i�-i� escapista. Os tropicalistas sabiam de onde estavam falando.

    A ambi��o internacionalista do movimento decolava da plataforma de lan�amento da bossa nova, uma s�ntese bem-sucedida e sofisticada do samba com as li��es do jazz, que, ao ritmo �nico do viol�o de Jo�o Gilberto, musicou um projeto de pa�s.

    Em 1966, num depoimento � "Revista Civiliza��o Brasileira", Caetano disse: "Jo�o Gilberto, para mim, � exatamente o momento em que isto aconteceu: a informa��o da modernidade musical utilizada na recria��o, na renova��o, no dar-um-passo-�-frente da m�sica popular brasileira".

    MODERNISMO

    O tropicalismo valeu-se tamb�m da pista aberta pelo modernismo brasileiro dos anos 1920, embora os baianos ainda n�o soubessem inteiramente dessa conex�o. Foi o poeta Augusto de Campos quem os apresentou � obra de Oswald de Andrade (1890-1954) e a suas teses sobre a antropofagia.

    As rela��es com o grupo concreto s�o um cap�tulo importante da inscri��o mais ampla do tropicalismo em S�o Paulo, que foi a cena fundamental do movimento. Na �poca dos festivais, Caetano e Gil moraram na capital paulista, e o tropicalismo suscitou nos meios intelectuais da cidade, dentro e fora da universidade, uma extensa e qualificada fortuna cr�tica.

    Balan�o da Bossa e Outras Bossas
    Augusto de Campos
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    Augusto de Campos foi um observador entusiasmado da primeira hora do movimento, identificando-se com sua inclina��o vanguardista e seu interesse pelas linguagens da cultura de massa. O livro "O Balan�o da Bossa" (2005) � um registro vivo desses encontros –e a can��o "Batmacumba", do �lbum "Panis et Circensis", de 1968, exemplifica muito bem a atra��o exercida pela poesia concreta.

    Outro paulista, Roberto Schwarz, que tem seus atritos com o concretismo, tornou-se tamb�m, por caminhos diferentes, um interlocutor relevante no debate. Seu ensaio "Cultura e Pol�tica, 1964-1969", publicado no calor da hora, em 1970, na revista francesa "Les Temps Modernes", fazia uma avalia��o cr�tica da tropic�lia que marcou �poca e continua a ser uma refer�ncia para as discuss�es sobre o movimento.

    Mais recentemente, em coment�rio ao livro "Verdade Tropical" (1997), Schwarz escreveu sobre o internacionalismo tropicalista: "Caetano foi precoce na compreens�o da pol�tica internacional da cultura, em que o influxo estrangeiro –inevit�vel– tanto pode abafar como trazer liberdade, segundo o seu significado para o jogo est�tico-pol�tico interno, que � o nervo da quest�o".

    Nessa din�mica, a influ�ncia estrangeira ou diretamente norte-americana, ainda que problem�tica, poderia servir como um caminho esperto para questionar o conformismo pol�tico e o preconceito cultural brasileiro –de direita, mas tamb�m de esquerda.

    "O que conta n�o � a proced�ncia dos modelos culturais, mas a sua funcionalidade para a rebeldia, esta sim indispens�vel ao pa�s atrasado", escreveu Schwarz.

    Como atitude pol�tica e est�tica, o tropicalismo assumiu antes a perspectiva do rebelde do que a do militante marxista, sem que isso necessariamente representasse um muro intranspon�vel.

    A politiza��o da arte de vanguarda no p�s-guerra, que ecoava a boa f�rmula de Vladimir Maiak�vski ("n�o h� arte revolucion�ria sem forma revolucion�ria"), disseminava-se em movimentos como a Nouvelle Vague francesa e se materializava no Brasil do energ�tico 1967, em realiza��es potentes associadas ao tropicalismo, como o filme "Terra em Transe", de Glauber Rocha, a montagem de "O Rei da Vela" pelo Oficina ou a instala��o "Tropic�lia", de H�lio Oiticica, que foi exposta no Rio de Janeiro em abril e emprestou seu t�tulo � can��o-s�mbolo do movimento.

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    CONTRADI��ES

    Atuando no territ�rio da m�sica popular, exposto �s complica��es (mas tamb�m �s vantagens) da cultura comercial e dos ve�culos de massa, Caetano e Gil tomaram partido de constru��es aleg�ricas e par�dicas para criticar e, ao mesmo tempo, exaltar, de maneira sarc�stica, carnavalesca e, por vezes, melanc�lica, as contradi��es de um pa�s onde arca�smos e modernidades conviviam e se entrechocavam.

    O efeito dessas colagens bomb�sticas e cinematogr�ficas, que confrontavam refer�ncias eruditas e vulgares nos arranjos e nas letras das can��es, rompia com o programa nacional-popular, inclinado a separar, e n�o a justapor, o que seriam polos antag�nicos e excludentes –esquerda x direita, consciente x alienado, militante x desbundado, popular x elitista, nacionalismo x imperialismo.

    Em 1967, em uma entrevista, Caetano respondeu aos que lhe cobravam mais compromisso com as "ra�zes" da cultura nacional: "Nego-me a folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar dificuldades t�cnicas. Ora, sou baiano, mas a Bahia n�o � s� folclore. E Salvador � uma cidade grande. L� n�o tem apenas acaraj�, mas tamb�m lanchonetes e hot dogs''.

    O compositor dizia-se cada vez mais interessado "pela vitalidade natural da m�sica vulgar e comercial" do que pelo "intelectualismo" em que teriam ca�do "todos os que se acreditavam continuadores de Caymmi, Noel e outros". E completava: "Estou me esfor�ando para respeitar meu p�blico, que � jovem como eu, e est� tamb�m interessado em que sejamos gente do mundo de agora''.

    A figura��o par�dica e fragmentada do pa�s levada adiante pelo tropicalismo, embora criticada � esquerda por ser supostamente incapaz de resolver a equa��o e projetar o resultado para o futuro, tinha, sim, um vetor progressista e, a seu modo, nacionalista.

    Um nacionalismo, no entanto, que se via tolhido pela plataforma hegem�nica da esquerda e que veio a se encontrar nas imensid�es hist�ricas, afetivas, cr�ticas e ut�picas de Nabucos, Freyres, Bonif�cios e Jobins.

    O tropicalismo, disse Caetano certa vez, "foi uma maneira de arrombar a festa". Esquematicamente, foi uma interven��o atinada e an�rquica no ambiente politizado da cultura brasileira da d�cada de 1960, sintonizada com a cultura pop da juventude internacional.

    Renovou a sintaxe, a sem�ntica e o aspecto visual da m�sica popular. Abriu o leque para uma atitude inconformista, transversal e cosmopolita, que questionava o obscurantismo autorit�rio, os moralismos, os tabus da "intelligentsia" e os c�digos do bom-gostismo.

    A bossa e a palho�a, Bras�lia e Carmen Miranda, Beatles e Vicente Celestino, Batman e macumba. A cultura brasileira contempor�nea sem a tropic�lia seria imensamente mais pobre.

    HERAN�A

    Mesmo num pa�s j� bastante diferente, o tropicalismo continuou a despertar interesse nas novas gera��es. A aproxima��o entre Chico Science e Gil ou, mais recentemente, entre Caetano e os rapazes da Banda C�, s�o amostras dessas rela��es, atualizada pelos tribalistas Arnaldo Antunes, Marisa Monte e Carlinhos Brown.

    O legado est� vivo, n�o apenas na figura lend�ria de alguns dos personagens centrais dessa hist�ria, como Caetano, Gil, Z� Celso ou Tom Z�, que continuam ativos e criativos, mas tamb�m na incorpora��o natural de quest�es levantadas �quela �poca ao fluxo da cultura contempor�nea.

    Ningu�m imagina que se possa, no Brasil de hoje, organizar protestos contra a guitarra el�trica ou considerar que a bossa nova seja uma intromiss�o imperialista para descaracterizar o genu�no samba brasileiro.

    Os desdobramentos est�o a�, tanto nas margens, como informa��o e alimento para novos artistas, quanto na consagra��o do "mainstream" –basta dizer que "Tropic�lia" tornou-se m�sica de abertura de uma novela da Globo.

    MARCOS AUGUSTO GON�ALVES, 61, � jornalista da Folha e colaborador em Nova York

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