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    Ben Lerner, talento em ascens�o, cobre em sua obra o amor e o imp�rio

    JOHN FREEMAN
    tradu��o CLARA ALLAIN
    ilustra��o MARCELO COMPARINI

    01/11/2015 03h24

    RESUMO Crescido no conservador Kansas, jovem prod�gio da orat�ria tornou-se autor premiado de livros que criticam o poderio e a insularidade dos americanos. � o caso do romance "Esta��o Atocha", recentemente lan�ado no Brasil, e da colet�nea de poemas "�ngulo de Guinada", a sair nesta semana, em e-book, no pa�s.

    Foto Raquel Cunha/Folhapress

    Em setembro de 2001, Ben Lerner dividia uma casa profundamente suja em West Providence com seu amigo de inf�ncia Cyrus Console. Os dois poetas estavam concluindo seus estudos de p�s-gradua��o na Universidade Brown e viviam como jovens bo�mios. Tomavam muito vinho verde, sendo a adega das proximidades comandada por um portugu�s, e u�sque � noite. Console alimentava com carne os morcegos que circulavam pelo quintal de madrugada. "Acho que n�o comemos nem um s� legume em todo o tempo que vivemos ali", recorda Lerner. "Mas conseguimos terminar nossos primeiros livros naquela casa gelada."

    Foi tamb�m naquela casa gelada que, na manh� do 11 de Setembro, Console acordou Lerner para ver na TV as not�cias sobre os ataques ao World Trade Center. Os dois rapazes acompanharam muito os notici�rios nos dias seguintes. Entre as hist�rias que circulavam, uma, veiculada por uma grande rede de not�cias, dava conta da apari��o do rosto de Satan�s na fuma�a de uma das torres em chamas. "Aquele momento n�o foi o fim da inoc�ncia quanto ao imp�rio americano", diz Lerner, "mas a percep��o de que as for�as do imp�rio n�o precisavam mais nem fingir que usavam o discurso da raz�o. O aviltamento da linguagem alcan�ara um novo n�vel."

    Lerner me diz isso num e-mail, mas � assim que ele fala tamb�m pessoalmente. Sentado do lado de fora de um caf� de Park Slope, ele � o retrato acabado do morador clich� do Brooklyn, de �culos e t�nis retr� e segurando um ch� gelado. Seu iPhone, com a tela rachada, apita de tanto em tanto a seu lado.

    Mas, quando abre a boca e come�a a falar da "fenomenologia de um futuro desigual e incerto" ou "da insustentabilidade de nosso estilo de vida", fica claro que, para ele, essas n�o s�o s� palavras v�s; se vamos perscrutar a moralidade dos privil�gios no momento presente, � priorit�rio invocar a linguagem e sua precis�o.

    O motivo para estarmos frente a frente n�o � a poesia de Lerner –a qual lhe valeu pr�mios e que em 2006 fez dele, hoje com 36 anos, o finalista do National Book Award mais jovem na mem�ria recente–, mas um romance que ele escreveu "por acaso", "Esta��o Atocha" [trad. Gianluca Giurlando, R�dio Londres, 224 p�gs., R$ 35].

    O livro, cujo t�tulo alude � esta��o ferrovi�ria de Madri atingida em 2004 por bombas de terroristas, conta a hist�ria de um jovem poeta, Adam Gordon, que viaja para a Espanha com uma bolsa Fulbright, como fez o pr�prio Lerner. Adam passa os dias vagando por museus, fumando haxixe e correndo atr�s de duas mulheres diferentes. A cada p�gina, ele se vergasta com sua inseguran�a e com a sensa��o de ser uma fraude.

    N�o fosse t�o engra�ado e �cido, o romance poderia ter ca�do na vala comum dos livros sobre escritores falidos. A autodeprecia��o de Adam gira em torno de sua insularidade americana. "Enquanto a Espanha votava", diz uma frase, "eu checava meus e-mails."

    Na companhia de espanh�is enfronhados em protestos, Adam mergulha cada vez mais fundo em suas neuroses, fantasiando e desejando que outra bomba explodisse: "Imaginava meus amigos americanos, a grande surpresa, e talvez inveja, deles pela morte que o destino havia reservado para mim, pela forma como a Hist�ria tinha me escolhido".

    Em �ltima inst�ncia, "Esta��o Atocha" � um estudo profundo sobre se � poss�vel "fundamentar seu relacionamento com a arte na ansiedade sobre sua inautenticidade", como explica Lerner.

    Adam est� na Espanha para escrever um poema �pico sobre a Guerra Civil, mas n�o escreve praticamente palavra. Ele se convence de que a poesia � in�til. Essa ideia do suposto poder da poesia � algo sobre o que Lerner j� refletiu bastante. Ele publicou um ensaio na "London Review of Books" em que se estendia sobre como a poesia, para ser poesia, precisa fracassar, pois a ideia que o poeta tem em mente nunca se realiza por inteiro –o texto deve sair em livro, em ingl�s, no ano que vem.

    A quest�o principal do romance, por�m, tem a ver com o poder americano e a moralidade peculiar da riqueza e da autoidentifica��o nos tempos atuais. Como diz Lerner, "trata-se de reencontrar o que h� de americano quanto � viol�ncia, a assimila��o e o capital, mesmo se voc� est� no exterior". "A� voc� tem essa maneira estranha de se reinventar ao mesmo tempo em que l� no 'New York Times' as not�cias sobre o atentado que aconteceu bem ali do seu lado."

    S�o preocupa��es sofisticadas e, em grande medida, incomuns entre escritores do Brooklyn. Quando pergunto a Lerner de onde elas vieram, sua resposta � t�o clara quanto inesperada e desarma qualquer um que queira reduzir os Estados Unidos a um mon�lito.

    "Cresci numa fam�lia judaica esquerdista, em um Estado muito conservador, com m�e feminista declarada, e estudei teoria pol�tica e a tradi��o da esquerda", ele responde, "de modo que minha percep��o da pol�tica da linguagem –ou sobre o aviltamento da linguagem no contexto do capital e do imp�rio– cresceu ali comigo, nos anos 1980, e isso foi parte do que me dirigiu para a poesia."

    Em outras palavras, elas vieram de Topeka, Kansas.

    DESVIO

    Aqui � preciso fazer um breve desvio. H� lugares no Kansas conhecidos como bols�es progressistas, caso de Lawrence, onde William S. Burroughs passou seus �ltimos anos, perto da Universidade do Kansas, com seus caf�s e sua noite gay. Ou Wichita, que recentemente votou a favor de descriminalizar a posse de maconha.

    Topeka n�o � um deles. � mais conhecida pelos choques raciais e, apesar de ser a capital do Estado, basta se distanciar alguns quil�metros da cidade para que tudo � vista seja o c�u imenso.

    Crescer em Topeka nos anos 1980, diz Lerner, n�o foi perfeito, mas se podia tirar algo do fato de as coisas n�o serem f�ceis de conseguir ali. "Foi um lugar bom para crescer porque era muito aberto –quer dizer, ali tinha algo... algo que o poeta William Stafford, que � do Kansas, descreve como a 'valiosa desimport�ncia' do Kansas. E era isso, n�o havia nada de exclusivo. Para o bem e para o mal. N�o havia lugar para belas-artes nem nada do g�nero, mas tinha essa esp�cie de abertura."

    Os pais de Lerner eram terapeutas de fam�lia e trabalhavam na cl�nica Menninger, fundada em 1925. A m�e tamb�m era escritora, autora de um t�tulo importante –"The Dance of Anger" foi o primeiro livro nos EUA a falar da raiva feminina e figurou entre os best-sellers do "New York Times"

    Os Lerners jantavam juntos quase toda noite e incentivavam os filhos (ele tem um irm�o mais velho, Matt, que � diretor financeiro de uma empresa de tecnologia de Seattle) a falar e se expressar. A vida familiar, explica "n�o era como fazer terapia em grupo, "mas era muito, muito verbal, a t�nica era compartilhar os sentimentos, e n�o reprimi-los". "E havia muitos livros, sabe, livros de [poetas feministas como] Adrienne Rich e Audre Lorde, e a� do nada tinha um tijol�o do [tamb�m poeta] Theodore Roethke sabe-se l� por qu�."

    Console, que tamb�m cresceu em Topeka, descreve a habilidade verbal de seu amigo mais novo como mais do que precoce. "No colegial ele era um cara 'dur�o', at� certo ponto, mas tamb�m um campe�o nacional de debate e orat�ria. Com 'dur�o' quero dizer que sua ideia de justi�a muitas vezes o colocava em confrontos hostis com nossos pares do sexo masculino. � importante deixar claro que ele era ent�o, como hoje, algu�m muito compassivo e sens�vel."

    Lerner foi, de fato, campe�o estadual de orat�ria em todos os anos do ensino m�dio –no �ltimo, campe�o nacional. Ele � o l�der nacional hist�rico de pontos em debates. Foi vendo os contendentes obrigarem advers�rios a responderem cada m�nimo argumento que ele vislumbrou o lado assustador do discurso pol�tico americano.

    HIP-HOP

    Ap�s os debates, Lerner ia a festas regadas a cerveja e passava para outro discurso fundamental da �poca, o hip-hop, participando de disputas de rap. � uma imagem c�mica, considerando que quase todos os participantes eram brancos de classe m�dia alta. Anos atr�s ele escreveu um texto na revista "Harper's" que revelou como essa colis�o improv�vel de discursos o formou.

    "Quando eu, no meu terno da Dillard's, desfiava argumentos numa escola quase vazia; quando eu, um idiota agressivo, criava rimas num por�o, quando era um universit�rio ignorante abandonando os clich�s de meu romantismo machista do Meio-Oeste em favor dos clich�s do vanguardismo po�tico, eu estava, em todo meu absurdo, reagindo a uma crise muito real: a padroniza��o da paisagem e da cultura, a separa��o nacional entre valor e pol�tica, um discurso pol�tico depauperado ('l� vai voc� outra vez') que servia � naturaliza��o de nossa insanidade cultural particular. Eu era um sujeito jovem e privilegiado –branco, homem, de classe m�dia– de um imp�rio em que cada identidade poss�vel era uma mentira, mas, quando sentia a linguagem se decompondo � medida que eu a falava –que ela me falava–, eu sentia, em meio ao clima geral de pessimismo, que outros mundos eram poss�veis."

    Dois de seus mentores no col�gio, Ed Skoog e Eric McHenry, eram ex-debatedores de Topeka e, gra�as a sua orienta��o, Lerner come�ou a ver a poesia como uma maneira de criar conex�es que fizessem sentido e de salvar a linguagem da degrada��o crescente.

    O acaso interveio. Aos 16 anos, folheando livros numa Barnes & Noble de Topeka, Lerner pegou um livro de John Ashbery na se��o de autores premiados. "Fiquei confuso, senti vertigem", ele recorda. "N�o soube se gostava ou n�o do livro –num primeiro momento, simplesmente me deixei levar por sua estranha maquinaria."

    Lerner n�o era o �nico a seguir o fluxo rumo � poesia. Console j� escrevia seus versos, assim como muitos outros, incluindo McHenry e Skoog, Gary Jackson, Kevin Young, Michael Robbins e Nick Twemlow, cujos pais tamb�m trabalhavam na cl�nica Menninger. Tantos poetas emergiram de Topeka em uma d�cada que poderiam ser agrupados em uma escola, n�o fossem suas diferen�as est�ticas. "Talvez tenha a ver com algum hist�rico esp�rito teimoso da cidade", diz Skoog. "Topeka tem uma boa biblioteca, para uma cidade pequena. As escolas n�o eram muito boas, o que pode ter ajudado."

    Muitos desses poetas ficaram em Topeka. Ben Lerner sabia que ele n�o ficaria. "Sempre quis sair para fazer faculdade. N�o me sentia preso ali", ele escreveu na "Harper's". Ent�o ele seguiu seu irm�o para a Universidade Brown, onde se deparou com uma vers�o diferente, mas ainda maior, da comunidade com a qual tinha crescido.

    Naquela �poca, como agora, a universidade era conhecida especialmente por seu elenco grande de escritores experimentais, desde o romancista Robert Coover at� os poetas Michael Harper e Keith Waldrop, ambos ganhadores do National Book Award.

    Lerner come�ou a estudar teoria pol�tica, e sua primeira aula de poesia foi com Harper, de quem morria de medo. O "modus operandi" era marcado pela liberdade. "Os professores n�o ensinavam realmente, sabe? Eram exemplos de artistas vivos que tinham opini�es, e a gente lia livros que eles achavam importantes", diz.

    "Eu vi os Waldrops lendo" –ele conta, falando de Keith e sua mulher, Rosemarie, uma das tradutoras mais prol�ficas e importantes da Am�rica do p�s-Guerra– "e pensei 'quem � esse casal estranho? Parecem dois magos. E o que � essa baboseira vanguardista que exerce certo fasc�nio sobre mim?'."

    "A casa deles era incr�vel e eles deixavam todo mundo ir l�. Mesmo voc� se sendo s� um estudante de gradua��o, podia fingir ser escritor, e eles n�o julgavam, agiam como se voc� tivesse algo a dizer."

    No terceiro ano, a magia acabou por toc�-lo e, numa noite, Lerner escreveu dez sonetos. Eles se tornariam a base de seu primeiro livro, "The Lichtenberg Figures", uma s�rie de poemas debochados e associativos que alternavam entre a linguagem da intimidade, a publicidade e o apocalipse. "Ser� que isto poderia continuar/ para sempre de maneira boa?" indaga um deles, em tom sombrio.

    Lerner conheceu sua mulher, a professora de pedagogia Ariana Mangual, em seu primeiro ano na Brown, em 1997, e os dois est�o juntos, de uma maneira ou de outra, desde ent�o. Ele decidiu cursar a p�s na mesma universidade. Cyrus lembra de ver seu colega de quarto concluindo, como ele, o primeiro livro. "Ele e eu sa�amos para o quintal � noite e ele recitava o soneto no qual estava trabalhando. Eu tamb�m estava escrevendo um livro de poemas, mas n�o tinha certeza de acreditar realmente na poesia como g�nero art�stico. Quando eu o ouvia declarar aqueles poemas, eu n�o apenas acreditava na poesia como na primazia dela sobre todas as outras artes."

    Lerner mandou o livro a algumas editoras, incluindo a Copper Canyon Press, que ele admirava por ter publicado W.S. Merwin. Michael Wiegers, editor de poesia da casa, avaliava centenas de trabalhos de candidatos a um livro de estreia quando recebeu o manuscrito. "Percebi de cara que era um livro de outra ordem", diz.

    Quando o livro saiu, Lerner j� tinha ido para a Espanha. "Era um misto de conting�ncias e desejos. Queria aprender espanhol, mas tamb�m ir ao Marrocos e a Portugal; j� tinha estado na Espanha; ach�vamos que seria f�cil para minha mulher conseguir um trabalho informal l�, e me interessava o modo como a Guerra Civil Espanhola tinha sido um catalisador internacional da esquerda liter�ria."

    Como Adam, seu personagem, Lerner de fato passou muito tempo confuso e indo a museus –mas sua fic��o n�o � necessariamente biogr�fica. "Estou mais interessado no que fica de fora", diz. "Sinto ternura por Adam, porque ele compartilha algumas de minhas ansiedades. Ele � uma vers�o de mim, apesar de as diferen�as serem enormes. Penso nele como um garoto que est� testando sua rela��o com sua arte e refletindo sobre a mortalidade de seus pais."

    GUINADA

    Foto Raquel Cunha/Folhapress

    Na realidade, Lerner passou muito tempo s�, escrevendo seu segundo livro de poemas –que sai no Brasil nesta semana, em e-book. "�ngulo de Guinada" [trad. Ellen Maria, e-gal�xia, R$ 14,90], cujo t�tulo alude ao �ngulo de ascens�o de uma nave espacial quando vista de cima para baixo, em ingl�s "angle of yaw", externa a cr�tica pol�tica que jazia submersa em "Lichtenberg Figures".

    Quando o livro saiu –e lhe rendeu aquela indica��o ao National Book Award–, Lerner j� estava morando em Berkeley, Calif�rnia, com Ari, que fazia um doutorado em educa��o –ao fim do qual eles se mudaram para Pittsburgh para come�ar em empregos de docentes. Compraram uma casa e, pela primeira vez, Lerner come�ou a ficar inquieto, buscando um g�nero diferente. Ele estava escrevendo um ensaio sobre John Ashbery e a po�tica que n�o parava de crescer.

    "Eu n�o tinha consci�ncia de estar escrevendo um romance –durante muito tempo resisti � ideia de estar escrevendo um romance. Acho �til dizer que eu n�o estou fazendo seja o que for que estiver fazendo, para evitar certa press�o."

    Lerner estava menos interessado em recordar aquele per�odo do que em caracterizar a natureza obl�qua da experi�ncia contra o pano de fundo de for�as maiores. Ashbery, a quem ele alude como o capacitador e uma amea�a, � como o padrinho do livro. "Ele tem aquela frase sobre a qual pensei muito em meu romance, a experi�ncia da experi�ncia. Seus poemas n�o falam de experi�ncias particulares. S�o a experi�ncia da experi�ncia, que � algo como a defini��o da abstra��o." Sob muito aspectos, "Esta��o Atocha" aborda o per�odo que Lerner passou na Espanha com igual for�a refrat�ria.

    O romance tamb�m procura, � sua maneira, recuperar o radicalismo do g�nero. H� fotos, poemas e uma sequ�ncia de mensagens de bate-papo trocadas entre Adam e seu amigo Cyrus. Um dos pontos fortes do livro � absorver esses impulsos radicais sem comprometer a forma e velocidade narrativa.

    "Esta��o Atocha" foi um sucesso imediato de cr�tica. Figurou em v�rias listas de fim de ano, vendeu cerca de 30 mil exemplares, recebeu o Believer Book Award e est� rapidamente virando um "aperto de m�os secreto" trocado entre escritores jovens que enfrentam frustra��o e culpa pol�tica por sua aparente incapacidade de dizer algo de novo sobre essa frustra��o.

    Jonathan Franzen foi um dos primeiros propagandistas do livro e ainda o admira por sua tentativa de situar a ansiedade em um contexto mais amplo. "Em termos pol�ticos, o que me impressionou � a abordagem tangencial ao ataque � esta��o, que lan�a sua sombra sobre o livro inteiro e, para a infelicidade do narrador –cuja ansiedade intensa leva a um extremo autocentrismo e � necessidade quase incessante de automedica��o–, gera nele uma consci�ncia de sua insularidade americana em meio � turbul�ncia pol�tica global", escreveu Franzen em e-mail.

    "Nesse sentido, o livro � uma esp�cie de vers�o intelectualizada de 'Girls': ambos fazem a cr�tica do car�ter autocentrado dos americanos privilegiados, precisamente porque se comprazem nele."

    RESIST�NCIA

    Se houve resist�ncia ao romance, ela veio da percep��o de que esse "egocentrismo" seria t�pico do livro, e n�o modo de veicular ideias. Lorin Stein, editor da "Paris Review", que publicou poemas de Lerner e trechos de seu segundo romance, "10:04", espanta-se com a descri��o equivocada feita do trabalho do escritor.

    "Acho surpreendente que os cr�ticos pouco o descrevam como romancista pol�tico. Seus livros n�o s�o s� profundamente engajados, eles levantam a quest�o de qu�o s�rio ou divertido poderia ser um romance americano realista que n�o tomasse nota das mudan�as na paisagem pol�tica e econ�mica (ou na paisagem em si)."

    "N�o parece certo escrever um romance que se passe no mundo contempor�neo e que n�o esteja imbu�do de toda essa doideira", diz Lerner. Depois de "Esta��o Atocha", ele e sua mulher mudaram para Nova York para come�ar em novos cargos docentes. Caminhando por Park Slope, Lerner percebeu que tinha toda a inspira��o para doideira bem � sua frente.

    "A cidade se recria � imagem e semelhan�a das finan�as e aonde quer que voc� v� sente que j� chegou l�. Existe mudan�a clim�tica, mas ela est� em toda parte e tamb�m em lugar algum, se voc� ocupa uma posi��o privilegiada –falta �gua na Calif�rnia, mas ainda vai dar para comprar abacates na cooperativa por algum tempo. Qual � o centro de viv�ncia de todas essas mudan�as chocantes?"

    Essas e outras quest�es est�o em "10:04" [Granta Books, R$ 27,87 em e-book na Amazon], o romance mais recente de Lerner, que, na superf�cie, guarda semelhan�as com "Esta��o Atocha". O personagem principal � um escritor sem nome que, depois do sucesso inesperado de seu primeiro romance, acaba de assinar um contrato polpudo para mais um.

    A cena de abertura acontece num alto edif�cio com vista de Nova York; o narrador festeja com uma refei��o cara � base de polvos que foram massageados at� morrer para que ele pudesse com�-los.

    Em muito pouco tempo, por�m, o livro se desvia da rota de "Esta��o Atocha". Onde aquele criticava a poesia e a arte por suas impossibilidades, e seu narrador por sua incapacidade de formar rela��es, este medita sobre o que Lerner descreve como espa�os de possibilidade em meio a um sistema fora de controle. E, enquanto "Esta��o Atocha" se dirigia para o egocentrismo de Adam, "10:04" ruma para uma cena nova, em que uma s�rie de personagens conta sua hist�ria dentro da hist�ria.

    Lerner fala de Virginia Woolf, do modernismo e do problema do di�logo, antes de oferecer uma explica��o mais simples: "Para mim, o que � problem�tico � a ideia de ter acesso perfeito a outras mentes".

    Diferentemente de "Esta��o Atocha", quase toda a hist�ria de "10:04" acontece em espa�os p�blicos. Lerner parece acreditar que � nesses espa�os que a p�lis americana pode ser reconstru�da e pode combater as for�as contra as quais ele vem escrevendo. O romance casa bem com "Mean Free Path" [Cooper Canyon Press, R$ 42,71, em e-book na Amazon], cujos poemas buscam criar um espa�o de amor em um ambiente de viol�ncia e destrui��o.

    Wiegers, seu editor, observa que os dois livros "s�o de Ari", a mulher de Lerner, "como se ele precisasse tratar de no��es sobre imp�rio e poder para fazer uso pleno da linguagem do casamento e da liberdade do amor". "O pol�tico abre caminho para o pessoal, assim como o pessoal o exorta a engajar-se com o pol�tico."

    Lerner diz que a ideia para outro romance est� crescendo dentro dele. "J� escrevi algumas coisas e acho que n�o s�o ruins, tanto quanto acho que n�o fazem parte de nada. Acordei e pensei 'tenho uma ideia para um romance', mas ent�o notei que minha ideia era simplesmente que eu gostaria de escrever um romance."

    JOHN FREEMAN, 41, escritor e editor, � autor de "Como Ler um Escritor" (Objetiva).

    CLARA ALLAIN � tradutora.

    MARCELO COMPARINI, 35, � pintor.

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