• Ilustr�ssima

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    Obras, discurso e revis�o do neoconcretismo

    S�RGIO MARTINS

    11/10/2015 02h05

    RESUMO Em resposta a texto de Fl�vio Moura na "Ilustr�ssima", o autor argumenta em torno das dificuldades de se investir numa "hist�ria da arte corretiva" que pudesse sanar as diferen�as entre a autointerpreta��o do grupo neoconcreto e o aproveitamento das obras por curadores no circuito internacional de exposi��es.

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    Em artigo publicado neste caderno ("Para rever o construtivismo - Um cat�logo de 1977 e a d�vida neoconcreta", 13/9), o cr�tico, jornalista e editor Fl�vio Moura aproveitou o ensejo do relan�amento do cat�logo "O Projeto Construtivo Brasileiro na Arte" para reavaliar, segundo suas palavras, "o discurso hegem�nico sobre o grupo neoconcreto".

    Uma vez que compartilhamos uma mesa no simp�sio de relan�amento do cat�logo, esta me parece uma boa oportunidade tamb�m para estender a discuss�o para as p�ginas deste jornal, marcando brevemente meus pontos de concord�ncia com Moura e, mais longamente, minhas discord�ncias.

    Em primeiro lugar, � preciso reiterar tr�s pontos importantes de seu artigo: sim, o neoconcretismo tornou-se uma esp�cie de mito de origem da arte contempor�nea brasileira; sim, a consolida��o desse mito passa fortemente pela recep��o tardia de alguns dos artistas do movimento –sobretudo H�lio Oiticica e Lygia Clark– em retrospectivas internacionais realizadas nos anos 1990; e, sim, boa parte da hist�ria da arte dedicada a esses artistas em particular e ao movimento como um todo segue na esteira das interpreta��es feitas por alguns de seus principais integrantes, sobretudo as de Ferreira Gullar e, em medida um pouco menor, do pr�prio Oiticica.

    � temer�rio abordar o neoconcretismo hoje sem clareza acerca desses tr�s pontos.

    Dito isso, � preciso tamb�m separar o joio do trigo. Uma coisa � a autointerpreta��o feita por neoconcretos e ex-neoconcretos; outra bem diferente � o aproveitamento de termos espec�ficos dessa autointerpreta��o em prol de sua consagra��o tardia.

    Sobre esse �ltimo, o caso mais not�rio � a retomada das ideias de participa��o de Lygia Clark e H�lio Oiticica em paralelo � emerg�ncia de tend�ncia curatoriais com �nfase interativa –a mais famosa � a est�tica relacional, de Nicolas Bourriaud–, mas que pouco ou nada guardam do teor de risco e antagonismo que fundamentava a pr�tica daqueles artistas nos idos das d�cadas de 1960 e 1970.

    Isso me traz ao cerne do problema: se o discurso de alguns desses artistas e cr�ticos teve como consequ�ncia indesejada e indesej�vel –inclusive de sua pr�pria perspectiva– uma consagra��o com ares de "oficialidade", cabe ent�o historicizar sua autointerpreta��o de modo a distingui-la de sua posterior apropria��o; n�o basta tomar aquela como a semente que necessariamente desabrocharia nesta �rvore de pactos cr�ticos, curatoriais, jornal�sticos e institucionais.

    Um lado da solu��o proposta por Fl�vio Moura –a cr�tica das condi��es de recep��o nacional e internacional de certos marcos da arte brasileira– me parece irretoc�vel e em curso.

    O outro, nem tanto: falo da ideia de uma hist�ria corretiva, no sentido do desafio que o autor identifica: "Apontar quest�es capazes de situar o grupo neoconcreto no contexto mais amplo do construtivismo no pa�s".

    PAR�NTESES

    N�o h� d�vida de que o ganho de clareza acerca desse contexto � valioso, mas n�o me parece que isso seja resposta satisfat�ria frente ao problema posto. Em nome de que, ali�s, se poderia fazer tal hist�ria da arte corretiva? Da possibilidade de avaliar o neoconcretismo capaz de colocar entre par�nteses a "vers�o sobre o seu legado" que "o grupo neoconcreto fez cristalizar"? Seria essa a sa�da oferecida pelo contextualismo?

    Mas como, se esse pr�prio contexto � pass�vel de algumas das principais cr�ticas de Moura? Ou devemos ignorar, para ficar num s� exemplo, que a poesia concreta paulista tinha como vertente fundamental de atua��o a produ��o de discurso te�rico e cr�tico sobre si pr�pria, vertente que produziu um campo de seguidores certamente mais coeso e organizado que o neoconcretismo?

    N�o pretendo fazer com isso um contra-argumento bairrista, mas uma constata��o de cunho geral: se, como sustenta o artista e historiador da arte Carlos Z�lio, "a experi�ncia construtiva brasileira, pela primeira vez na hist�ria da nossa arte, elaborou uma leitura sistem�tica da hist�ria das formas", n�o causa espanto que os diferentes grupos participantes dessa experi�ncia tenham feito acompanhar seu trabalho de uma vigorosa produ��o textual acerca de seu pr�prio papel na hist�ria da arte.

    No caso de Ferreira Gullar, tal esfor�o ganhou contornos francamente teleol�gicos; no caso dos poetas concretos paulistas, ganhou um rigor program�tico que inclu�a uma audaciosa reconstru��o do c�none liter�rio a partir uma constela��o de autores selecionados –o paideuma, termo emprestado de Ezra Pound– que fundamentava sua interven��o cultural e contra a qual eles pretendiam se fazer avaliar.

    N�o se pode perder de vista o horizonte de efic�cia dessas manobras; de resto, legado e recep��o podem at� ser objetos que se confundem com alguma frequ�ncia, mas n�o s�o a mesma coisa.

    Ora, se � central para as vanguardas construtivas brasileiras a sua autoconsci�ncia como parte de uma "hist�ria das formas" e se � atrav�s do discurso que esta se manifesta, ent�o n�o se pode isolar este como uma variante meramente sociol�gica e exterior �s "especificidades po�ticas e formais" da obra de artistas e poetas.

    Dizer isso n�o � justificar a subscri��o � autointerpreta��o desses grupos –penso, ao contr�rio, que obra e discurso devam ser espelhados n�o em busca de simetria, mas precisamente de pontos cegos a partir dos quais avenidas interpretativas diferentes possam se abrir.

    Por exemplo: se a Teoria do N�o-Objeto fez cristalizar uma leitura demasiado enviesada da escultura de Amilcar de Castro, como creio ter acontecido, isso n�o significa que o historiador da arte deva deixar de lado essa leitura. Faz�-lo � meramente contribuir com um recalque original; melhor � ati�ar o pr�prio recalque em busca de pistas sobre os impasses hist�ricos que o originaram e de um quadro interpretativo renovado para a pr�pria obra.

    S�RGIO MARTINS, 38, � cr�tico de arte, professor do departamento de hist�ria da PUC-Rio e autor de "Constructing an Avant-Garde: Art in Brazil, 1949-1979" (MIT Press).

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