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    As escritoras mulheres tamb�m n�o est�o imunes ao �lcool

    OLIVIA LAING
    DO "GUARDIAN"

    20/06/2014 13h00

    "O alcoolismo � escandaloso numa mulher", escreveu Marguerite Duras

    Se voc� escreve um livro sobre o �lcool e os escritores homens, como eu fiz, a pergunta mais frequente que ouvir� �: "E as mulheres? Existem escritoras alc�olatras? As hist�rias delas s�o as mesmas ou s�o diferentes?" A resposta � primeira pergunta � f�cil. Sim, � claro que existem, entre elas figuras brilhantes e inquietas como Jean Rhys, Jean Stafford, Marguerite Duras, Patricia Highsmith, Elizabeth Bishop, Jane Bowles, Anne Sexton, Carson McCullers, Dorothy Parker e Shirley Jackson.

    O alcoolismo � mais prevalente entre os homens que entre as mulheres (em 2013 o NHS, o servi�o nacional de sa�de brit�nico, calculou que 9% dos homens e 4% das mulheres eram dependentes do �lcool). Mesmo assim, n�o faltam mulheres que bebem muito; n�o faltam tardes em que elas caem prostradas, nem bebedeiras que se prolongam por dias. As escritoras mulheres n�o t�m sido imunes � atra��o do �lcool, nem ao envolvimento nos problemas de v�rios tipos que perseguiram seus colegas homens –as brigas e pris�es, as escapadas humilhantes, o lento envenenar das amizades e rela��es familiares. Jean Rhys passou algum tempo detida na pris�o de Holloway por agress�o f�sica; Elizabeth Bishop em mais de uma ocasi�o bebeu �gua de col�nia, depois de esgotar as possibilidades do bar dom�stico. Mas as raz�es pelas quais elas bebem s�o diferentes? E o que dizer das rea��es da sociedade, especialmente no s�culo 20, regado a �lcool –a era de ouro, se podemos cham�-lo assim, do �lcool e do escritor?

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    Em seu livro de 1987 "La Vie Mat�rielle" (A vida material), a escritora e cineasta Marguerite Duras diz muitas coisas chocantes sobre o que significa ser mulher e escritora. Uma de suas afirma��es mais surpreendentes � sobre a diferen�a entre o alcoolismo de homens e mulheres, ou melhor, sobre a diferen�a de percep��es a seu respeito. "Quando uma mulher bebe", ela escreve, "� como se um animal ou uma crian�a estivesse bebendo. O alcoolismo � escandaloso numa mulher, e uma alco�latra mulher � algo raro, um problema s�rio. � uma mancha feita no divino em nossa natureza." Pesarosa, ela acrescenta um adendo pessoal: "Tive consci�ncia do esc�ndalo que eu estava criando � minha volta".

    Duras refletiu que foi alco�latra desde quando tomou seu primeiro drinque. �s vezes conseguia parar por anos a fio, mas em suas fases de bebedeira ela se excedia completamente: come�ava a beber assim que acordava, parava para vomitar os dois primeiros copos e ent�o acabava com at� oito litros de Bordeaux antes de desmaiar. "Eu bebia porque era alco�latra", Duras disse ao "New York Times" em 1991. "Eu era alco�latra de verdade, como a escritora. Eu sou uma escritora de verdade, era uma alco�latra de verdade. Bebia vinho tinto para adormecer. Depois, conhaque durante a noite. A cada hora um copo de vinho, e pela manh�, conhaque depois do caf�, e depois disso eu escrevia. O que � assombroso, quando olho para tr�s, � como consegui escrever."

    O que tamb�m � assombroso � quanto ela conseguiu escrever e como � alta a qualidade da maioria de seus escritos, elevando-se sem dificuldade sobre as condi��es �s vezes �rduas da produ��o. Duras escreveu d�zias de romances, entre eles "Barragem contra o Pac�fico", "Moderato Cantabile" e "O deslumbramento". Seu trabalho � elegante, experimental, apaixonado, evocativo e visualmente not�vel –quase alucinat�rio no apelo que lan�a aos sentidos, em sua for�a r�tmica. Precursora do "nouveau roman", ela dispensou as conven��es de personagens e trama, a mob�lia pesada do romance realista, ao mesmo tempo em que conservou uma austeridade quase cl�ssica –uma clareza de estilo que era fruto de um trabalho obsessivo de revis�o de seus textos.

    Sua inf�ncia foi marcada pelo medo, a viol�ncia e a vergonha –um encadeamento comum na inf�ncia de um viciado. Nasceu como Marguerite Donnadieu (Marguerite Duras foi seu nome liter�rio) em 1914, na ent�o Saigon, filha de pais franceses, ambos professores. Seu pai morreu quando Marguerite tinha 7 anos, deixando a fam�lia na pobreza abjeta. Sua m�e economizou durante anos para adquirir um s�tio, mas foi ludibriada no pre�o, comprando um terreno regularmente inundado pelo mar. A m�e e o irm�o mais velho de Marguerite a espancavam. Ela lembrou que ca�ava aves na selva para cozinhar e comer e nadava em um rio que ficava cheio dos cad�veres de criaturas diversas que tinham morrido rio acima. Na escola, teve um relacionamento sexual –aparentemente incentivado por sua fam�lia por raz�es financeiras– com um chin�s muito mais velho. Mais tarde, na Fran�a, se casou, teve um filho com outro homem, dirigiu filmes, viveu e escreveu com intensidade direcionada. Seu alcoolismo piorou com o passar das d�cadas, parando e recome�ando, ganhando for�a, at� que, aos 68 anos, ela recebeu o diagn�stico de cirrose hep�tica e foi for�ada a abrir m�o completamente do �lcool –uma experi�ncia apavorante– no hospital americano de Paris.

    Poucos escritores conseguem abandonar a bebida, e aqueles que o fazem com frequ�ncia sofrem um decl�nio em sua produ��o –algo que atesta n�o tanto o poder do �lcool como estimulante da criatividade, mas como ele contribui para destruir a fun��o cerebral, obliterar a mem�ria e perturbar a capacidade de ex-alco�licos de formular e expressar pensamentos. Mas Duras escreveu um de seus melhores romances, e com certeza o mais famoso, dois anos depois de ter parado de beber. "O Amante" conta a hist�ria de uma francesa de 15 anos na Indochina que tem um relacionamento er�tico com –isso mesmo– um chin�s muito mais velho. Boa parte do livro foi inspirado na viol�ncia e degrada��o das quais Duras emergiu.

    Folhapress
    A escritora francesa Marguerite Duras
    A escritora francesa Marguerite Duras

    Como deixam claro vers�es publicadas posteriormente, ela era capaz de retornar in�meras vezes a essa cena primordial de inf�ncia, retra�ando-a em uma variedade quase infinita de cores: �s vezes er�tica e rom�ntica, �s vezes brutal e grotesca. Narrar novamente as mesmas hist�rias, retornar repetidamente � subst�ncia que ela sabia que a estava destruindo: esses atos repetitivos, alguns deles geradores e outros profundamente destrutivos, levaram o cr�tico Edmund White a se perguntar se Duras n�o seria dominada por algo que Freud descreveu como a compuls�o da repeti��o. "Conhe�o isso, o desejo de ser morta. Sei que ele existe", Duras disse certa vez a um entrevistador, e � essa intensidade, essa vis�o absoluta e intransigente, que diferencia seu trabalho. Ao mesmo tempo, a afirma��o parece lan�ar nova luz sobre como ela usou o �lcool: como modo de ceder ao seu pr�prio masoquismo, � sua idea��o suicida, ao mesmo tempo em que se anestesiava contra a selvageria que enxergava em a��o em toda parte, preenchendo o mundo.

    A inf�ncia de pesadelo da escritora suscita a quest�o das origens, do que causa a depend�ncia alco�latra e se a causa difere para homens e mulheres. Em cerca de 50% dos casos o alcoolismo pode ser herdado, uma quest�o de predisposi��o gen�tica –o que significa que fatores ambientais como as experi�ncias do in�cio da vida e as press�es sociais exercem um papel consider�vel. Examinando as biografias de escritoras alco�latras, encontramos repetidas vezes as mesmas hist�rias familiares sombrias que est�o presentes na vida de seus colegas homens, de Ernest Hemingway a F. Scott Fitzgerald, de Tennessee Williams a John Cheever.

    Elizabeth Bishop � um bom exemplo. Muitos de seus familiares foram alco�latras, incluindo seu pai, que morreu quando ela era beb�. A vida de Bishop foi marcada adicionalmente pelo tipo de perda e inseguran�a f�sica presente com frequ�ncia na hist�ria familiar de dependentes de �lcool ou drogas. Quando ela tinha 5 anos, sua m�e foi internada em um hospital psiqui�trico. Elas nunca mais se viram. Em vez disso, Bishop foi encaminhada aos cuidados de diferentes tias; foi uma crian�a ansiosa e, quando se tornou estudante no liberal e exclusivamente feminino Smith College, de Massachusetts, descobriu com al�vio a utilidade do �lcool como facilitador social, s� percebendo tarde demais que era tamb�m uma potencial fonte de vergonha, um motivo de isolamento.

    Reprodu��o
    A poeta americana Elizabeth Bishop
    A poeta americana Elizabeth Bishop

    No poema "A Drunkard", Bishop emprega incidentes de sua pr�pria vida para criar um retrato ir�nico de uma alco�lica, ansiosa para explicar sua sede incomum. "Eu tinha come�ado/ a beber & beber –nunca � o suficiente", admite a narradora, um verso que lembra a declara��o franca de John Berryman em "Dream Song: "A fome era parte integral dele/ vinho, cigarros, bebida, car�ncia car�ncia car�ncia".

    O sentimento de vergonha foi um dos fatores principais que levavam Bishop a beber: primeiro, a vergonha internalizada que ela trazia desde a inf�ncia; mais tarde, a vergonha que se seguia �s suas bebedeiras pavorosas. E havia tamb�m a quest�o da identidade sexual. L�sbica numa �poca em que a homossexualidade n�o era sancionada ou aceita, Bishop encontrou sua liberdade maior no Brasil, onde viveu com sua companheira, a arquiteta Lota de Macedo Soares. Passou seus anos mais pac�ficos e produtivos no Brasil, embora tenham sido entremeados com bebedeiras, seguidas pelas inevit�veis brigas e confus�es e pela assustadora deteriora��o de sua sa�de f�sica.

    A vergonha � um fator tamb�m na vida de Patricia Highsmith, nascida Mary Patricia Plangman em 1921; seu sobrenome era uma lembran�a indesejada do homem de quem sua m�e se divorciara nove dias antes de ela nascer. A pr�pria Patricia n�o foi exatamente desejada. Sua m�e tinha tomado aguarr�s quando ela tinha quatro meses, na esperan�a de abortar. "� estranho que voc� adore o cheiro de aguarr�s, Pat", dizia mais tarde. Essa piada soturna lembra Cheever, cujos pais tamb�m costumavam fazer piadas sobre o fato de terem tentado abort�-lo. Como Cheever, Highsmith tinha sentimentos complexos em rela��o � sua m�e, e, como Cheever, tinha um sentimento penetrante de ser fraudulenta, vazia, de algum modo fajuta. Diferentemente de Cheever, por�m, ela foi corajosa ao seguir o rumo de seus desejos sexuais, embora tivesse um senso �s vezes prazeroso, �s vezes perturbador de desviar-se da norma, de andar na contram�o da sociedade.

    Ela foi uma crian�a ansiosa, chorosa, cheia de sentimentos de culpa –l�gubre, em suas pr�prias palavras. Aos 8 anos de idade, fantasiava assassinar seu padrasto, Stanley, e aos 12 se perturbava com as alterca��es violentas entre ele e sua m�e. Naquele outono, a m�e de Patricia a levou ao Texas, dizendo que ia se divorciar e viver no sul dos EUA com Pat e a av� desta. Mas, depois de algumas semanas dessa utopia exclusivamente feminina, Highsmith, m�e, voltou a Nova York, abandonando a filha sem explica��es. Largada por um ano inteiro e sofrido, Patricia nunca superou o sentimento de ter sido tra�da e rejeitada.

    Ela come�ou a beber quando era estudante no Barnard College, em Nova York. Numa anota��o feita em seu di�rio na d�cada de 1940, escreveu sobre sua ideia de que o �lcool seria essencial para o artista, porque a fazia "enxergar outra vez a verdade, a simplicidade e as emo��es primitivas". Dez anos depois, descrevia dias em que ia para cama �s quatro da tarde com uma garrafa de gim, antes de engolir sete martinis e dois copos de vinho. Nos anos 1960, Highsmith j� precisava do �lcool para continuar a funcionar e para conseguir sair da cama pela manh�. Ela mentia sobre seu consumo de �lcool e tamb�m sobre toda esp�cie de detalhes maiores e menores –sobre ser �tima cozinheira e jardineira, embora seu jardim na �poca se resumisse a grama ressecada e ela frequentemente vivesse de cereal matinal e ovos fritos.

    Muito do que ela sentia e de como se comportava entrou para suas obras, sendo transmitido para seu personagem mais famoso. Tom Ripley nem sempre bebe muito, mas compartilha com o alco�latra completo a paranoia, o sentimento de culpa e o �dio por si mesmo, a necessidade de apagar seu pr�prio eu dolorosamente vazio e t�nue ou escapar dele. Ripley vive se dividindo e mergulhando em outras identidades mais c�modas, embora esse pr�prio fato seja por si s� vergonhoso e em muitos casos sirva como gatilho dos assassinatos casuais e medonhos que ele comete. Na realidade, toda a carreira de Ripley como assassino imita o alcoolismo, na medida em que � movida por uma necessidade de repetir uma atividade constantemente para apagar o problema que a atividade provocou. E h� a atmosfera dos livros, o clima pesado de ansiedade e consci�ncia de que as coisas n�o v�o acabar bem, algo que � reconhec�vel instantaneamente de um sem-n�mero de obras de alco�latras. Considere este trecho de "O Talentoso Ripley", em que Tom est� em Roma, tentando convencer-se de que n�o ser� pego pelo assassinato de Dickie:

    "Tom n�o sabia o que o atacaria, se fosse atacado. N�o imaginava a pol�cia, necessariamente. Tinha medo de coisas sem nome, informes, que assombravam sua mente como as F�rias. Conseguia caminhar confortavelmente por San Spiridione apenas depois de alguns coquet�is terem nocauteado seu medo. Ent�o ele caminhava com andar confiante, assobiando."

    Bastaria trocar o nome para que o trecho pudesse ter sa�do diretamente de "The Lost Weekend", de Charles Jackson [que inspirou o filme "Farrapo Humano", ou de quase qualquer p�gina dos di�rios de Tennessee Williams, obcecados pelo �lcool.

    N�o h� d�vida de que a infelicidade pessoal � parte da raz�o por que homens e mulheres criam o h�bito de beber, mas essas hist�rias �ntimas deixam de fora algo maior, menos f�cil de ser contestado ou enfrentado por qualquer indiv�duo. Como era a vida da mulher no Ocidente na maior parte do s�culo 20 � resumido com aptid�o e raiva por Elizabeth Young em sua introdu��o a "Plain Pleasures", colet�nea de contos de Jane Bowles. "At� os anos 1970 as mulheres eram descontadas e desprezadas", ela escreve. "Eram, em massa, classificadas como crian�as em termos de capacidade, mas, diferentemente das crian�as, eram o alvo de virtualmente todas as piadas no repert�rio dos humoristas. Eram vistas como superficiais, fofoqueiras, vaidosas, pouco inteligentes e in�teis. As mulheres mais velhas eram barangas, megeras, sogras, solteironas. As mulheres eram vis�veis no mundo real, o mundo dos homens, apenas enquanto eram sexualmente desej�veis. Depois disso, desapareciam por completo, enterradas vivas pela combina��o repugnante de desprezo, avers�o e sentimentalismo com que eram vistas."

    A t�tulo de ilustra��o, ela conta uma hist�ria sobre a escritora que Truman Capote, William Burroughs e Gore Vidal consideravam uma das maiores de sua �poca –uma gigante do modernismo, n�o obstante sua produ��o min�scula. Na meia-idade, depois de sofrer um derrame induzido pelo �lcool, Jane Bowles foi encaminhada a um neurologista brit�nico que lhe disse em tom paternalista: "A senhora n�o est� dando conta, minha cara sra. Bowles. Volte para seu fog�o e suas panelas e procure dar conta de sua vida".

    Esse pouco-caso intenso com as mulheres, essa incapacidade de compreender os talentos ou a vida interior delas, era t�pico. Cen�rios semelhantes podem ser encontrados na vida de quase qualquer escritora not�vel do s�culo 20. Tome-se o caso de Jean Stafford, que hoje tem mais chances de ser lembrada por ter sido casada com Robert Lowell que por seus contos, que lhe valeram um Pr�mio Pulitzer, ou por seu romance extraordin�rio e selvagem "The Mountain Lion". Esta obra foi publicada em 1947, quando ela se reabilitava do �lcool no hospital psiqui�trico Payne Whitney, no interior de Nova York. Ali, seu psiquiatra estava menos interessado nas cr�ticas de seu trabalho que em insistir que ela melhorasse sua apar�ncia pessoal, trocando seus habituais su�ter e cal�as folgadas por blusa, saia e colar de p�rolas no jantar, "como uma estudante do Smith College", como Stafford comentou ironicamente.

    N�o consigo pensar em nenhuma escritora que exprima essas press�es e hipocrisias melhor que a romancista Jean Rhys, que n�o pode ser descrita como feminista mas, mesmo assim, escreveu t�o amargamente e em tom t�o sombrio sobre a situa��o das mulheres que seu trabalho � perturbador, at� hoje. Rhys nasceu na ilha de Dominica em 1890 com o nome de Gwen Williams, filha de pai brit�nico e m�e crioula. Como F. Scott Fitzgerald, foi uma filha de substitui��o, concebida nove meses ap�s a morte de sua irm�. Como Fitzgerald, tinha uma sensa��o constante de estar do lado de fora, de n�o ser inteiramente real ou legitimamente digna de amor. Chegou a Londres aos 16 anos, uma menina bonita e completamente ignorante. Suas expectativas de uma vida nova e glamourosa foram frustradas pelo ar cinzento, o frio inclemente e as pessoas competentes, casualmente cru�is. Seu pai morreu enquanto ela cursava a escola de teatro, mas em vez de voltar para casa ela fugiu da escola, tornando-se bailarina do coro de espet�culos musicais e mudando seu nome para Ella Gray.

    Ella Gray, Ella Lenglet, Jean Rhys, sra. Hamer: fosse qual fosse o nome que estivesse usando, Rhys estava sempre a ponto de se afogar, sempre desesperada para encontrar um homem que a salvasse e a levasse para o tipo de mundo de seguran�a e luxo pelo qual ansiava. N�o acostumada a receber amor, ela escolheu mal, ou talvez simplesmente tenha tido m� sorte, apostando em homens que a deixaram ou que de algum modo foram incapazes de lhe dar a esp�cie de seguran�a financeira e emocional pela qual ansiava. Ela teve um aborto, se casou, teve uma filha, teve um beb� que morreu e uma filha, Maryvonne (que passou a maior parte da inf�ncia sendo cuidada n�o apenas por outra pessoa, mas em outro pa�s), casou-se uma segunda e uma terceira vez, e, ao longo de todas essas aventuras malfadadas, sempre esteve � beira da mis�ria.

    O �lcool n�o demorou a tornar-se uma maneira de ela enfrentar os problemas e a confus�o, de apagar os elementos mais sombrios, preenchendo temporariamente um insuport�vel buraco negro de car�ncia. Como diz sua bi�grafa Carole Angier: "Seu passado a atormentava tanto que ela teve que escrever sobre ele, e ent�o o escrever a atormentou: ela precisava beber para escrever e precisava beber para viver".

    Mas o que emergiu da confus�o toda foi uma s�rie de romances milagrosamente l�cidos: estranhas e escorregadias maravilhas do modernismo, sobre mulheres alienadas, desenraizadas, � deriva no "demi-monde" de Londres e Paris. Esses livros –"Quartet", "After Leaving Mr. Mackenzie", "Voyage in the Dark" e "Bom Dia, Meia Noite"– mostram o mundo como se apresenta desde a perspectiva dos despossu�dos. Eles tratam de depress�o e solid�o, sim, mas tamb�m de dinheiro: dinheiro, classe social, esnobismo, e o que significa n�o ter dinheiro para comer, ou quando seus sapatos est�o ficando gastos e voc� n�o consegue mais manter as pequenas apar�ncias burguesas; as maneiras de se virar, de ser aceita na sociedade. Rhys � brutal no retrato que faz de uma sociedade em que n�o existe rede de seguran�a para uma mulher sozinha e que est� envelhecendo, vendo esgotar-se a �nica moeda confi�vel que possui.

    No magnificamente inst�vel "Bom Dia, Meia Noite", ela mostra precisamente por que uma mulher como essa pode voltar-se ao �lcool, diante das op��es limitadas de trabalho ou amor. Ao mesmo tempo, e como seu quase contempor�neo Fitzgerald, Rhys emprega a embriaguez como t�cnica do modernismo. O livro � escrito numa primeira pessoa maravilhosamente flex�vel, deslizando e escorregando entre os mutantes estados de �nimo de Sasha. "J� estou farta destas ruas que transpiram um lodo frio e amarelo, de pessoas hostis, de chorar at� pegar no sono todas as noites. Estou farta de pensar, chega de recorda��es. Quero u�sque, rum, gim, xerez, vermute, vinho com garrafas rotuladas 'dum vivimus, vivamus ' Beber, beber, beber... Assim que fico s�bria, recome�o. �s vezes tenho que me for�ar para engolir. N�o sei por que n�o fico com 'delirium tremens' ou algo assim."

    Rhys desapareceu das vistas p�blicas novamente durante a guerra, reemergindo em 1956, depois que a BBC transmitiu um an�ncio buscando informa��es sobre a escritora, que se acreditava que tivesse morrido. Passou a d�cada de 1960 isolada num vilarejo em Devon, vivendo com seu terceiro marido, o nevr�lgico Max Hamer, que tinha cumprido pena de pris�o por fraude e se tornara inv�lido ap�s um derrame. Nesse per�odo tenebroso, Rhys foi atormentada por extremos de pobreza e tamb�m por seus vizinhos, que a julgavam bruxa. Chegou a ser internada brevemente num hospital psiqui�trico, depois de atacar um deles com uma tesoura. As bebedeiras continuaram, piores que antes. Mesmo assim, ela estava trabalhando sobre um novo romance, "Vasto Mar de Sarga�os", uma "prequela" (que relata a hist�ria anterior a) de "Jane Eyre", inspirada em sua inf�ncia no Caribe, seu sentimento de ser uma "outsider", isolada pelos frios e impenetr�veis ingleses.

    Diana Athill escreve em "Stet": "Ningu�m que tivesse lido os quatro primeiros romances de Jean Rhys poderia imaginar que ela fosse muito boa em viver a vida, mas ningu�m que a conhecesse pessoalmente poderia saber at� que ponto ela era ruim nisso". Athill tornou-se editora de Rhys nessa �poca, virando sua amiga, como tamb�m fizeram Sonia Orwell e Francis Wyndham, protetoras e guardi�s de seu renascimento, o sucesso que chegou tarde demais e ap�s sofrimento demais para fazer uma diferen�a real para o devastado mundo interior de Rhys.

    Em seus escritos sobre Rhys, Athill debate internamente aquela que pode ser a quest�o central do escritor alco�lico, ou seja, como � que algu�m que � t�o incompetente quando se trata de viver, t�o incapaz de encarar os problemas e assumir a responsabilidade por seus pr�prios erros, pode ser t�o bom em escrever sobre isso, em focar a aten��o diretamente sobre algo que, de outro modo, seriam pontos de total cegueira. "Seu credo –t�o simples de declarar, t�o dif�cil de seguir– era que ela devia dizer a verdade; devia colocar as coisas no papel como realmente eram. Esse empreendimento ferrenho lhe possibilitou chegar pela escrita � compreens�o de sua pr�pria natureza ferida."

    Esse car�ter f�rreo est� presente em toda parte na obra de Rhys, convertendo a autopiedade em cr�tica impiedosa. Ela mostra como funciona o poder e como as pessoas podem ser cru�is com aquelas que est�o abaixo delas, revelando, tamb�m, como a pobreza e as regras sociais amarram as mulheres, limitando suas op��es, at� que uma cela no pres�dio de Holloway e um quarto de hotel em Paris tornam-se praticamente indistingu�veis. N�o � de maneira alguma um feminismo de tipo triunfal, uma afirma��o de independ�ncia e igualdade, mas um relato selvagem e obsessivo de manipula��o, censura e injusti�a que podem levar mesmo a mulher mais l�cida a beber, beber e beber.

    OLIVIA LAING � autora de "The Trip to Echo Spring: On Writers and Drinking" (Picador).

    Tradu��o de CLARA ALLAIN

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