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    Joaquim Nabuco: rep�rter

    ANGELA ALONSO
    ilustra��o ELISA VON RANDOW

    16/02/2014 03h15

    RESUMO Nova colet�nea mostra como a atividade de Joaquim Nabuco como rep�rter internacional, com base em Londres, moldou sua escrita. Os artigos publicados em meios como o "Jornal do Com�rcio", onde come�ou essa carreira, ap�s derrota nas urnas, permitem acompanhar o trajeto ideol�gico do autor de "O Abolicionismo".

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    NO MOMENTO em que voc� l� este artigo, ele j� envelheceu. No hiato entre eu o ter escrito e sua publica��o, voc� foi bombardeado por milhares de informa��es que pululam na internet. Mas n�o � de agora que o jornalismo impresso perde para novas tecnologias. Joaquim Nabuco (1849-1910), conhecido como figura-chave do movimento pela aboli��o da escravid�o no Brasil, quando se viu jornalista, em 1882, penou da mesma agrura.

    Correspondente em Londres, respons�vel tamb�m por Viena e Berlim, Nabuco reclamava de que o tel�grafo, inaugurado no Brasil na d�cada de 1870, sabotava o rep�rter com not�cias frescas, enquanto seus artigos mofavam cerca de tr�s semanas no navio at� atingirem o leitor.

    De modo que not�cia velha n�o � coisa nova. Nos seus 300 artigos como correspondente estrangeiro, coligidos por Leslie Bethell, Jos� Murilo de Carvalho e C�cero Sandroni na rec�m-lan�ada edi��o "Joaquim Nabuco Correspondente Internacional 1882-1891" [ed. Global/Academia Brasileira de Letras; vol. 1, R$ 79, 672 p�gs.; vol. 2, R$ 65, 512 p�gs.], Nabuco se houve com a perenidade da informa��o optando por ser mais anal�tico que noticioso. Dava mais a visada geral que o fato a fato.

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    O jornalismo n�o estava nos seus planos. Filho de pol�tico, estreou no Parlamento em 1879 e se destacou chamando para si a causa da aboli��o. Correu a Europa em busca de apoio e fundou a Sociedade Brasileira Contra a Escravid�o. Essa estrela pol�tica ascendente, contudo, desafiou a lideran�a de seu Partido Liberal, ao se decidir por abolicionista. E assim, em 1882, n�o se reelegeu deputado geral pela Prov�ncia de Pernambuco. Tornou-se, ent�o, correspondente em Londres do "Jornal do Com�rcio", enquanto esperava as pr�ximas elei��es.

    A atua��o como jornalista nas baixas pol�ticas se configuraria como padr�o. O of�cio provis�rio virou ocupa��o duradoura.

    EDITOR

    Nos tempos em que s�o comuns os ataques � norma culta em textos que v�o direto do computador do autor para o do leitor, a figura do editor perdeu a aura que teve no passado. Editores pautadores, corretores, eruditos. Joaquim Nabuco teve um desses: Francisco Picot, que viveu no Rio, mas, nos anos 1880, editava da capital francesa o maior e melhor dos
    peri�dicos brasileiros do s�culo 19, o "Jornal do Com�rcio". E lia com lupa em Paris o que Nabuco escrevia � pena em Londres.

    Elisa von Randow

    Quem ligou um homem ao outro foi o bar�o de Penedo, que era quase um pai substituto de Nabuco e chefe da diplomacia brasileira em Londres. A morte do correspondente do jornal, um experiente analista econ�mico, abriu o emprego, com o qual Nabuco garantiria sua sobreviv�ncia f�sica e pol�tica nos pr�ximos dois anos, independente do Estado escravista que vinha combatendo.

    Assim, Picot n�o escolheu Nabuco, Nabuco n�o escolheu Picot. O editor esclareceu logo que, em sua escala de valores, o sobrenome Nabuco, seu livro de poemas em franc�s ("L'Amour et Dieu") e seu brilho pol�tico valiam pouco. Diferentemente da maioria das pessoas que Nabuco conheceu, Picot n�o se rendeu ao seu charme. Ao contr�rio. Implicava, contrariado por ter o mo�o inexperiente no lugar de seu velho amigo Clark.

    Picot exigia muito, sempre. Al�m de pautar os artigos, depois os comentava, catando deslizes, aus�ncias, excessos. A rela��o com Nabuco foi tensa por conta desse olho de �guia, atento � menor das faltas. Reclamava da subst�ncia e de tudo que a envolvia, at� do fecho dos envelopes em que iam os artigos, como nesta carta de 2 de abril de 1882 (que se encontra no acervo da Funda��o Joaquim Nabuco): "Teria sido bom dizer na carta de Londres, sem coment�rio, que o 'Financier' publicou o artigo sobre garantias de juros [...]. Tamb�m teria sido bom dar o resultado do empr�stimo do Baring para Buenos Aires.[...] Por �ltimo, vou recomendar-lhe que molhe bem molhada a goma que fecha a capa das suas cartas".

    Nabuco nunca antes trabalhara e cedo se cansou. Mas, cheio de d�vidas, sem alternativas, permaneceu sob ordens de Picot. O editor o disciplinou, incutiu-lhe a �tica do trabalho. Cobrava concentra��o em assuntos �ridos para quem antes aspirava a poeta, exigia precis�o de um habituado ao diletantismo e sobriedade de um pendente ao derramamento. Pedia acur�cia no trato de temas que Nabuco antes n�o dominava -a economia- e objetividade naqueles sobre os quais antes divagava -a geopol�tica. Quem l� o drama "L'Option", sobre a guerra da Als�cia-Lorena, que Joaquim Nabuco rascunhou nos anos 1870, e vai depois aos artigos sobre a expans�o do imperialismo ingl�s, reunidos nesse volume, enxerga uma metamorfose.
    Francisco Picot foi para Joaquim Nabuco o que um bom editor � para um iniciante: uma escola. Obrigou-o a dois aprendizados.

    O substantivo diz respeito � profundidade anal�tica e teve consequ�ncias para tudo aquilo que Nabuco escreveria depois, em particular para seu livro londrino, "O Abolicionismo", que saiu �s carreiras, em 1883, para ajudar a campanha abolicionista no Brasil e impedir que Nabuco desaparecesse dela, estando do outro lado do Atl�ntico, enquanto seus companheiros a radicalizavam. O livro � de uma arg�cia que seu autor n�o evidenciara antes.

    Outro ganho dos tempos sob Picot foi o apuro do estilo. Basta fazer o "antes e depois". Os discursos parlamentares e os artigos para o jornal "O Globo" (que n�o est�o na colet�nea), nos anos 1870, s�o de senten�as compridas, muitos apostos, afrancesados. J� "O Abolicionismo" [Ed. UnB, R$ 32, 252 p�gs.] � livro de contund�ncias, de frases que s�o como tiros.

    TEMAS

    Os artigos reunidos na colet�nea n�o s�o todos de mesmo tipo. O primeiro volume traz os para o "Jornal do Com�rcio" e os produzidos quase simultaneamente para o "La R�zon", de Montevid�u. S�o artigos de jornalista.

    A correspond�ncia de Londres para o "Jornal do Com�rcio" aborda a geopol�tica inglesa, sua pol�tica dom�stica e a candente quest�o irlandesa. A economia � pauta obrigat�ria, sobretudo no que tocava os neg�cios brasileiros. J� os artigos de Viena e Berlim visavam "resumir os acontecimentos" da pol�tica local e eram escritos a partir de Londres.

    Em conjunto, as tr�s correspond�ncias tra�am cen�rios geopol�ticos e perfis e estrat�gias dos grandes l�deres pol�ticos do per�odo, William Gladstone, na Inglaterra, e Otto von Bismarck, na Alemanha. O foco se abre para abarcar R�ssia, Pr�ssia, Fran�a, pol�ticas din�stica e eclesi�stica, reformas modernizadoras, como o voto secreto e a amplia��o do sufr�gio -Joaquim Nabuco, ali�s, n�o se mostra entusiasta do voto feminino-, e a disputa por territ�rios na �frica e mesmo da Europa -caso da B�snia e da S�rvia.

    Os artigos reconstroem as rela��es de for�a, o campo de poder internacional cujos desdobramentos alcan�ariam o s�culo 20. Registram atentados e assassinatos pol�ticos orquestrados pelos "niilistas" (anarquistas); avan�os do socialismo, com suas "paredes" (greves); conflitos entre as grandes pot�ncias e o Congresso Antissem�tico Internacional, de 1882, que, narra Nabuco, tomava os judeus por "animais daninhos".

    O fecho dos artigos abriga as variedades: a passagem de um cometa, um banquete com Wagner e Lizst, um naufr�gio, um livro, um baile, um obitu�rio -o de Darwin, Garibaldi, Marx. A� o autor externava mais personalidade, mas, se opinasse muito, Picot cortava suas asas -e o trecho do artigo.

    S� ao final de seu per�odo de correspondente, quando o editor amansou, os textos adquiriram tom pessoal. Nabuco inseria refer�ncias obl�quas � quest�o escravista que ardia no Brasil, por exemplo, ao comentar a escravid�o no Egito e o livro do norte-americano Henry George, "Progress and Property" (1879), que defendia a socializa��o da propriedade da terra. Nabuco criticou seu socialismo, que resultaria em Estado "colossal" e ineficiente, colonizado por "classes paras�ticas", mas aproveitou para propalar seu pr�prio ideal liberal, a taxa��o moderada e progressiva, com vistas a generalizar a pequena propriedade.

    No "La Raz�n", Nabuco escreveu pouco, entre 1883 e 1884, mas opinava mais, em artigos quase normativos sobre liberalismo, democracia, socialismo, nos quais sobressai sua admira��o incontida pelo reformismo pol�tico ingl�s.

    Aqui e ali, algo de pol�tica americana, como o tratado de paz entre Chile e Peru, em 1883, mas o grosso dos textos cozinhava o antes enviado para o "Jornal do Com�rcio" -a situa��o desgostou Picot e foi um motivo para interromper sua correspond�ncia em Londres. Outro foram as elei��es parlamentares brasileiras de 1884. Nabuco voltou para se jogar de cabe�a na campanha abolicionista.

    PALANQUE

    O segundo volume da colet�nea traz textos desse tempo, quando enviou do Rio alguns artigos para o "La Raz�n", e escreveu para "O Pa�s". Quintino Bocaiuva, abolicionista e editor do jornal carioca, convidou Nabuco para uma coluna que seria seu palanque abolicionista, com cr�ticas furibundas � pol�tica escravista do governo do Partido Conservador.

    Entre 1886 e 1888, escreveu cerca de uma centena de artigos. A colet�nea, para manter sua unidade como "correspond�ncia internacional", incluiu s� os escritos da Europa, para onde foi, como enviado especial, a fim de cobrir tratamento de sa�de de dom Pedro 2�.

    Como o imperador se restabeleceu, os artigos se concentraram na linha dos anteriores para o "Jornal do Com�rcio", com foco na pol�tica inglesa. Mas, nos textos de 1888, a pol�tica brasileira sobressai, como quando narra suas visitas a Gladstone e ao papa, em busca de apoio para a aboli��o da escravid�o.

    Foi justo a pol�tica que tirou Nabuco de "O Pa�s", quando o republicanismo tornou-se preponderante na linha editorial. Ao contr�rio de Picot, Bocaiuva n�o logrou enquadrar Nabuco, que recorreu ao dono do jornal e assim manteve coluna aut�noma, "Campo Neutro". Mas o arranjo durou pouco.

    P�s-13 de Maio, os abolicionistas se dividiram. Boa parte, como Bocaiuva, foi para a campanha republicana. Nabuco ficou entre os poucos esperan�osos de que o Terceiro Reinado, o de Isabel, faria reformas complementares � aboli��o. Essa diverg�ncia encerrou sua participa��o em "O Pa�s" em 1889.

    Nesse ano, a monarquia, assoreada por v�rias frentes de descontentamento, caiu, e Nabuco, rec�m-reeleito deputado, ficou sem emprego. Voltou � imprensa, em 1891, no "Jornal do Brasil", criado por monarquistas como polo de cr�tica ao novo regime.

    Esses artigos, escritos de Londres e Buenos Aires, como aqueles para o "Jornal do Com�rcio", produzidos no retorno ao Brasil (por isso exclu�dos da sele��o), s�o salpicados de antirrepublicanismo e acusam o militarismo n�o apenas nacional como noutras partes da Am�rica Latina -express�o que usa a� por primeira vez.

    Na colet�nea, o leitor vai encontrar ent�o tr�s Nabucos: o jornalista, o abolicionista e o monarquista.

    LIVROS

    "O Abolicionismo" deve ao jornal, embora n�o tenha sido escrito nele, mas outros quatro livros de Nabuco surgiram na imprensa e conformam dois pares.

    "Balmaceda" [Cosac Naify, R$ 59, 272 p�gs.], sobre a guerra civil no Chile, e "A Interven��o Estrangeira durante a Revolta de 1893" [Senado Federal, R$ 10, 150 p�gs.], a respeito da Revolta da Armada, sa�ram seriados no "Jornal do Com�rcio", entre 1895 e 1896, anos de florianismo feroz e de rea��o monarquista � Rep�blica, com a Revolta da Armada.

    Tempo de milit�ncia, para Nabuco, como um dos fundadores do Partido Monarquista. E tempo de governo militar. Por isso, a an�lise da pol�tica interna chilena, em "Balmaceda", serve para criticar o republicanismo do Brasil de esguelha. "A Interven��o Estrangeira", publicado j� no governo Prudente de Morais, � expl�cito em acusar o apoio dos EUA a Floriano como decisivo na vit�ria dos republicanos sobre os monarquistas.

    O outro par de livros � da virada do s�culo. "Escritos e Discursos Liter�rios" (1901) traz artigos publicados aqui e ali, que destilam a ades�o cultural ao antigo regime. Nabuco j� n�o propagandeava a monarquia, a Rep�blica estava consolidada, mas sua fidelidade ao modo de vida aristocr�tico persistia e est� patente na reconstru��o precoce da pr�pria trajet�ria (tinha 40 anos), escrita em outro jornal monarquista,"O Com�rcio de S�o Paulo".

    A s�rie era explicitamente pol�tica, com o cabe�alho "Minha Forma��o Mon�rquica". Ao coligi-la em livro, em 1900, Nabuco encurtou o nome para "Minha Forma��o" [Editora 34, R$ 49, 288 p�gs.] -ele aceitara cargo diplom�tico do governo republicano. Mas o livro guardou certa nostalgia do Imp�rio, at� ao falar da escravid�o que tanto combatera. Prosa evocativa e de um lirismo evidente no trecho que Caetano Veloso musicou como "Noites do Norte".

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    TRA�A

    Li por primeira vez o que vai nesta colet�nea em c�pias nas quais �s vezes o fil� mignon do artigo tinha sido refei��o de uma tra�a. A edi��o em livro recupera a �ntegra e ajunta o que era preciso ca�ar em diferentes arquivos. Assim, presta inestim�vel servi�o ao pesquisador. Contudo, o leitor de jornais velhos espera que o livro traga refrig�rio gr�fico. Este n�o traz. Como o volume de artigos � grande, optou-se pelas letras mi�das -com que o mart�rio para os olhos n�o se altera.

    Tamb�m seria bom um sum�rio detalhado, que orientasse o leitor entre jornais e datas, e uma advert�ncia sobre a autoria de alguns artigos -os do "Jornal do Com�rcio" n�o eram assinados, vinham apenas como "correspond�ncia".

    O que se l� � variado em assuntos, �pocas e finalidades. Notas de rodap� mais abundantes ajudariam o leitor menos informado sobre Nabuco e seu tempo.

    A edi��o o compensa, por�m, com quatro textos introdut�rios. O primeiro � o erudito, do historiador Leslie Bethell, professor em�rito das universidades de Londres e Oxford, sobre a geopol�tica e a pol�tica inglesa do s�culo 19.

    O tamb�m historiador Jos� Murilo de Carvalho, professor em�rito da UFRJ, assina o segundo, apresentando a conjuntura pol�tica dom�stica em que Nabuco se movia. Bethell e Carvalho s�o especialistas consagrados no per�odo e antes coligiram a correspond�ncia de Joaquim Nabuco com os abolicionistas ingleses. A apresenta��o do jornalista C�cero Sandroni d� o panorama da imprensa brasileira no per�odo, e a de Adriana Mirel Clavijo, especialista em rela��es internacionais, informa sobre o jornal uruguaio "La Raz�n".

    Para quem nunca leu Nabuco, a colet�nea � oportunidade de adentrar o universo de um de nossos melhores analistas e flagr�-lo em forma��o e burilamento. Quem o conhece vai dar com novo �ngulo da figura e aquilatar o que significava ser jornalista no estrangeiro no s�culo 19.

    Boa companhia na leitura deste livro s�o textos oitocentistas correlatos. O "Times" de Londres enviou William Howard Russel para cobrir os conflitos na Crimeia, em 1854, fazendo dele um pioneiro da correspond�ncia de guerra. Jos� Mart� acompanhou a Primeira Internacional socialista para o "La Naci�n", em 1888. E E�a de Queiroz, de quem Nabuco foi amigo na velhice, escreveu para um jornal suas "Cartas da Inglaterra", mais �cidas que as de Nabuco, mas igualmente saborosas.

    A idade dos textos n�o deve espantar o leitor. Eles nos s�o mais pr�ximos do que se imagina.

    Um tema de Nabuco foram os ataques terroristas perpetrados na Europa por radicais irlandeses e socialistas russos. Em 1884, por exemplo, houve a "conspira��o da dinamite". Malas cheias de explosivos foram postas em quatro grandes esta��es de metr� em Londres, programadas para explodir no mesmo hor�rio. Tr�s falharam, mas uma arrebentou Victoria
    Station, no cora��o da cidade. Como se v�, problemas do tempo de Nabuco que persistem no nosso.

    ANGELA ALONSO, 44, � professora livre-docente do departamento de sociologia da USP e diretora cient�fica do Cebrap. Escreveu, entre outros, "Joaquim Nabuco: Os Sal�es e as Ruas" (Companhia das Letras).

    ELISA VON RANDOW, 38, � designer e ilustradora.

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