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    Mem�rias do diplomata Jo�o Guimar�es Rosa

    LUIZ FILIPE DE MACEDO SOARES
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    05/05/2013 02h09

    RESUMO Em 1956, em busca de paz para escrever e ap�s servir longamente no exterior, Guimar�es Rosa refugiou-se no Rio, na Divis�o de Fronteiras do Itamaraty, que chefiaria at� morrer, em 1967. Demonstrou tarimba ao debelar crise diplom�tica com o Paraguai, aqui rememorada por um colega de carreira mais novo.

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    "Afinal o esperado romance de Guimar�es Rosa". Esse era o chamariz do an�ncio da editora Jos� Olympio no "Correio da Manh�" de 17 de julho de 1956. O an�ncio ainda advertia: "Quando V. ler esse livro, n�o passe adiante o seu enredo. Deixe aos outros o prazer de descobrir o GRANDE SERT�O:VEREDAS". Dias depois, em 5/8, no mesmo jornal, o cronista Carlos Drummond de Andrade versejava: "Uma semana igual �s outras: prosa,/ entretanto (n�o vamos rasgar sedas),/ tal como outra n�o h�, Guimar�es Rosa/ em seu 'Grande Sert�o', tra�a veredas//Riobaldo e Diadorim bebem na flor/ de gravat� e v�o vivendo est�rias/em que a morte redoura, duro amor,/a perfei��o de uma arte sem esc�rias".

    O primeiro dos anos JK, j� em fevereiro, come�ara animado com o lan�amento de "Corpo de Baile". No final do ano, o "Di�rio de Not�cias" dava o "Grande Sert�o" como "o maior sucesso liter�rio de 1956". Dos meus 15 anos, foi certamente o �nico presente que guardo at� hoje.

    Reprodu��o
    Escritor mineiro Jo�o Guimar�es Rosa � autor de "Grande Sert�o: Veredas", cl�ssico da literatura brasileira
    Escritor mineiro Jo�o Guimar�es Rosa � autor de "Grande Sert�o: Veredas", cl�ssico da literatura brasileira

    N�o podia imaginar que, passados sete anos, diplomata rec�m-nomeado, estaria eu com o pr�prio autor daquele livro, tamb�m ele diplomata e j� embaixador mais de 30 anos mais velho do que eu, no autom�vel de um de meus colegas de turma, que, de segunda a sexta, nos levava de Copacabana ao Itamaraty, na rua Larga. Tinha assim direito a uma boa meia hora di�ria de "est�rias", em geral sobre a vida liter�ria do Rio. Os tr�s ainda nos encontr�vamos volta e meia para almo�ar nas cercanias do Itamaraty, onde se comia bem em botequins de nomes brejeiros, como Dois Amiguinhos. O embaixador tratava-nos como colegas, sem dist�ncias hier�rquicas nem proximidades demag�gicas.

    FRONTEIRAS

    Desde 1956, Rosa chefiava a Divis�o de Fronteiras no Minist�rio das Rela��es Exteriores, cargo que ocupou por 11 anos at� morrer, em 1967. N�o � comum, no Itamaraty, t�o longa perman�ncia em uma fun��o. N�o voltou a servir no exterior desde que regressou de seu �ltimo posto, na Embaixada em Paris, em 1951. Desejava certamente concentrar-se em sua obra, embora a parte principal j� estivesse feita. Em princ�pio, em 1956 restariam-lhe 17 anos de carreira at� a aposentadoria compuls�ria, aos 65, e bem mais de vida, em vez de meros 11 anos.

    Que fazia o diplomata Guimar�es Rosa?

    A Divis�o que ele chefiava tem a fun��o de coordenar os trabalhos para manter e melhorar a identifica��o dos 15.000 km de fronteiras com nossos dez vizinhos. Essa identifica��o faz-se tanto por mapas quanto por marcos dispostos na linha de limites. As duas Comiss�es Brasileiras Demarcadoras de Limites, a primeira com sede em Bel�m e a segunda no Rio, executam os trabalhos de campo, em conjunto com os pa�ses vizinhos. Como as fronteiras est�o definidas desde os tempos do Bar�o do Rio Branco, n�o h� em princ�pio problemas pol�ticos. Apesar disso, o o�sis que Rosa buscava para escrever mostrou-se um tanto ilus�rio.

    Em 1965, o Paraguai, com grande estrid�ncia, pretendeu abrir uma quest�o de fronteira em torno do salto de Sete Quedas ou salto de Guair�. A quest�o era s�ria, n�o s� por se tratar de limites, mas tamb�m pela natural sensibilidade das rela��es com o Paraguai.

    O governo paraguaio apresentava suas pretens�es e os argumentos para sustent�-las em notas de grande extens�o, com mais de 50 p�ginas. Com dois anos de carreira, eu tinha entre minhas atribui��es os assuntos relativos ao Paraguai e era obrigado a ler as tais notas, que me induziam irresistivelmente ao sono. Quem escrevia as respostas, bem mais curtas, era o Chefe da Divis�o de Fronteiras.

    O exerc�cio da diplomacia faz-se primordialmente pela escrita. Em seu "Guimar�es Rosa: Diplomata", (Funda��o Alexandre de Gusm�o, 1987), Heloisa Vilhena de Ara�jo reproduz uma nota redigida por Rosa e outros exemplos de sua prosa burocr�tica. O adjetivo � exato. A pena do diplomata n�o absorve o estilo do escritor. Contudo, pela clareza, objetividade e concis�o, revela um profissional excelente.

    No Itamaraty, como em qualquer chancelaria que se preze, as boas reputa��es prov�m da capacidade de observa��o, mas dependem de escrever bem. No mesmo volume, por exemplo, l�-se um relat�rio de 1941 em que o jovem Rosa, ent�o lotado no consulado em Hamburgo e emprestado � Embaixada em Berlim, relata uma curta viagem como correio diplom�tico a Lisboa via Madri. Em plena Guerra, em pa�ses sob estrito controle de ditaduras, a quantidade das informa��es e a clareza das an�lises no relat�rio eram de grande valor para o governo brasileiro avaliar a situa��o. O texto inclui informa��es sobre concentra��o de tropas alem�s na fronteira da URSS, colhidas em 3 de junho, quase tr�s semanas antes do ataque alem�o.

    Tamb�m chama a aten��o a clareza da posi��o do autor quanto �s ditaduras europeias, sob um Estado Novo que s� dois anos depois tomaria a decis�o de romper com o Eixo. Vale transcrever um par�grafo, pela an�lise e pelo estilo:

    "A circunst�ncia de estarem os dois pa�ses mais ou menos comprometidos, quando mais n�o seja teoricamente --Portugal pela sua plurissecular alian�a com a Inglaterra, a Espanha pelos v�nculos com as Pot�ncias do Eixo-- ajuda-nos a compreender o inteligente af� com que os seus governantes se apertam as destras, uma vez que cada um deles d� a m�o esquerda a um dos dois grupos beligerantes.

    "Praticam uma pol�tica de rec�proca ajuda, e cultivam uma amizade compensadora, realizando, sem atritos, a osmose adaptativa, entre dois regimes, autorit�rios mas de diferente colorido totalit�rio conforme a pitoresca disposi��o, no mapa, das ditaduras europeias, que se escalonam, de leste para oeste, numa seria��o decrescente de radicalismo."

    Mas voltemos ao Paraguai.

    Em janeiro de 1966, diante da grave crise, o Itamaraty organizou reuni�es para compartilhar o problema com outros setores do governo. A primeira, na Sala dos �ndios do velho Itamaraty, constou de uma exposi��o de Rosa sobre a forma��o da fronteira com o Paraguai, de Tordesilhas �s mais recentes campanhas de demarca��o. Foram tr�s horas de uma descri��o que mostrava seu conhecimento metro a metro da fronteira e sua intimidade com os negociadores e demarcadores desde os tempos do Tratado de Madri (1750).

    Ele se dedicava ao assunto fazia meses. As notas de resposta ao Paraguai que preparava mostravam seu conhecimento minucioso da linha de limite e a riqueza de seu preparo t�cnico em geografia, topon�mia, geod�sia, topografia, cartografia, hist�ria, geologia. A arg�cia e a l�gica da argumenta��o desfizeram a tentativa de reabrir uma quest�o de fronteira cuja demarca��o tinha sido correta e cabalmente conclu�da ao longo de mais de 60 anos at� �ltima campanha demarcat�ria, em 1934.

    Rosa, entretanto, n�o se limitava a rebater os argumentos do pa�s vizinho. Naquela nota de 25 de mar�o de 1966, passando do t�cnico ao pol�tico, ele inclui no final a proposta de negociar o aproveitamento conjunto do potencial energ�tico da regi�o. Sem tocar na linha de limite, reconhecemos ao Paraguai o direito � metade das �guas do rio Paran�.

    "O Brasil est�, como sempre esteve, disposto a encetar negocia��es em torno de t�o importante quest�o, e a promover, em conjunto com o Paraguai, os planos necess�rios � utiliza��o pr�tica, n�o s� do enorme potencial energ�tico decorrente do salto das Sete Quedas, como de todas as possibilidades que oferecem, � agricultura e � navega��o, as �guas do Paran�; de tal sorte que esse grande rio, ao inv�s de oferecer aos dois pa�ses raz�es de lit�gio ou desaven�a, seja entre eles um elo de uni�o, como sempre desejaram os anteriores governos do Brasil, e firmemente deseja o atual."

    Naquela crise, eu ia com frequ�ncia � vasta sala de Rosa, no terceiro andar da ala leste do minist�rio. Numa segunda-feira, diz-me ele que, lendo no domingo a �ltima nota paraguaia pela terceira vez, havia percebido uma falha fundamental na argumenta��o deles. Fiquei pasmo. Ler uma vez era para mim uma tortura. Ainda mais num domingo... Em outra ocasi�o, contou-me que fazia um ano n�o escrevia uma linha de literatura.

    A negocia��o aventada por Rosa foi aceita. Em 1966 foi assinada em Foz do Igua�u a Ata das Cataratas, que tornou poss�vel mais tarde, vencidas dificuldades de outra natureza com a Argentina, iniciar-se a constru��o de Itaipu.

    AMAZ�NIA

    A Amaz�nia figurou desde o come�o entre as preocupa��es nacionalistas do regime militar (1964-85), que instalou como governador em Manaus o historiador Arthur C�sar Ferreira Reis, autor do livro "A Amaz�nia e a Cobi�a Internacional". Nesse contexto, o Itamaraty procurava dar realidade mais concreta �s rela��es com os demais pa�ses da bacia Amaz�nica. Naquele tempo, uma liga��o telef�nica entre Bras�lia e Bogot� s� se fazia via Nova York. A Venezuela, seguindo a Doutrina Betancourt, suspendera as rela��es com o Brasil desde o golpe de 64.

    A fim de examinar como intensificar as rela��es, o Itamaraty decidiu realizar em Manaus, no come�o de 1967, uma reuni�o dos embaixadores do Brasil nos pa�ses amaz�nicos. Coube-me a tarefa de cuidar da log�stica. O formato era complicado. Nos tr�s primeiros dias, a reuni�o inclu�a todos os minist�rios e os governos estaduais, umas 200 pessoas. Seguiam-se outros tr�s dias de reuni�o interna do Itamaraty. Manaus pr�-Zona Franca s� tinha dois hot�is habilitados para essa clientela e muitas outras car�ncias. Em compensa��o, apesar de mal conservada, ainda era a Manaus da era da borracha.

    O Chefe da Divis�o de Fronteiras participou ativamente da reuni�o. � noite, passada a chuva vespertina di�ria, ele me levava para jantar, junto com seu amigo e colaborador o general Bandeira Coelho, chefe da Primeira Comiss�o Demarcadora, a de Bel�m.

    Sempre havia visto Rosa de terno azul-marinho risca de giz, camisa branca, suspens�rio e gravata-borboleta. Nas sortidas noturnas em Manaus, ele se apresentava de "traje esporte": sem o palet� e a gravatinha. E l� �amos comer tucunar� em botecos na beira do rio.

    Uma noite, ap�s o jantar, visitamos um terreiro onde Rosa foi homenageado pelo pai de santo. Era um candombl� que parecia seguir o ritual da Bahia ou do Rio, mas em que a apar�ncia dos participantes e dos adere�os era ind�gena em vez de africana. Noutra noite fomos a um "baile", um cabar�, nas cercanias da cidade, a pouca dist�ncia, mas j� em plena floresta.

    Um grande galp�o aberto, um som de bolero, poucos clientes, muitas meninas que logo vieram rodear aquela mesa com tr�s cavalheiros t�o bizarros. As mais afoitas sentaram-se e a conversa come�ou. Eu olhava Rosa, que ia entretendo a garrulice das meninas e anotava em seu caderninho as express�es, os termos locais. Onde andar� aquela caderneta?

    Encerrada a reuni�o, a Marinha proporcionou-nos o passeio de praxe ao encontro das �guas e � ilha do Careiro. Na volta, � tarde, na lenta embarca��o, sent�amos a monotonia e a solid�o da imensidade fluvial, o peso do calor antes da chuva. Havia espregui�adeiras no conv�s. N�o demorou a formar-se ampla roda em torno de Rosa.

    Ele descreveu em min�cias sua viagem acompanhando uma boiada pelo sert�o: as op��es de roteiro e de dimens�o, as raz�es de sua escolha, o caminho, os vaqueiros e a organiza��o da boiada. Sim, as reses n�o andam a esmo. Certa ordem � sempre mantida. Uma vaca da frente, se levada ao meio, logo estar� � frente de novo.

    No dia seguinte, um avi�o da FAB trouxe-nos de volta ao Rio, inclusive os bichos que compramos na feira de Manaus, em tempos pr�-ecol�gicos. Eu trazia um tucano, o Chefe do Cerimonial, duas on�as para seu zoo em Itaipava.

    Rosa trazia um jabuti.

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