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    No quintal de Kleber Mendon�a Filho

    FERNANDA MENA
    ENVIADA ESPECIAL AO RECIFE

    17/02/2013 08h07

    RESUMO Aclamado pela cr�tica e por festivais internacionais, "O Som ao Redor" se imp�e como um raro acontecimento cultural no cinema brasileiro. O diretor levou a Folha � rua em que rodou o longa e exp�s matrizes de seu trabalho, enraizado na cr�tica, no cineclubismo e na obra de Gilberto Freyre, com quem sua m�e trabalhou.

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    Em uma rua tranquila em Set�bal, regi�o de classe m�dia a poucos quarteir�es da praia de Boa Viagem, no Recife, o som ao redor � o das crian�as no p�tio do col�gio da esquina, o das vassouras de pia�ava que investem contra o passeio de pedra e o meio-fio e o das visitas que dispensam a campainha para gritar da cal�ada por quem procuram. Tudo, por�m, abafado pelo ru�do constante da constru��o de torres residenciais avan�ando contra o casario local.

    Rosto colado num muro, olho direito espiando por uma fresta, Kleber Mendon�a Filho, 44, vasculha a cena ocultada por tijolos e cimento. O enquadramento n�o ajuda. Ele pega o celular no bolso da bermuda, estica o corpo, na ponta dos p�s cal�ados em chinelos de dedo, e ergue os bra�os sobre o muro, equilibrando o aparelho nas m�os. "Cuidado, Kleber! Pode ter um cachorro a�", aflige-se sua mulher, a francesa Emilie Lesclaux, arranhando ainda mais os erres do sotaque.

    Fernanda Brenner/Reprodu��o
    Ilustra��o da artista Fernanda Brenner para a edi��o de 17 de fevereiro da "Ilustr�ssima"
    Ilustra��o da artista Fernanda Brenner para a edi��o de 17 de fevereiro da "Ilustr�ssima"

    Tira uma foto e levanta os �culos para avaliar a imagem. "�...", suspira, "j� demoliram toda a parte pr�xima � piscina".

    O im�vel do outro lado do muro foi quartel-general e um dos cen�rios do primeiro longa-metragem de fic��o de Mendon�a, "O Som ao Redor", o filme brasileiro mais bem recebido e comentado dos �ltimos tempos.

    O terreno da casa em que, no filme, viveu a personagem Sofia (Irma Brown), namorada do protagonista Jo�o (Gustavo Jahn), deve dar lugar, fora das telas, a mais um "pr�dio de alta qualidade, entre aspas", como gosta de dizer o diretor, frisando o que diz com um gesto dos dedos indicadores e m�dios ao lado do rosto.

    � das rela��es entre muros dessa paisagem urbana em r�pida transforma��o que trata "O Som ao Redor": a classe m�dia enjaulada em edif�cios sitiados, as brincadeiras de crian�a limitadas pelo port�o do pr�dio e pelos cuidados das bab�s, o vaiv�m das empregadas dom�sticas nos apartamentos, a vig�lia dos guardas-noturnos.

    "N�o sou contra filme de favela ou do sert�o, mas a novidade de 'O Som ao Redor' � o fato de ter seccionado com tamanha precis�o um peda�o da sociedade brasileira pelo qual o cinema em geral n�o se interessa: a classe m�dia de condom�nio", diz Cac� Diegues. "N�o h� refer�ncia a nada. � como se o cinema estivesse sendo inventado ali", entusiasma-se o cineasta, ele mesmo um autor de filmes de favela ("Orfeu", 1999) e de sert�o ("Tieta do Agreste", 1996).

    Para Mendon�a, nada mais natural do que retratar o territ�rio que lhe � familiar. "As pessoas se espantam com o fato de o filme tratar da classe m�dia. Isso � muito estranho, j� que 90% dos cineastas brasileiros s�o de classe m�dia", arrisca o diretor. "O cinema brasileiro olha para lugares que n�o me interessam. Queria fazer o tipo de filme que n�o tenho visto no Brasil, o que diz muito sobre o que acho da cena atual."

    Trata-se de uma fatia da sociedade brasileira mais comumente retratada em com�dias de apelo popular: blockbusters como "De Pernas para Ar", "At� Que a Sorte nos Separe" e "E A�, Comeu?". "S�o filmes feitos com muita grana e lan�ados com muita grana. Gastam R$ 6 milh�es mas parecem ter custado R$ 800 mil porque t�m dois apartamentos, quatro atores da Globo, um cachorro e um gato", desdenha o diretor. "Minha tese � a seguinte: se meu vizinho lan�ar o v�deo do churrasco dele no esquema da Globo Filmes, ele far� 200 mil espectadores no primeiro final de semana."

    Ap�s seis semanas em cartaz, "O Som ao Redor", que custou R$ 1,8 milh�o --R$ 550 mil provenientes do fundo para o audiovisual do Estado do Pernambuco--, deve chegar aos 70 mil espectadores neste domingo. O filme estreou no circuito brasileiro em 13 salas, em 4 de janeiro; num movimento inverso ao trivial, chegou a ocupar 18, na semana seguinte ao lan�amento. Hoje se mant�m em 11.

    "Filme com menos de 100 mil espectadores n�o existe para o mercado", observa Carlos Augusto Calil, ex-diretor da Embrafilme, ex-secret�rio municipal de cultura de S�o Paulo e professor de cinema da USP. "Mas nosso horizonte cinematogr�fico � muito pobre e, nesse contexto, 'O Som ao Redor' se destaca pela intelig�ncia dramat�rgica. Cria um painel e uma sensa��o parecidos com o filme 'O P�ntano', da argentina Lucr�cia Martel. � o tipo de filme que precisa ficar mais tempo em cartaz, mesmo que seja em uma sala s�, porque o boca a boca sobre ele � muito bom."

    GRADES

    Filmado em seis semanas e meia, em 2010, o longa de Kleber Mendon�a Filho apresenta 80 loca��es --a maioria delas localizada nos arredores do apartamento em que ele vive h� 25 anos, cuja janela gradeada d� hoje para os 17 andares de um pr�dio de alta qualidade, entre aspas, sendo erguidos a poucos metros dali.

    Diante da nova e in�spita urbaniza��o do Recife, "O Som ao Redor" evita as paisagens abertas, as praias, e faz cr�nicas da vida �ntima em que os espa�os p�blicos, em suas raras apari��es, surgem privatizados.

    A rua que serve de cen�rio para o filme tem dono: � de Francisco (W.J.Solha), o patriarca local, propriet�rio de um engenho decadente no interior do Estado e de boa parte dos apartamentos do quarteir�o. Ele � av� do protagonista Jo�o e de Dinho (Yuri Holanda), ovelha negra da fam�lia.

    Com a chegada ao local de um grupo de seguran�as particulares, liderados por Clodoaldo (Irandhir Santos), o patrim�nio permanece nas m�os do coronel, mas o controle passa a ser deles: nenhum carro ou pessoa passa por ali despercebido.

    "O condom�nio fechado � mostrado como a vers�o contempor�nea do feudalismo, em que empregadas e porteiros s�o objetificados", avalia Ismail Xavier, cr�tico de cinema e professor da USP. "Tudo parece normal e, ao mesmo tempo, a ponto de romper. H� sinais de instabilidade, e a tens�o � trabalhada de maneira muito sutil, potencializada por uma estranheza familiar com tintura de inseguran�a", decreta. "Com isso, Kleber demonstra um grande dom�nio dos meios de express�o, do tempo e do espa�o."

    � no mesmo celular em que registrou a ru�na de um dos sets do longa que Mendon�a checa, a todo momento, mensagens, na maioria elogiosas, sobre o filme. No Facebook, s�o postados os textos sobre filme publicados na m�dia --como aquele que Caetano Veloso, em sua coluna no jornal "O Globo", escreveu que "O Som ao Redor" � "um dos melhores filmes feitos recentemente no mundo".

    Quando foi lan�ado, h� um ano, no Festival de Cinema de Roterd�, o filme havia sido inscrito em outros dois eventos do tipo. Ao final da premi�re, Kleber Mendon�a Filho deixou a sala de proje��o com convites para outros cinco festivais: Nova York, Sidney, Edimburgo, Munique e Seul. Hoje, o longa coleciona participa��es em mais de 50 mostras de cinema no Brasil e no exterior e 14 pr�mios nacionais e estrangeiros, entre eles os de melhor filme na Mostra de Cinema de S�o Paulo e no Festival do Rio, al�m do pr�mio da cr�tica no festival holand�s de sua estreia. Diante da consagra��o do filme, diz o diretor, "� dif�cil encontrar o equil�brio entre o blas� e o fogueteiro".

    Com estreia prevista para mar�o na Inglaterra, no Canad� e na Pol�nia, "O Som ao Redor" ser� lan�ado no iTunes em um m�s e tamb�m deve ser exibido nos canais HBO na Am�rica Latina.

    O MoMA, o museu de arte moderna de Nova York, onde o longa foi exibido durante o festival New Directors New Films, quer adquirir uma c�pia do filme para sua cole��o permanente.

    "'O Som ao Redor' � particularmente interessante porque, ao mesmo tempo em que � muito brasileiro, cria um ambiente em que o espectador estrangeiro se sente seguro para adentrar uma estrutura social que n�o � a sua e observ�-la atrav�s dos olhos do diretor", explica Jytte Jensen, curadora de filmes do MoMA. "Queremos ter o filme na nossa cole��o porque ele anuncia a chegada de um diretor de com uma voz extremamente pessoal e original e com uma vis�o muito cinematogr�fica, que sabe pensar as imagens."

    CR�TICO

    "Kleber fez um filme muito bom, mas o fato de ele ter sido cr�tico de cinema durante muitos anos ajuda: os colegas acabam sendo mais generosos", suspeita Claudio Assis, diretor pernambucano, amigo do cineasta e autor de filmes como "Baixio das Bestas" (2006) e "A Febre do Rato" (2011). "N�o tem jeito, todo cr�tico � um cineasta frustrado", provoca.

    O clich� j� foi alvo da ironia de Mendon�a. Em um dado momento dos 11 anos em que se dedicou � reportagem e � cr�tica de cinema --em especial para o pernambucano "Jornal do Commercio", mas tamb�m em colabora��es eventuais para a Folha--, ele mandou estampar uma camiseta com a frase: "Todo cineasta � um cr�tico frustrado".

    "Voc� n�o tem ideia do efeito que esta camiseta tem sobre os diretores. Pega no cora��o deles", diverte-se.

    Cineasta e cr�tico, programador e cin�filo, Kleber Mendon�a Filho come�ou, ainda na faculdade de jornalismo, a fazer v�deos --esp�cie de "primo pobre do cinema". "Meus curtas passavam de tarde nos festivais, em salinhas em que ningu�m entrava", lembra.

    Com o advento tecnol�gico que transformou o v�deo em cinema digital, Mendon�a abandonou os hor�rios esdr�xulos das ilhas de edi��o do Recife, aqueles desprezados pela publicidade, para trabalhar em casa. Foi o primeiro grande salto em sua produ��o.

    O segundo veio com a consolida��o de uma pol�tica cultural do Estado do Pernambuco: um fundo, hoje com R$ 11,5 milh�es destinados apenas � produ��o audiovisual, que premia, por meio de editais, cada etapa da produ��o cinematogr�fica local. "O fundo tem recursos espec�ficos para o audiovisual, o que permite um n�vel de produtividade razo�vel. O filme de Kleber e tantos outros feitos agora s�o devedores desse sistema", explica Paulo Cunha, cineasta do ciclo pernambucano do Super8, professor de cinema brasileiro da Universidade Federal do Pernambuco (UFPE) e uma das poucas vozes cautelosas quanto � consagra��o do longa.

    "O filme tem quest�es --que n�o s�o defeitos propriamente. Merecia 20 minutos a menos, por exemplo, e ganharia com isso. A tentativa de justific�-lo sociologicamente, de torn�-lo erudito, n�o agrega nada a sua narrativa. Tamb�m n�o estamos diante da reinven��o da linguagem cinematogr�fica. O filme � e ser� bem-sucedido, mas n�o precisa desse movimento incensat�rio", diz.

    Em seu blog no site da revista "Piau�", Eduardo Escorel, cineasta e montador, tamb�m abandonou o coro elogioso, que chamou de "surto de ufanismo patrioteiro". E, entre elogios � coragem do cineasta em retratar com realismo moradores comuns do Recife, apontou como falhas a "apatia do elenco" e o "tom monoc�rdico" que "empobrece os personagens".

    CURTAS

    "O Som ao Redor" revisita toda a filmografia de curtas do diretor: de "A Menina do Algod�o" (2002), pega emprestado o clima sombrio; de "Vinil Verde" (2004), o pesadelo de uma das crian�as do filme. De "Eletrodom�stica" (2006), rouba duas cenas inteiras em que Beatriz (Maeve Jinkings) usa o aspirador de p� para dissipar a fuma�a do cigarro de maconha e a m�quina de lavar em modo centrifuga��o para se masturbar. Do falso document�rio "Recife Frio" (2009), captura dois personagens e volta a chamar a aten��o para o quarto da empregada dos apartamentos de alta qualidade, entre aspas --no curta, que relata a situa��o absurda em que a capital pernambucana sofre com temperaturas abaixo de zero, o local, pequeno e sem ventila��o, passa a ser o c�modo mais aconchegante e disputado do apartamento.

    Para a curadora do MoMA, mais do que fonte de autocita��es, os curtas do cineasta s�o "a chave para entender como ele foi capaz de tamanha fa�anha em seu primeiro longa-metragem".

    ""O Som ao Redor' � um filme que vem sendo feito h� muito tempo. Todos os meus curtas fazem parte deste processo. Hitchcock repetia cenas em filmes diferentes. Truffaut revisitou elementos ao longo da carreira", diz o cineasta, relativizando o procedimento. "Tem gente que entende, tem gente que se incomoda com isso."

    ENJAULADO

    Se toda a carreira anterior de Kleber Mendon�a Filho no cinema conduz a seu primeiro longa, � talvez no seu primeiro curta, intitulado "Enjaulado" (1997), que se encontre mais claramente a g�nese de "O Som ao Redor". Esp�cie de rascunho do mal-estar social do longa, o curta retrata a paranoia da seguran�a nas grandes cidades a partir dos devaneios de persegui��o de um rapaz trancado num apartamento repleto de grades nas portas e janelas.

    Mas "O Som ao Redor" avan�a no diagn�stico que faz dessa quest�o urbana, buscando suas ra�zes na nossa cultura escravocrata. A liga��o entre a afli��o presente e a heran�a passada se anuncia j� no prel�dio � a��o do filme, uma sequ�ncia de fotografias em preto e branco de engenhos de a��car no interior do Pernambuco. "Essa foi a fagulha do filme. Comecei a perguntar para os meus amigos: o que voc� acha de um filme em que o engenho seja uma rua moderna do Recife?", lembra ele.

    Divulga��o
    Equipe durante a filmagem de "O Som ao Redor", no Recife
    Equipe durante a filmagem de "O Som ao Redor", no Recife

    A estrutura social do Brasil no per�odo escravista � um tema familiar ao diretor. Filho da historiadora Joselice Juc�, estudiosa do abolicionista mulato Andr� Rebou�as (1838-1898), Mendon�a cresceu entre conversas sobre as reformas sociais pensadas e nunca implementadas no Brasil p�s-abolicionista. Entre as mem�rias de sua inf�ncia est�o ainda visitas � sala de Gilberto Freyre (1900-1987), vizinha da de sua m�e, no antigo Instituto (hoje Funda��o) Joaquim Nabuco, no Recife.

    S� muitos anos depois, quando viveu em Essex, na Inglaterra, durante o doutorado da m�e, � que tomou conhecimento da obra seminal para a sociologia brasileira produzida por aquele senhor da sala ao lado. "Minha m�e me obrigou a ler 'Casa-Grande & Senzala', livro que reli antes de fazer 'O Som ao Redor'", conta ele. Fica claro, portanto, o cineasta dedicar o filme a sua m�e.

    "Ela morreu em 1995 e deixou um livro n�o publicado sobre a reforma agr�ria proposta por Rebou�as, que nunca aconteceu. Ela me ensinou que, no Brasil, os negros se tornaram cidad�os do dia para a noite, sem que nada fosse feito para receb�-los. As consequ�ncias disso est�o a� at� hoje", conclui. "Um sonho que tenho � o de adaptar seu livro para o cinema. Mas, de certa forma, j� o adaptei em 'O Som ao Redor'."

    Ao legado intelectual da m�e se somou o olhar estrangeiro de sua mulher, Emilie Lesclaux, que chamou a aten��o do cineasta para as estranhas rela��es entre patr�es e empregados no ambiente dom�stico brasileiro. "Para mim era tudo muito esquisito: havia uma senhora que cuidava da casa de Kleber, mas a rela��o deles n�o era nada profissional. Era uma presen�a totalmente misturada na casa: afeto com trabalho", explica Emilie, que assina a produ��o do filme.

    Antes de se mudar para a casa de Mendon�a, a francesa havia vivido no apartamento de um casal de pernambucanos que havia trazido do interior uma garota para as tarefas dom�sticas. "Uma escravinha", define o cineasta.

    Numa poss�vel transfer�ncia e atualiza��o dos pap�is de brancos e negros da sociedade do a��car, Francisco � um senhor de engenho, Clodoaldo e seus vigias companheiros s�o capit�es-do-mato, Beatriz � uma escrava rec�m-alforriada e Jo�o, um abolicionista. "Jo�o tem uma vis�o mais aberta da sociedade, mas n�o consegue ir at� o final da luta, o que � algo bem brasileiro", pondera o cineasta.

    Para Ismail Xavier, al�m de Gilberto Freyre, o filme evoca o Brasil de S�rgio Buarque de Holanda: "Tudo se resolve no plano das rela��es pessoais, de poder, mando e serventia, fora da no��o abstrata de cidadania e fora da ordem institucional democr�tica. � a sobreviv�ncia de certas tradi��es que a moderniza��o n�o dissolve".

    CINEMA DE ARTE

    Entre a cr�tica e a dire��o, o pernambucano trilhou ainda uma terceira carreira no cinema: a de programador. H� 15 anos, ele responde pela sele��o dos filmes exibidos na principal sala de cinema de arte do Recife, a da Funda��o Joaquim Nabuco, no bairro do Derby. Foi ali, em 1989, que o cineasta estagiou com o ent�o programador Marcelo Gomes ("Era uma Vez, Ver�nica", "Cinema, Aspirinas e Urubus") e que assistiu a muitos dos filmes mais importantes de sua forma��o, como "A Lira do Del�rio" (1978), de Walter Lima Jr.

    Hoje, � ele o respons�vel pela forma��o de uma nova linhagem de cin�filos na quarta maior metr�pole do pa�s, muitos dos quais se tornaram tamb�m cineastas, que gravam com tecnologia digital e editam filmes em laptops.

    Mendon�a encabe�a uma gera��o de diretores pernambucanos que se apartou da est�tica regionalista do maracatu, do sert�o e da pobreza para privilegiar as tens�es urbanas e sociais da metr�pole de seu tempo, tendo o passado como manual de instru��es.

    � assim nas produ��es mais recentes de Marcelo Lordello ("Eles Voltam"), Gabriel Mascaro ("Dom�stica") e Daniel Arag�o ("Boa Sorte, Meu Amor").

    "Assim como a gera��o anterior, de Claudio Assis, h� um sistema de 'brodagem' que � muito caracter�stico da cena do Recife", explica Paulo Cunha. O termo usado pelo professor da UFPE abarca n�o s� a amizade que une o grupo fora dos sets mas tamb�m as frequentes parcerias de produ��o entre os cineastas locais. "Eles se frequentam, fazem projetos comuns e compartilham influ�ncias."

    "Esses diretores fazem filmes de significa��o nacional pela via da urbanidade. E s�o os �nicos da cinematografia atual brasileira que enfrentam problemas sociais, de luta de classes. Isso � absolutamente marcante no que chamo de cinema recifense, e n�o mais pernambucano", explica o cr�tico e cineasta Jean-Claude Bernardet.

    COTIDIANO

    A c�mera de "O Som ao Redor" explora a intimidade dos personagens e coloca o espectador nos olhos de um intruso oculto que contempla cr�nicas do cotidiano --exemplo de uma est�tica assumidamente realista que Kleber Mendon�a Filho apelidou de "l�gica da vida". Com isso, obteve uma obra de alcance universal. "Alguns dos eventos que ocorrem entre quatro paredes poderiam ser epis�dios de uma novela global da banalidade dom�stica em Cingapura, San Francisco, Cidade do Cabo ou Dubai", escreveu o cr�tico A.O. Scott no jornal "The New York Times", que elegeu o filme como um dos dez melhores do ano passado.

    Com a trama segmentada em v�rios n�cleos, repartidos em diferentes espa�os confinados, apenas o som tem livre circula��o. Elementos sonoros contribuem n�o s� para a composi��o do ambiente e para sublinhar situa��es --ocupando o espa�o convencionalmente dado � m�sica, usada no filme com parcim�nia. Aqui, o som ao redor, �,principalmente, um detonador de a��es no roteiro. Como o cachorro da casa vizinha � de Beatriz, a personagem de Maeve Jinkings, que passa madrugadas em claro na copa do apartamento em que, fora das telas, moram Kleber e Emilie. O local ainda guarda cicatrizes dos dias em que "O Som ao Redor" foi rodado: nas paredes decoradas com p�steres de "Barry Lyndon", de Stanley Kubrick, e de "� Tudo Verdade", de Orson Welles, remendos apontam para onde, durante a filmagem, foram fixadas estruturas de ilumina��o do set.

    Mais do que servir de cen�rio, por�m, o lar do casal resume e evidencia o embate entre as ideias do autor e o painel urbano e social retratado no filme.

    Para passar do corredor do pr�dio ao apartamento em si, � necess�rio destrancar dois port�es, duas grades de ferro e uma porta. Ao abrir a �ltima fechadura, que d� acesso � sala, de onde se ouvem as vassouras de pia�ava na cal�ada e a constru��o do pr�dio na esquina, Kleber Mendon�a fecha a porta, mas esquece o molho de chaves do lado de fora.

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