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    Thomas Kuhn: o homem que mudou a forma pela qual o mundo v� a ci�ncia

    JOHN NAUGHTON
    DO "OBSERVER"

    02/09/2012 06h00

    H� 50 anos, em agosto, um dos livros mais influentes do s�culo 20 foi lan�ado pela University of Chicago Press. Muita gente, se n�o todo mundo, provavelmente j� ouviu falar de seu autor, Thomas Kuhn, ou do livro, "A Estrutura das Revolu��es Cient�ficas", e � certo que o pensamento de quase todos n�s foi influenciado por suas ideias. O teste dessa afirma��o � determinar se voc� j� ouviu ou usou a express�o "mudan�a de paradigma", provavelmente a mais usada -- e abusada -- nas discuss�es contempor�neas de mudan�a organizacional e progresso intelectual. Uma busca pelo termo no Google gera mais de 10 milh�es de respostas, e ele consta de n�o menos de 18,3 mil dos livros � venda na Amazon. O livro de Kuhn tamb�m � um dos trabalhos acad�micos mais citados de todos os tempos. Assim, se uma grande ideia pode ser definida como "viral", � esta.

    A verdadeira medida da import�ncia de Kuhn, no entanto, n�o est� na popularidade de um de seus conceitos, mas sim em ele ter mudado praticamente sem ajuda a maneira pela qual pensamos sobre a mais organizada tentativa da humanidade para compreender o mundo. Antes de Kuhn, nossa vis�o sobre a ci�ncia era dominada por ideias filos�ficas sobre como ela deveria se desenvolver ("o m�todo cient�fico"), acompanhadas por uma narrativa heroica de progresso cient�fico como "a adi��o de novas verdades ao estoque de velhas verdades, ou uma crescente aproxima��o entre as teorias e a verdade, e, em casos isolados, a corre��o de passados erros", na defini��o da "Stanford Encyclopaedia of Philosophy". Antes de Kuhn, em outras palavras, t�nhamos o equivalente a uma interpreta��o whig da hist�ria cient�fica, de acordo com a qual pesquisadores, te�ricos e cientistas experimentais do passado se haviam envolvido em uma longa marcha, se n�o rumo � verdade, ent�o ao menos rumo a uma melhor compreens�o do mundo natural.

    A vers�o de Kuhn quanto ao desenvolvimento da ci�ncia difere dramaticamente da vers�o whig. Enquanto o relato padr�o via "progresso" firme e cumulativo, ele via descontinuidades -- um conjunto de fases "normais" e "revolucion�rias" alternadas nas quais comunidades de especialistas em determinados campos passavam por per�odos de tumulto, incerteza e ang�stia. Essas fases revolucion�rias -- por exemplo, a transi��o da f�sica newtoniana para a mec�nica qu�ntica -- correspondem a grandes avan�os conceituais e criam as bases para uma fase posterior, de funcionamento "normal". O fato de que sua vers�o pare�a natural agora �, de certa forma, a maior medida de seu sucesso. Mas em 1962 quase tudo era controverso em sua ideia, devido ao desafio que representava a suposi��es filos�ficas fortemente estabelecidas sobre como a ci�ncia n�o s� funcionava, mas deveria funcionar.

    RELES CIENTISTA

    O que incomodava ainda mais os fil�sofos da ci�ncia � que Kuhn n�o era fil�sofo, mas um reles f�sico. Nascido em Cincinnati, em 1922, ele estudou f�sica em Harvard, formando-se com distin��o em 1943. Ao deixar a faculdade, ele colaborou no esfor�o de guerra, trabalhando no desenvolvimento de radares. Voltou a Harvard no p�s-guerra para fazer seu doutorado -- de novo em F�sica --, conclu�do em 1949. Foi eleito para a Society of Fellows, a elite da universidade, e poderia ter continuado a trabalhar em f�sica qu�ntica at� o final de sua carreira se n�o tivesse sido encarregado de lecionar um curso sobre ci�ncias para estudantes de Humanas, como parte do curr�culo de educa��o cient�fica geral. Era uma ideia do reitor James Conant, que reformou a universidade e acreditava que todas as pessoas educadas precisavam saber alguma coisa sobre ci�ncia.

    O curso tinha por base o estudo de casos hist�ricos, e lecion�-lo for�ou Kuhn a estudar textos cient�ficos antigos detalhadamente pela primeira vez. (Os f�sicos de sua era, como os atuais, n�o ligavam muito para Hist�ria.) O encontro entre Kuhn e as obras cient�ficas de Arist�teles resultou em uma epifania que mudaria sua vida e sua carreira.

    "A quest�o que eu esperava responder", ele recordou mais tarde, "era o quanto Arist�teles sabia sobre Mec�nica e o quanto ele havia deixado para que pessoas como Galileu e Newton descobrissem. Dada essa formula��o, percebi rapidamente que Arist�teles praticamente n�o tinha conhecimentos sobre mec�nica... era a conclus�o-padr�o, e em princ�pio poderia estar correta. Mas me incomodei com isso porque, ao l�-lo, Arist�teles come�ou a me parecer n�o s� ignorante sobre mec�nica como um p�ssimo cientista f�sico em termos mais amplos. Quanto ao movimento, em particular, seus escritos me pareciam repletos de erros grosseiros, tanto de l�gica quanto de observa��o".

    ERRO CENTRAL

    O que Kuhn descobriu foi o erro central na interpreta��o whig da Hist�ria. Pelos padr�es da F�sica atual, Arist�teles parece idiota. E no entanto sabemos que ele n�o o era. A percep��o cintilante de Kuhn surgiu da s�bita compreens�o de que, se algu�m deseja compreender a ci�ncia aristot�lica, precisa conhecer a tradi��o intelectual sob a qual Arist�teles trabalhava. � preciso compreender, por exemplo, que para ele o termo "movimento" queria dizer mudan�a em geral -- n�o apenas a mudan�a de posi��o de um corpo f�sico, a defini��o que usamos atualmente. Ou, para usar termos mais gen�ricos, para compreender o desenvolvimento cient�fico � preciso compreender a estrutura intelectual sob a qual um cientista trabalha. Essa percep��o � o propulsor que aciona o grande livro de Kuhn.

    Ele continuou lecionando em Harvard at� 1956, mas, por n�o conseguir um posto como professor titular, se transferiu � Universidade da Calif�rnia em Berkeley, onde escreveu seu livro e conquistou uma c�tedra em 1961. No ano seguinte, o livro foi publicado pela University of Chicago Press. A primeira edi��o tinha 172 p�ginas, e Kuhn se referia a ela -- e em seu estilo caracter�stico de acad�mico da velha guarda -- como "um simples rascunho". Sem d�vida preferiria ter escrito um tijolo de 800 p�ginas.

    Mas o fato � que a legibilidade e a relativa brevidade de seu "rascunho" foram fatores cruciais para seu sucesso. Ainda que o livro tenha demorado a deslanchar, vendendo apenas 919 c�pias em 1962-63, pela metade de 1987 j� havia atingido as 650 mil c�pias; as vendas at� o momento chegam a 1,4 milh�o de exemplares. Para um trabalho cerebral desse quilate, s�o n�meros dignos de Harry Potter.

    AVAN�O POR FASES

    A proposi��o central de Kuhn � a de que um estudo cuidadoso da hist�ria da ci�ncia revela que o desenvolvimento em qualquer campo cient�fico acontece em uma s�rie de fases. A primeira ele definiu como "ci�ncia normal" -- o dia-a-dia da ci�ncia, se voc� preferir. Nessa fase, uma comunidade de pesquisadores que compartilha de uma estrutura intelectual comum -- definida como "paradigma" ou "matriz disciplinar" -- se envolve na solu��o de enigmas gerados por discrep�ncias (anomalias) entre o que o paradigma prev� e o que a observa��o ou experimento revela. Na maioria dos casos, as anomalias s�o resolvidas ou por altera��es graduais de paradigma ou pela constata��o de erros de observa��o ou nos experimentos. Como define o fil�sofo Ian Hacking em seu excelente pref�cio para a nova edi��o de "A Estrutura das Revolu��es Cient�ficas", "a ci�ncia normal n�o busca novidade, mas sim limpar o status quo. Tende a descobrir o que espera descobrir".

    O problema � que ao longo de per�odos mais longos, anomalias irresolvidas se acumulam e a situa��o chega a um ponto em que os cientistas se veem for�ados a come�ar a questionar o paradigma. Quando isso acontece, a disciplina entra em um per�odo de crise caracterizado, nas palavras de Kuhn, por "uma prolifera��o de articula��es convincentes, a disposi��o de tentar qualquer coisa, a express�o de descontentamento expl�cito, o recurso � filosofia e ao debate, de prefer�ncia aos fundamentos". No fim, a crise � resolvida por uma mudan�a revolucion�ria de vis�o do mundo durante a qual o paradigma deficiente � substitu�do por um novo. � a mudan�a de paradigma que se tornou clich� de express�o moderno, e, depois que ela acontece, o campo cient�fico retorna uma vez mais � ci�ncia normal, mas com base em uma nova estrutura. E o ciclo recome�a.

    Esse sum�rio bruto do processo revolucion�rio n�o faz justi�a � complexidade e sutileza do pensamento de Kuhn. Para apreci�-las, � preciso ler o livro. Mas talvez indique por que a obra causou tamanho impacto sobre os fil�sofos e historiadores que haviam formado a interpreta��o whig do progresso cient�fico.

    TEORIA DA REFUTA��O

    Como ilustra��o, veja o retrato de Kuhn sobre a ci�ncia "normal". O fil�sofo da ci�ncia mais influente em 1962 era Karl Popper, descrito por Hacking como "o mais lido, e em certa medida crido, pelos cientistas praticantes". Popper resumia a ess�ncia do "m�todo cient�fico" no t�tulo de um de seus livros, "Conjecturas e Refuta��es". De acordo com ele, cientistas reais (em oposi��o a, digamos, psicanalistas) eram distingu�veis pelo fato de que tentavam refutar, e n�o confirmar, suas teorias. Mas a vers�o de Kuhn sugeria que a �ltima coisa que os cientistas normais querem fazer � refutar as teorias incorporadas ao seu paradigma.

    Muita gente tamb�m se irritou com a descri��o da maior parte das atividades cient�ficas por Kuhn como "solu��o de enigmas" -- como se os mais s�rios esfor�os de busca de conhecimento pela humanidade fossem equivalentes a resolver as palavras cruzadas do "Times". Mas esses cr�ticos na verdade estavam sendo exageradamente sens�veis. Um enigma � algo para o que existe uma solu��o. Isso n�o significa que encontr�-la � f�cil ou que n�o exigir� grande engenhosidade e esfor�o prolongado. A busca absurdamente dispendiosa pelo b�son de Higgs, que recentemente atingiu resultados positivos no Cern, serve como exemplo primordial de solu��o de enigmas, porque a exist�ncia da part�cula foi prevista pelo paradigma vigente, o chamado "modelo padr�o" da f�sica de part�culas.

    Mas o que realmente incomodou os fil�sofos foi uma implica��o do relato de Kuhn quanto ao processo de mudan�a de paradigma. Ele argumentou que os paradigmas concorrentes eram "incomensur�veis", ou seja, que n�o existia maneira objetiva de avaliar seus m�ritos relativos. N�o existe, por exemplo, uma maneira de testar os m�ritos comparativos da mec�nica newtoniana (que se aplica a planetas e bolas de bilhar, mas n�o ao que acontece dentro do �tomo) e da mec�nica qu�ntica (que trata do que acontece em n�vel subat�mico). Mas se os paradigmas rivais forem de fato incomensur�veis, ser� que isso n�o implicaria que as revolu��es cient�ficas, ao menos em parte, t�m bases irracionais? E se for esse o caso, as mudan�as de paradigmas que celebramos como grandes avan�os intelectuais n�o seriam apenas uma manifesta��o de surtos de psicologia de rebanho?

    SUBCULTURA DA CI�NCIA

    O livro de Kuhn gerou toda uma ind�stria de coment�rios, interpreta��es e exegeses. Sua �nfase na import�ncia de comunidades de cientistas agrupadas em torno de um paradigma compartilhado deu origem a uma nova disciplina acad�mica -- a sociologia da ci�ncia, na qual os pesquisadores passaram a examinar disciplinas cient�ficas mais ou menos como antrop�logos examinam tribos ex�ticas, e a para a qual a ci�ncia n�o � um produto sagrado e intoc�vel do Iluminismo, mas s� mais uma subcultura.

    Quanto � sua grande ideia -- a de um "paradigma" como estrutura intelectual que torna a pesquisa poss�vel --, bem, ela rapidamente escapou da reserva e ganhou vida pr�pria. Charlat�es, marqueteiros e professores de administra��o de empresas a adotaram como forma de explicar a necessidade de mudan�as radicais na vis�o de mundo de seus clientes. E os cientistas sociais viram a ado��o do paradigma como uma rota para a respeitabilidade e as verbas de pesquisa, o que por sua vez resultou na emerg�ncia de paradigmas patol�gicos em �reas como a Economia, sob os quais o dom�nio da matem�tica era visto como mais importante do que saber de que maneira um banco realmente trabalha, e todos precisamos arcar com as consequ�ncias disso, agora.

    A ideia mais intrigante, por�m, � a de usar o pensamento de Kuhn para interpretar sua realiza��o. Ao seu modo discreto, ele causou uma revolu��o conceitual ao criar uma mudan�a em nossa compreens�o da ci�ncia, do paradigma whig para o paradigma de Kuhn, e boa parte daquilo que hoje � feito na hist�ria e filosofia da ci�ncia pode ser encarado como ci�ncia "normal" sob o novo paradigma. Mas as anomalias j� come�am a se acumular. Kuhn, como Popper, acreditava que a ci�ncia girasse principalmente em torno de teorias, mas uma vanguarda cient�fica cada vez mais forte usa pesquisas baseadas n�o em teorias, mas em dados. E embora a F�sica fosse indubitavelmente a rainha das ci�ncias quando "A Estrutura das Revolu��es Cient�ficas" foi escrito, esse papel agora foi assumido pela gen�tica molecular e pela biotecnologia. Ser� que a an�lise de Kuhn se aplica a essas novas �reas cient�ficas? E, se n�o, ser� que � hora de uma mudan�a de paradigma?

    Enquanto isso, se voc� est� compilando uma lista de livros que precisa ler antes de morrer, a obra-prima de Kuhn deveria constar dela.

    Tradu��o de Paulo Migliacci.

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