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    Freud n�o foi mis�gino, diz Elizabeth Roudinesco, autora de nova biografia

    BETTY MILAN
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    09/03/2016 02h03

    Divulga��o
    Freud
    Sigmund Freud, criador da psican�lise

    Elisabeth Roudinesco, 71, historiadora da psican�lise e psicanalista francesa, � professora na �cole Pratique des Hautes �tudes em Paris. Colaboradora do do jornal "Le Monde", j� publicou diversas obras, como "A Fam�lia em Desordem" e "Dicion�rio de Psican�lise". Seu �ltimo trabalho � a biografia "Sigmund Freud - em Seu Tempo e no Nosso", que ser� lan�ada no Brasil pela Zahar em agosto.

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    Folha- Por que uma biografia de Freud?
    Elizabeth Roudinesco - N�o existia biografia s�ria de Freud desde a de Peter Gay, de 1988. Arquivos novos foram abertos em Washington, e eu achava necess�ria uma abordagem de Freud diferente da que os historiadores americanos fizeram.

    Voc� ficou muito tempo em Washington?
    Uma semana. Quando a gente vai a Washington consultar os arquivos de Freud, precisa saber o que procurar. Se n�o, fica meses l�. Estamos numa �poca em que imperam a rejei��o de Freud, os rumores, a sexualidade dele, sua vida dita escandalosa. Queria avaliar o que � verdade e o que n�o �.

    Qual o papel da escrita na obra de Freud e na difus�o dela?
    Freud escrevia magnificamente, mas n�s esquecemos isso, por causa das m�s tradu��es. Por outro lado, atribu�ram a ele um apego aos conceitos que at� existe, mas esqueceram que, ao contr�rio de Lacan, cuja escrita � complexa, Freud escrevia de maneira muito simples. Trata-se de um literato.

    Voc� o apresenta como um ser da luz e da sombra. A originalidade da obra de Freud est� ligada a esse car�ter paradoxal?
    No livro, falo de todas as luzes, as alem�s, as francesas e, depois, as luzes sombrias. Ao contr�rio dos pensadores reacion�rios, para os quais o homem � horr�vel e � preciso reprimir os maus instintos, Freud considera que � preciso sublim�-los e que a lei e a civiliza��o t�m papel importante na maneira de controlar as puls�es. Ele � tamb�m um homem da belle �poque, acredita que a felicidade seria novamente poss�vel na Terra.

    E a rela��o de Freud com os sonhos?
    Tratados de neurologia sobre os sonhos existem desde a Antiguidade. Freud n�o inventou que os sonhos t�m uma significa��o, n�o inventou nada de particular, mas, de repente, ele os interpreta de outra forma. A novidade � essa. Sobre a sexualidade, a mesma coisa. Ele n�o � preditivo, n�o � como o adivinho Artemidoro, n�o � como os tratados de neurologia... �, de sa�da, uma interpreta��o.

    E o livro "A Interpreta��o dos Sonhos" [de 1900]?
    Trata-se de uma formid�vel ego-hist�ria. � um poema inspirado em Dante e Virg�lio. Freud se debru�a sobre a pr�pria hist�ria e sobre a hist�ria da humanidade. Foi nessa �poca que ele teve uma ideia genial: a de que somos �dipo e Hamlet, os dois piv�s da trag�dia ocidental. �dipo, o inconsciente, que faz e fala por n�s; Hamlet, a consci�ncia culpada. Freud diz: "(...) todos os doentes que eu trato, os neur�ticos, s�o �dipo e Hamlet". Para um neur�tico comum, era �timo se tornar �dipo, porque ele se inseria numa hist�ria. Se humanizava. Freud apaga progressivamente a clivagem entre os neur�ticos e o terapeuta, entre a raz�o e a loucura. Depois, essa fronteira � restabelecida, mas a ideia de uma continuidade existe. Isso � importante.

    E os casos descritos por ele em suas obras?
    Acho que n�o devemos mais abordar a hist�ria dos casos como fic��o. N�s, hoje, conhecemos a grande diferen�a entre a escrita deles e a hist�ria pessoal desses pacientes, os fracassos Freud lhes d� uma exist�ncia, mas n�o tenho certeza de que ele chegasse a curar no sentido da medicina.

    Mas a quest�o n�o era essa.
    Isso vai ser descoberto progressivamente. Freud quer curar, mas, a partir de 1914, de "A Introdu��o ao Narcisismo", se d� conta de que certas pessoas n�o querem se curar. Ele fala ent�o das patologias do narcisismo, do masoquismo e introduz a no��o de puls�o de morte. Importante entender essa cl�nica. Ele fez o poss�vel, queria muito ajudar.

    H� quem diga que Freud � mis�gino. O que voc� acha?
    Acho que tudo o que se diz a respeito disso � anacronismo ou inexatid�o. Devemos nos livrar desse anacronismo e nos perguntar: na sua �poca, Freud era ou n�o mis�gino? A resposta � n�o.

    Mas o que, na obra dele, fez pensar em misoginia?
    Sua teoria da sexualidade feminina. Disseram que ela era mis�gina. Anacronismo. Freud considera que a mulher tem uma reivindica��o f�lica e que o clit�ris � seu �rg�o er�til. Trata-se de uma teoria completamente falsa. O pressuposto da teoria de Freud sobre a sexualidade feminina � que n�o existe natureza feminina. Os kleinianos [seguidores da psicanalista Melanie Klein], as psicanalistas mulheres se op�em a essa teoria, dizendo que existem dois sexos e que o clit�ris n�o � um pequeno p�nis. Mas Freud n�o se enganou sobre tudo.

    Como assim?
    O modelo de Freud � paternocentrista, mas ele tem uma concep��o da ci�ncia segundo a qual � a experi�ncia que decide. Penso que � a mesma coisa com a homossexualidade. Ele n�o podia imaginar que os homossexuais sa�ssem do registro da pervers�o, mas Freud era a favor da despenaliza��o, o que � importante na �poca. Como se pode pensar que Freud imaginaria o casamento de homossexuais e a educa��o de crian�as por eles? A �nica coisa que podemos dizer � que, quando a filha de Freud quis viver com uma mulher e educar crian�as, ele n�o se op�s. Disse que seria uma fam�lia a mais.

    BETTY MILAN � escritora e psicanalista, autora de "Carta ao Filho" (ed. Record)

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