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    Em carta, M�rio de Andrade cita sua 't�o falada' homossexualidade

    LUIZA FRANCO
    DO RIO
    RAQUEL COZER
    COLUNISTA DA FOLHA

    18/06/2015 11h55

    Um dos maiores mist�rios sobre M�rio de Andrade, uma carta a Manuel Bandeira at� agora vetada a pesquisadores, foi revelado nesta quinta (18), ajudando a esclarecer um aspecto pouco conhecido, mas muito debatido, da vida do escritor paulistano.

    Em trecho in�dito da carta, datada de 7 de abril de 1928, M�rio (1893-1945) trata, como se imaginava, da sua "t�o falada (pelos outros) homossexualidade". Com sua eleg�ncia habitual, discri��o e cautela, admite ao amigo sua orienta��o sexual.

    O conte�do completo do documento foi liberado na quinta (18) pela Funda��o Casa de Rui Barbosa, no Rio, por determina��o da Controladoria-Geral da Rep�blica (CGU).

    Um dos trechos revelados nesta quinta diz, na sintaxe particular do autor de "Paulic�ia Desvairada", o homenageado deste ano na Flip:

    "Si agora toco neste assunto em que me porto com absoluta e elegante discri��o social, t�o absoluta que sou incapaz de convidar um companheiro daqui a sair sozinho comigo na rua [...] e si saio com algu�m � porque esse algu�m me convida, si toco no assunto, � porque se poderia tirar dele um argumento para explicar minhas amizades plat�nicas, s� minhas."

    EDI��ES

    No arquivo da Casa de Rui desde 1978, o documento foi originalmente publicado pelo pr�prio Bandeira, em 1958, sem alguns par�grafos e sem o aviso de que fora editado.

    Assim permaneceu no volume "Correspond�ncia M�rio de Andrade & Manuel Bandeira" (Edsup/IEB), organizado por Marcos Antonio de Moraes em 2000, embora este tenha inclu�do outros trechos e cartas ent�o in�ditos.

    O trecho aberto agora vem logo depois da seguinte frase, que j� fora publicada: "Est� claro que eu nunca falei a voc� sobre o que se fala de mim e n�o desminto". A jun��o dos trechos permite afirmar que M�rio assumiu para o amigo sua homossexualidade.

    "A famosa carta proibida de M�rio de Andrade saiu do arm�rio - e isso n�o muda nada na imagem dele e na sua obra. Mas finalmente p�e fim �s murmura��es em torno de uma quest�o que a pudic�cia e a repress�o s� fizeram hipertrofiar", diz o bi�grafo Humberto Werneck.

    "Ele admitiu sem admitir diretamente. acho que agora todo mundo est� satisfeito e vai come�ar a falar da obra dele", diz Jason T�rcio, que finaliza uma biografia sobre o modernista e que diz manter sua tese da bissexualidade, j� que M�rio tamb�m se dizia atra�do por mulheres –teve, por exemplo, uma paix�o plat�nica por Tarsila do Amaral.

    O tema da sexualidade do modernista foi tratado pela primeira vez por Moacir Werneck de Castro, que conviveu com o autor de "Macuna�ma" e abordou a quest�o no livro "M�rio de Andrade - Ex�lio no Rio" (1989).

    Castro partia das an�lises liter�rias de Jo�o Luiz Lafet� (em "Figura��o da Intimidade - Imagens na Poesia de M�rio de Andrade) e da correspond�ncia ent�o conhecida do escritor para concluir que "na raiz do drama existencial de M�rio de Andrade jaz a ang�stia da sexualidade reprimida e transformada em difusa pansexualidade".

    �NICA

    Esta era a �nica das 15 cartas de M�rio a Bandeira no acervo da Casa de Rui que permanecia inacess�vel. As outras foram abertas em 1995, respeitando o prazo, estipulado pelo modernista, de 50 anos de sua morte.

    Na carta, M�rio lamenta o "rid�culo dos socializadores da minha vida particular", o que explica a motiva��o de Bandeira ao editar o texto –os trechos omitidos est�o riscados com caneta vermelha, n�o se sabe por quem.

    Em outro trecho, anterior ao desabafo sobre a sexualidade, um certo "X" era citado em frases como "X n�o � meu amigo, fique sabendo. Eu � que sou amigo dele."

    Sabe-se agora que se tratava de Oswald de Andrade, ou "Osvaldo", que um ano depois seria desafeto de M�rio –inclusive fazendo tro�a de sua sexualidade.

    Em resposta a M�rio, Bandeira escreve, com um m�s de atraso: "Fique tranquilo: a sua carta perigosa chegou".

    Os maiores conhecedores do acervo de M�rio, como Tel� Ancona Lopez, que organizou o arquivo do modernista no IEB (Instituto de Estudos Brasileiros da USP), sempre desconversaram sobre o tema. Na quinta (18), Tel� disse � Folha: "N�o posso comentar o que n�o li".

    ACESSO

    A decis�o de manter a carta reservada na Casa de Rui foi de Pl�nio Doyle (1906-2000), criador do arquivo liter�rio da institui��o.

    No m�s passado, o engenheiro Carlos Augusto de Andrade Camargo, sobrinho de M�rio, disse n�o ver raz�o para a carta ser liberada. Nesta quinta, ele n�o foi localizado.

    A carta veio � tona por determina��o da Controladoria-Geral da Uni�o, atendendo a pedido, via Lei de Acesso � Informa��o, do jornalista Marcelo Bortoloti, da revista "�poca", em fevereiro.

    Nas semanas que se seguiram ao pedido, a Casa de Rui negou o pedido e dois recursos, sob o argumento de seguir "o que recomenda a Lei 12.527 de 18/11/2011, quanto ao "respeito � intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como �s liberdades e garantias individuais".

    Quando o caso foi parar na CGU, em mar�o, a institui��o passou a usar o argumento de que os direitos autorais das cartas de M�rio est�o protegidos at� janeiro do ano que vem, j� que a morte dele completou 70 anos neste ano.

    A CGU entendeu, no entanto, que a vig�ncia dos direitos autorais n�o poderia impedir "a mera consulta dos documentos" por pesquisadores. Determinou em maio a libera��o do documento, mas a Casa de Rui ainda tentou mais um recurso, anexando � sua argumenta��o uma carta do sobrinho de M�rio.

    No �ltimo dia 9 –por coincid�ncia, um dia antes de o Supremo Tribunal Federal liberar as biografias n�o autorizadas–, a CGU manteve a decis�o de liberar a carta.

    Ainda assim, a Casa de Rui resistiu at� a segunda pela manh�. No meio do dia, a institui��o anunciou que liberaria a carta nesta quinta. O caso chegou at� o Minist�rio da Cultura, embora a pasta tenha enviado nota desmentindo a informa��o de que Juca Ferreira tivesse pessoalmente interferido na decis�o.

    Folha, o atual diretor do arquivo da Casa de Rui, Ricardo Calmon, disse que a repentina mudan�a de posicionamento decorreu do reconhecimento do "prazo original de 50 anos de reserva como o prazo oficial, uma vez que foi definido no momento da doa��o". Esse prazo original, no entanto, j� tinha sido apontado no primeiro recurso feito via Lei de Acesso � Informa��o, em fevereiro.

    VEJA A �NTEGRA DO TRECHO IN�DITO

    Est� claro que eu nunca falei a voc� sobre o que se fala de mim e n�o desminto. Mas em que podia ajuntar em grandeza ou milhoria para n�s ambos, para voc�, ou para mim, comentarmos e eu elucidar voc� sobre minha t�o falada (pelos outros) homossexualidade? Em nada. Valia de alguma coisa eu mostrar um muito de exagero que h� nessas cont�nuas conversas sociais n�o adiantava nada pra voc� que n�o � indiv�duo de intrigas sociais.

    Pra voc� me defender dos outros, n�o adiantava nada pra mim, porque em toda a vida tem duas vidas, a social e a particular, na particular isso s� me interessa a mim e na social voc� n�o conseguia evitar a socialis�o absolutamente desprez�vel de uma verdade inicial.

    Quanto a mim pessoalmente, num caso t�o decisivo para a minha vida particular como isso �, creio que voc� est� seguro que um indiv�duo estudioso e observador como eu, ha-de estar bem inteirado do assunto, ha-de t�-lo bem catalogado e especificado. Ha-de ter tudo normalisado em si, si � que posso me servir de "normalisar" neste caso. Tanto mais Manu, que o rid�culo dos socializadores da minha vida particular � enorme. Note as incongru�ncias e contradi��es em que caem: o caso de "Maria" n�o � t�pico? Me d�o todos os v�cios que por ignor�ncia ou interesse de intriga s�o por eles considerados rid�culos e no entanto assim que fiz de uma realidade penosa a "Maria", n�o teve nenhum que ca�oasse falando que aquilo era idealiza��o para desencaminhar os que me acreditam nem sei o qu�, mas todos falaram que era fulana de tal.

    Mas si agora toco neste assunto em que me porto com absoluta e elegante discri��o social, t�o absoluta que sou incapaz de convidar um companheiro daqui a sair sozinho comigo na rua (veja como tenho minha vida mais regulada que m�quina de precis�o) e se saio com algu�m � porque esse algu�m me convida. Si toco no assunto, � porque se poderia tirar dele um argumento para explicar minhas amizades plat�nicas, s� minhas.

    Ah, Manu, disso s� eu mesmo posso falar. E me deixe que ao menos para voc�, com quem apesar das delicadezas da nossa amizade, sou de uma sinceridade absoluta, me deixe afirmar que n�o tenho nenhum sequestro n�o. Os sequestros num caso como este, onde o f�sico que � burro e nunca se esconde entra em linha de conta como argumento decisivo, os sequestros s�o imposs�veis.

    Eis a� os pensamentos jogados no papel sem conclus�o nem consequ�ncia. Fa�a deles o que quiser.

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