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    Vladimir Safatle

    Quem protege as crian�as dos protetores?

    24/11/2017 02h00

    Marcelo Cipis/Editoria de Arte/Folhapress
    SAO PAULO SP BRASIL 26.10.2017 - A Folha promove o primeiro forum Saude da Pele que discute os novos tratamentos na area e o acesso a procedimentos e remedios no SUS e nos planos de saude. O debate, patrocinado pela SBD Sociedade Brasileira de Dermatologia acontece no Rooftop 5 Centro de Convencoes, no Complexo Acha Cultural,rua Corope, 88, Pinheiros MESA 3 Planos de saude, Governo e acesso ao tratamento ESQ P DIR Sandro Jose Martins responsavel pela coordenacao deAtencao as Pessoas com Doencas Cronicas do ministerio da Saude Raquel Medeiros Lisboa, gerente-geral de Regulacao Assistencial da ANS Agencia Nacional de Saude Suplementar Gladis Lima, presidente da Psoriase Brasil Uniao das Associacoes de Portadores de Psoriase do Brasil Claudia Maia, dermatologista da Comissao de Etica e Defesa Profissional da SBD Everton Lopes FSP mediador Foto Reinaldo Canato / Folhapress

    H� algo de sintom�tico no uso estrat�gico do tema da "prote��o da inf�ncia" no interior do embate pol�tico brasileiro recente. N�o foram poucas as a��es feitas tendo vista a pretensa necessidade de proteger as crian�as da sexualidade presente na vida social.

    De onde se seguem mobiliza��es de toda natureza visando preservar a inf�ncia, como se os contatos com a sexualidade fossem imediatamente convites ao abuso, � redu��o do outro � condi��o de mero objeto. Como se a sexualidade fosse irremediavelmente ligada � viol�ncia e a formas de desrespeito social.

    Mas poder�amos nos perguntar se �, de fato, desej�vel proteger as crian�as; n�o seria melhor, ao contr�rio, proteger as crian�as de seus pretensos protetores?

    Pois notemos, inicialmente, como a transforma��o da inf�ncia em um espa�o livre da sexualidade � simplesmente imposs�vel e profundamente indesej�vel.

    As sociedades disciplinam desejos, definem padr�es sexuais de conduta desde a mais tenra idade. Basta nascer para estar exposto � sexualidade do outro, �s suas fantasias e narrativas. A voz da m�e, o olhar do pai, o toque dos irm�o j� est�o carregados de sexualidade.

    Mas n�o estamos expostos apenas ao outro mais pr�ximo, como os membros da fam�lia, Estamos expostos tamb�m ao Outro como sistema social de normas. Normas sociais, institui��es das mais variadas formas, como igreja, escola, fam�lia, empresa, f�brica, campo: todas lidam com a tentativa de disciplinar o que h� de mais indeterminado e m�vel em n�s, a saber, nosso v�nculo afetivo e corporal com outros.

    Esse sempre foi o real problema com a dimens�o do sexual: ela n�o tem forma clara, n�o tem limites definidos, colocando-nos sempre diante de algo que parece for�ar nossas identidades em outras dire��es.

    Por isto, podemos dizer que aqueles que querem proteger crian�as est�o, normalmente, � procura de constituir uma hegemonia que se passa por lei da natureza. Eles querem continuar a ditar, para nossas crian�as, o que sexualidade deve ser e como ela deve ser vivida, impedindo que essas mesmas crian�as desenvolvam a capacidade de lidar e responder � complexidade que as experi�ncia sexuais produzem.

    Estes que querem proteger crian�as sempre as "protegeram", o que n�o as impediu de produzir as mais diversas neuroses e formas de sofrimentos. O tema do abuso �, ao menos neste contexto, apenas um pretexto para tentar defender-se contra a circula��o da sexualidade.

    N�o se trata de ignorar o n�mero brutal de abusos sexuais contra menores, assim como a necessidade de lutar contra eles, mas simplesmente de lembrar que n�o se combate abusos e viol�ncias retirando a sexualidade da esfera p�blica e social.

    Combate-se, primeiro, levando pessoas a verem que abusos e viol�ncia nada tem a ver com a afirma��o da sexualidade, pois se tratam de fen�menos de ordem completamente diferente. Desejo e brutalidade n�o andam juntos, assim como tamb�m n�o andam juntos desejo e posse (o que, em uma sociedade como a nossa, parece contraintuitivo, e isso talvez seja o que h� de mais urgente a ser modificado). Essa distin��o � importante para levar pessoas a se colocarem mais claramente contra a viol�ncia coercitiva.

    Segundo, combate-se o abuso levando pessoas a conseguirem lidar com a despossess�o e a desapropria��o de si que as rela��es sexuais muitas vezes provocam, ou seja, levando-as a n�o compreenderem toda despossess�o como um abuso.

    Sempre haver� uma dimens�o desreguladora e confusa nas rela��es de desejo e melhor seria se estiv�ssemos conscientes disso. Como dizia Freud, melhor ensinar �s crian�as n�o nossos pretensos ideais, mas os car�teres contradit�rios e complexos da experi�ncia social, permitindo-as desenvolver modalidades singulares de formas de a��o e respostas a tais complexidades.

    Nesse sentido, seria melhor uma sociedade na qual as crian�as n�o est�o "protegidas", mas onde elas t�m a possibilidade de desenvolver capacidades singulares para lidar com o que, verdade seja dita, ningu�m sabe como lidar, j� que n�o somos n�s que lidamos com a sexualidade. Talvez seja melhor dizer: � a sexualidade que lida conosco, e muitas vezes sem que n�s sequer saibamos.

    vladimir safatle

    � professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de S�o Paulo). Escreve �s sextas.

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