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    Vladimir Safatle

    Dois dias, uma noite

    17/02/2015 02h00

    Em 1999, os cineastas belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne passaram a ser mundialmente conhecidos devido � Palma de Ouro dada a seu impressionante filme "Rosetta". No limiar do in�cio do s�culo 21, eles haviam conseguido um feito maior do que ganhar um dos mais importantes pr�mios do cinema mundial. Eles haviam inventado, uma vez mais, o cinema de den�ncia social.

    "Inventar uma vez mais" porque o cinema do s�culo 21 n�o seria, nem saberia como ser, o cinema de den�ncia do s�culo 20. Em uma situa��o hist�rica na qual as vidas prec�rias entravam em uma era de flexibiliza��o na qual n�o haveria partidos, sindicatos ou associa��es para dar visibilidade a seus sofrimentos, o cinema recuperava uma de suas fun��es centrais: construir perspectivas "imposs�veis".

    O cinema sempre foi quest�o de construir perspectivas que parecem socialmente imposs�veis por pressupor um olhar que normalmente n�o conseguimos ter. Da� porque mais de um cr�tico nos lembrou como o cinema inventou um olhar que n�o t�nhamos, nos fez enxergar o que at� ent�o era "impercebido". Esta inven��o �, no entanto, sua cria��o pol�tica mais importante.

    De fato, foi a partir dela que os irm�os Dardenne produziram uma filmografia impressionante, que se acresce agora de "Dois dias, uma noite", em cartaz nos cinemas brasileiros. Neste filme de rara for�a, somos obrigados a seguir os passos de uma oper�ria que luta por conservar seu emprego. � sexta-feira e ela recebe uma liga��o que lhe informa que sua empresa convocara os outros funcion�rios a fim de exigir que eles escolhessem entre demiti-la ou ganhar um b�nus de 1.000 euros. Por 14 a 2, ela foi demitida. Na segunda-feira, a vota��o ser� refeita, o que lhe d� dois dias e uma noite para tentar reverter a situa��o.

    Impulsionada por seu marido, quebrada pela humilha��o, ela bate � porta de cada um dos seus colegas de trabalho. Entramos assim no tempo angustiante da expectativa e do encontro, na repeti��o de gestos que denuncia a vulnerabilidade, vemos a tristeza de seu corpo abatido a procura desesperada de for�as para sobreviver ao sentimento de impot�ncia. Desvela-se assim uma perspectiva que nunca vemos, que aprendemos a n�o perceber, na qual � poss�vel sentir, em toda sua brutalidade muda, a experi�ncia individual do sofrimento social produzido pela destrui��o da solidariedade de classe no mundo do trabalho. Na verdade, todo nosso sistema econ�mico � constru�do sob o sil�ncio de tal perspectiva.

    Por isto, ao final de sua saga, a oper�ria descobrir� como toda sujei��o come�a pela destrui��o de la�os de defesa comum. Seus afetos mudaram. Depois disto, a pol�tica pode come�ar.

    vladimir safatle

    � professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de S�o Paulo). Escreve �s sextas.

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