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    Marcelo Gleiser

    A mente humana permanece um mist�rio

    03/12/2017 02h02

    Getty Images

    Recentemente, a psic�loga americana Tania Lombroso, pesquisadora da Universidade da Calif�rnia em Berkeley, publicou um estudo com sua aluna de doutorado Sara Gottlieb no qual perguntaram a um grupo de pessoas se a ci�ncia ser�, um dia, capaz de explicar a mente humana.

    O estudo indagou "se seria poss�vel que a ci�ncia explicasse um dia v�rios aspectos da mente humana, da percep��o visual � perda de mem�ria e o amor". Em m�dia, o estudo mostrou, as pessoas julgam que certos tipos de fen�menos mentais, como a percep��o visual ou o tato, "s�o bem mais trat�veis por uma metodologia cient�fica do que outros, como sentir orgulho ou amor � primeira vista".

    De acordo com os participantes, a linha divis�ria entre o que a ci�ncia pode ou n�o explicar � definida pela no��o de que certos fen�menos mentais, como a devo��o religiosa ou a tomada de decis�es complexas, requerem um n�vel maior de introspec��o e subjetividade, caracter�sticas que nos separam de outros animais capazes de uma percep��o sensorial do mundo e at� algum n�vel de emotividade. Ou seja, as caracter�sticas mentais que nos definem como humanos s�o as que dificultam a miss�o da ci�ncia.

    "Esses achados n�o nos dizem o que a ci�ncia pode ou n�o explicar", escreveu Lombroso, "mas o que as pessoas acreditam que a ci�ncia possa ou n�o explicar". O estudo, portanto, aponta para a seguinte quest�o: "O que as pessoas acham que explica a mente humana, se n�o a ci�ncia?"

    Esse � um ponto essencial, que merece maior escrut�nio. Talvez o problema comece com o uso da palavra "explicar". Ser� que a mente humana � explic�vel?

    Trata-se de um problema antigo. J� em 1848, o grande f�sico ingl�s John Tyndall discursou sobre essa quest�o, numa apresenta��o para a Se��o de F�sica da Associa��o Brit�nica para o Avan�o da Ci�ncia (Traduzo o texto com coment�rios maiores em meu livro A Ilha do Conhecimento

    "A passagem da f�sica do c�rebro aos fatos da consci�ncia � impens�vel. Certamente, um pensamento e uma correspondente a��o molecular ocorrem simultaneamente. Mas n�o temos um �rg�o intelectual, ou mesmo qualquer tra�o deste �rg�o, que nos permite passar de um processo ao outro. As duas a��es aparecem juntas e n�o sabemos porque. Mesmo se nossas mentes e sentidos fossem expandidos e fortalecidos de modo a permitir que v�ssemos e sent�ssemos os detalhes das mol�culas em a��o no c�rebro, se pud�ssemos seguir seus movimentos e agrupamentos, suas descargas el�tricas, e se, ao mesmo tempo, tiv�ssemos um conhecimento �ntimo dos estados de pensamento e emo��o correspondentes � essas a��es, ainda assim n�o ter�amos avan�ado na solu��o do problema. Como que esses processos f�sicos s�o conectados com o funcionamento da mente consciente? O abismo entre as duas classes de fen�menos continuaria sendo intelectualmente intranspon�vel."

    Em outras palavras, podemos identificar a atividade fisiol�gica que corresponde a uma emo��o qualquer, localizando-a em uma ou mais �reas do c�rebro. Podemos identificar os neur�nios em a��o, e at� mesmo as mol�culas que fluem de um ponto a outro quando sentimos a emo��o. Mas esse tipo de descri��o cient�fica dos fen�menos em torno de uma emo��o n�o ilumina a emo��o propriamente dita. Algo fica faltando, um lapso na argumenta��o que n�o � capaz de conectar os fen�menos f�sico-qu�micos com a experi�ncia inef�vel da emo��o em si.

    E n�o precisa ser algo t�o complexo quanto o amor ou a experi�ncia religiosa. Chutar uma pedra tamb�m funciona, j� que � poss�vel localizar as regi�es do c�rebro associadas com a dor, mas n�o como a a��o desses neur�nios espec�ficos faz com que possamos sentir dor ou, em certos casos, ter l�grimas nos olhos. (O mesmo vale para membros fantasmas.)

    Isso � o que fil�sofos como David Chalmers e Colin McGuinn chamam do Problema Dif�cil da Consci�ncia.
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    Um dos obst�culos que encontramos ao aplicar a metodologia cient�fica convencional ao problema da mente � que emo��es s�o dif�ceis de objetificar, ou seja, de isolar "do resto". Quando chutamos uma pedra, n�o � apenas o c�rebro que est� envolvido: a dor � uma experi�ncia que une corpo e mente de forma insepar�vel, iniciada no ponto de contato, capaz de fazer nossos olhos lacrimejarem, mas que � orquestrada no c�rebro.

    O amor � semelhante. Podemos sentir a emo��o dele no corpo, os horm�nios acelerando o cora��o e o corpo exalando ferom�nios. Mas amar algu�m � algo que transcende uma descri��o hormonal. Existe tanto uma dimens�o fisiol�gica ligada � experi�ncia do amor quanto algo �nico, pessoal e subjetivo, algo que n�o conseguimos objetificar. E o que a ci�ncia n�o consegue objetificar, tem problema em descrever.

    O estudo, e o eloquente discurso de Tyndall, expressam a intui��o de que uma abordagem estritamente reducionista deixa de capturar algo de essencial. N�o � que a ci�ncia jamais conseguir� explicar a mente humana, ou que o problema vem de n�o podemos sair de nossas mentes para podermos contempl�-las objetivamente. O problema � que uma abordagem de causa e efeito localizada, de neur�nios espec�ficos conectados por liga��es sin�pticas com seus vizinhos, n�o captura a complexidade multidimensional do que acontece. E mesmo com ela, a passagem do fen�meno � emo��o continua misteriosa.

    Temos ainda enorme dificuldade em qualificar como a f�sico-qu�mica que ocorre no n�vel neuronal se transforma numa emo��o espec�fica. Talvez seja poss�vel algum progresso se, um dia, formos capazes de criar m�quinas com um n�vel rudimentar de autoconsci�ncia, cujo comportamento n�o se limite a seguir instru��es num programa, como os computadores atuais. Se pud�ssemos observar a emerg�ncia dessas mentes no ato, talvez aprend�ssemos alguma coisa sobre as nossas.

    Mas estamos ainda longe de inventar esse tipo de m�quina. Continuamos, tal como Tyndall e seus colegas vitorianos, profundamente ignorantes sobre como ocorre a passagem da f�sica do c�rebro aos fatos da consci�ncia.

    marcelo gleiser

    Horizontes

    marcelo gleiser

    Professor de f�sica, astronomia e hist�ria natural no Dartmouth College (EUA). Ganhou dois pr�mios Jabuti; autor de 'A Simples Beleza do Inesperado'. Escreve aos domingos, semanalmente

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