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Colunistas
Friday, 18-Oct-2024 21:31:20 -03Jo�o Pereira Coutinho
Se a arte n�o desculpa o crime, o crime n�o inculpa a arte
14/11/2017 02h00
Acabo de assistir ao �ltimo longa de Noah Baumbach, "The Meyerowitz Stories (New and Selected)", na Netflix. O filme vale pelo roteiro, pelos atores, pela intelig�ncia diletante de Baumbach.
Mas vale, sobretudo, pelo papel de Dustin Hoffman como o patriarca da fam�lia —Harold, um escultor egoc�ntrico, temperamental, pedante, arrogante, amoral (a lista n�o tem fim).
Terminei o filme levitando —e depois, de regresso � realidade, descubro: duas atrizes acusam Dustin Hoffman de ass�dio sexual.
Pergunto: ser� que a conduta do cidad�o Dustin afeta o g�nio do ator Hoffman?
A minha resposta � negativa —e concordo com a posi��o de H�lio Schwartsman nesta Folha. "Pessoas ruins podem fazer coisas boas", escreve o colunista com a sua habitual lucidez. E eu gostaria de sublinhar a palavra "coisas".
N�o � preciso subirmos aos patamares metaf�sicos da arte para comprovarmos a divis�o das �guas. Eu tamb�m seria capaz de comprar uma cadeira bela a um carpinteiro eticamente grotesco.
Admito que possam existir limites. Para citar um caso amplamente glosado, ser� poss�vel elogiar a arquitetura das c�maras de g�s de Auschwitz?
N�o creio. � como se a mem�ria da trag�dia materializada naquela constru��o impedisse qualquer ju�zo extramoral. Mas eu tamb�m n�o seria capaz de comprar a cadeira bela se o carpinteiro a tivesse usado para matar a fam�lia inteira.
Quando o objeto vem manchado com as cores da inf�mia, n�o h� beleza que o salve.
Dito de outra forma: a cadeira, se estivesse limpa, ficaria bem na minha sala; o carpinteiro, se n�o fosse inocente, ficaria bem na pris�o.
E o que � v�lido para o carpinteiro, � v�lido para Roman Polanski : � perfeitamente poss�vel imaginar os filmes de Polanski na tela —e o diretor na cadeia.
Todos conhecemos a hist�ria: na d�cada de 1970, Polanski violou uma menor nos Estados Unidos.
Ap�s acordo judicial, a acusa��o baixou o chicote para rela��es sexuais com menor. Polanski aceitou, confessou —e fugiu para a Europa.
Ser� leg�timo admirar os seus filmes apesar do crime?
Ou as feministas que pedem boicote a uma mostra do diretor em Paris t�m raz�o?
O racioc�nio mant�m-se: depende de que filmes falamos.
Se, por absurdo, Polanski tivesse filmado o seu pr�prio crime —ou, para n�o sermos t�o brutais, se os seus filmes fossem exorta��es a esses crimes, n�o haveria nenhuma considera��o art�stica aut�noma.
Mas os filmes de Polanski pertencem a outra esfera. Se a arte n�o desculpa o crime, o crime n�o inculpa a arte.
Anos atr�s, ainda sobre o caso Polanski, o jornal "The New York Times" organizou um debate com v�rios autores e acad�micos. Para saber, no fim das contas, se a divis�o entre o homem e a obra deve ser respeitada.
Relembraram-se fatos �bvios: olhamos para a hist�ria da arte e alguns dos maiores criadores eram seres moralmente question�veis.
Do Renascimento (que Vasari relata no seu indiscreto "Vidas de Artistas") � presente modernidade (Wagner, Picasso, Pound etc.), nem sempre as grandes obras foram produzidas por santos e beatos. Mas quem relembra isso ao passear pelo Louvre, ao escutar os "Niebelungos", ao ler os "Cantos"?
Ali�s, o verbo correto n�o � relembrar; � conhecer.
No debate promovido pelo "Times", o roteirista Damon Lindelof foi direto ao ponto: 200 anos depois, o consumidor de cultura desconhece o lado lunar de muitos autores que admira.
Daqui a 200 anos, pergunta ele, ser� que as gera��es futuras v�o assistir a "Annie Hall" com o pensamento perturbante de que Woody Allen casou com a filha?
Boa piada. Boa pergunta. Boa resposta.
Talvez a melhor forma de resolvermos as tens�es presentes entre a arte e a biografia do criador seja imaginar esse mundo futuro, onde n�o estaremos n�s nem as nossas confus�es e histerias transit�rias.
Longe de mim desvalorizar os crimes dos indiv�duos. Repito: esses crimes n�o t�m perd�o. Mas a grande arte � sempre perdoada.
Quando os bisnetos dos meus bisnetos encontrarem Dustin Hoffman em "The Meyerowitz Stories (New and Selected)", tudo que ter�o na frente � o talento imenso de um ator eterno.
Escritor portugu�s, � doutor em ci�ncia pol�tica.
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