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    Fabr�cio Corsaletti

    Dieta

    31/05/2015 02h00

    Por recomenda��o m�dica (n�o vou dizer o motivo; intimidade com o leitor tem limite), tive que me submeter a uma dieta rigorosa durante 50 dias. Nada de �lcool (digamos que eu bebia bem), cafe�na (um litro de caf� antes das tr�s da tarde), gordura (viva o torresmo!), comidas �cidas (adeus, tomate) e doces (acho que posso viver sem quindim). Carboidrato apenas no almo�o e em pequenas quantidades —meu macarr�o com lingui�a, eu juro que voltarei!

    Foi osso. Mas foi bom. Me senti leve como h� muito tempo n�o sentia. N�o s� fisicamente —emagreci sete quilos—, mas tamb�m espiritualmente. Eu ria � toa, e o riso vinha f�cil. Os m�sculos da face estavam soltos, relaxados, o que me levou a pensar que em geral eles funcionam como um escudo pro meu rosto, como uma m�scara balofa.

    Trabalhei o dobro do que costumo trabalhar e sem grande esfor�o realizava as tarefas mais chatas: ir ao banco, ao pilates, a reuni�es. Escrever tamb�m ficou moleza (trabalhar pra mim � dar aulas, revisar livros etc.; escrever � outra coisa): as palavras sa�am como que dos meus dedos, e n�o da fornalha do diabo em que normalmente se transforma a minha cabe�a quando o tro�o empaca. Eu pensava uma ideia e a escrevia; ou a escrevia antes de pensar e depois dizia comigo: � isso mesmo. Dias gloriosos. Ou melhor: manh�s. Porque eu acordava com o c�u ainda escuro e fazia tudo isso at� o meio-dia.

    Ilustra��o Guazzelli

    Mas ent�o chegava a tarde e todo o equil�brio ia pro brejo.

    Sempre detestei a tarde. � um per�odo melanc�lico. E a melancolia parece vir de fora pra dentro; somos invadidos por essa luz azeda, ran�osa, gasta. O bom humor das pessoas est� nas �ltimas. Surgem as tretas no trabalho; explodem as brigas; um motorista fecha um motoboy e grita pela janela, e no fundo adoraria reduzi-lo a uma pasta gelatinosa da cor do crep�sculo. Se a vida fosse uma sequ�ncia infinita de tardes, eu preferia n�o participar dessa pe�a.

    A� vem a noite e a coisa s� piora. � um estupro mental. Voc� n�o teve a chance de se preparar com um negroni ou algumas latas, h� estrelas demais e um barulho de grilos e sirenes —e de repente os amigos te chamam pra ir pra Mercearia, sua namorada anuncia que quer dan�ar feito louca, as revistas te esfregam na cara hamb�rgueres de dois andares, coquet�is de seis cores, e a rua Augusta brilha l� embaixo como os olhos da Medusa.

    Um banho! Voc� toma um banho. Janta, continua com fome e liga a tev�. N�o � mais uma impress�o, � verdade: agora voc� se identifica com Dexter, o serial killer que se sente —e isso � tudo o que ele sente— apartado do mundo dos homens por n�o ter sentimentos. O mundo dos homens. Das mulheres. Das crian�as. Dos animais. Dos vegetais (com pouco sal). Dos minerais.

    Sou uma pedra. Uma pedra sem gra�a diante de um quadrado luminoso trancada num quarto vazio. Sem esperan�as de que essa eternidade acabe e eu possa —sem gelo!— voltar a viver.

    fabrício corsaletti

    Nascido em Santo Anast�cio (SP), em 1978, � autor de 'Esquim�' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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