Roupa sustentável: da terra ao corpo
Pesquisa rastreia a produção do casaco de xinil, apresentado na São Paulo Fashion Week 2019, e acompanha os caminhos do movimento slow fashion e da economia circular
A antropóloga Tatiana de Lourdes Massaro acompanhou a trajetória de uma peça de roupa sustentável no esforço de conhecer – desde a terra até o corpo – a cadeia produtiva circular da moda chamada slow fashion e suas soluções para mitigar as mudanças climáticas. No entanto, para trazer o estado da arte sobre moda e sustentabilidade e, simultaneamente, poder analisar as texturas sociais, ambientais e econômicas da “roupa viva” – vocabulário vindo dos campos de plantio e adotado em sua tese doutorado defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp –, a pesquisadora optou pelo caminho da engenharia reversa. Massaro começou sua pesquisa partindo da terra onde havia sido plantado o algodão usado na fabricação do casaco de xinil da estilista Flavia Aranha. No seu percurso, concluiu que a moda sustentável é possível e está em expansão, fazendo-se necessária para promover um ciclo que começa e termina na terra, indo do plantio do algodão orgânico à biodegradação da roupa e garantindo a preservação do planeta e a qualidade de vida do trabalhador.
A inquietação da pesquisadora sobre o tema surgiu muito antes de sua formação acadêmica e transita por suas memórias afetivas. “Minhas avós costuravam. Eu já entendia que a moda faz parte de um contexto que não está apenas no âmbito doméstico; atravessa as esferas social, econômica e ambiental que compõem esse modo de viver”, lembra a autora da tese de antropologia social “Da terra ao corpo: uma etnografia das roupas sustentáveis”, concebida sob orientação da professora Heloisa André Pontes.
Massaro se propôs a trazer a sustentabilidade e a moda para o debate, com reflexões que, espera, contribuam para a elaboração de um léxico nessa área, com termos como “roupa viva”, de categoria êmica (conceito da antropologia que descreve valores próprios de cada sociedade ou grupo). “Essa expressão vem do campo. Essa roupa é vista por minhas interlocutoras [trabalhadoras envolvidas] como viva porque é feita, por exemplo, de algodão orgânico, sem agrotóxico, geralmente cultivado em agrofloresta, em pequenas plantações mantidas por agricultores familiares”, descreve a pesquisadora.
A ideia de “roupa viva” – que também pode ser feita de seda, linho e liocel, entre outras matérias-primas – relaciona-se ainda com a transformação e as metamorfoses. “A vida está colocada como centralidade nessa moda que se constitui como sustentável”, afirma Massaro. Trata-se de uma moda que se opõe à convencional, sustentada por um pilar econômico. As vitrines de fast fashion mudam suas coleções a cada 15 dias e a aceleração do processo de produção atende ao desejo imediato do consumidor, gerando descarte poluente e criando lixões a céu aberto – como o do deserto do Atacama, no Chile, e o presente em Gana, no continente africano – ou em alto-mar.
A moda sustentável, baseada no slow fashion, gera uma estrutura diferente dentro do sistema capitalista, apontando para um ecossistema de transição rumo à sustentabilidade. “Isso tudo é sistêmico”, afirma Massaro. Desde o começo deste século, esse gênero de moda ganha visibilidade. O evento Brasil Eco Fashion Week realiza desfiles de moda sustentável, com exposições e debates sobre o tema. Há iniciativas semelhantes em diversos países. A própria São Paulo Fashion Week (SPFW), um dos eventos de moda mais importantes do Brasil e da América Latina, tem valorizado marcas sustentáveis.
A pesquisadora também mostra em sua tese haver uma circulação da “roupa viva” entre pessoas públicas, como a atual ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, que vestiu uma peça do tipo durante uma homenagem que recebeu da revista Times, em Nova York, em 2022, e a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, que trajava uma roupa de confecção sustentável na posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2023.
Tradição e resistência
Apresentado na SPFW 2019 pela estilista Flavia Aranha, o casaco de xinil representou o ponto de partida para a pesquisa de Massaro. “Fiz uma etnografia e um estudo sobre economia circular”, explica. A proposta da marca, da associação e da cooperativa (envolvidas na produção do casaco) baseia-se na circularidade. “A rede que eu pesquisei inclui mais de cem parceiros.”
A técnica do xinil em Minas Gerais é comumente usada em tapetes e almofadas. O nome xinil vem do francês chenille, que significa lagarta e se refere especialmente ao bicho da seda. O casaco, composto de pequenos fios que são dobrados e vão sendo enlaçados no tecido liso, resultou de uma parceria da marca paulistana Flavia Aranha com as artesãs mineiras da Central Veredas e a Cooperativa Regional de Base na Agricultura Familiar e Extrativismo (Copabase), ambas da região do Vale do Urucuia, no noroeste de Minas Gerais. Colorida por tingimento natural, a peça é tecida em tear manual por artesãs que resgataram uma antiga tradição. Em sua pesquisa, Massaro descobriu que, quando o Brasil ainda era colônia, a coroa portuguesa proibiu os teares dentro de casa porque a tecelagem crescia em um momento no qual o foco da economia mineira deveria ser a extração de metais preciosos. “[A atividade] tornou-se um ato de resistência.”
Segundo a pesquisadora, a indústria têxtil, que impulsionou a Revolução Industrial no Reino Unido, no século 18, hoje faz do país europeu o cenário de movimentos ligados à sustentabilidade da moda, entre os quais o Fashion Revolution, que propõe observar quem fez e onde foi fabricada cada peça de roupa. Esse movimento surgiu depois do desabamento, em Bangladesh, em 2013, de uma fábrica que produzia para o mercado da fast fashion. No desastre, morreram 1.138 pessoas.
Durante o doutorado, Massaro realizou parte de seus estudos em Londres. Isso porque marcas inglesas do mercado de luxo, como Stella McCartney, muito ligada ao vegetarianismo e à incorporação de elementos biodegradáveis nas roupas, vêm dando visibilidade à moda sustentável. Também na Inglaterra, Katharine Hamnett passou a trabalhar só com algodão sustentável e orgânico a partir dos 1980. Outra marca inglesa envolvida nesses esforços é a da estilista e ativista Vivienne Westwood.
“Esse ainda é um mercado consumidor restrito, mas existe esse movimento na contramão do mercado de moda hegemônico”, diz a pesquisadora. “Vestir é também tomar uma posição. A moda sustentável tem ocupado e conquistado mais espaços ao longo do tempo. Trata-se de um crescimento relacionado às mudanças climáticas e à percepção da humanidade sobre isso”, avalia Massaro.