Especial

No Vale do Taquari, cidades mudarão de lugar para sobreviver

Por André Borges, Valor — De Muçum, Encantado, Roca Sales e Arroio do Meio (RS)

Publicado em 28 de junho de 2024

Com um par de galochas enlameadas, Pedro Alexandre Venâncio, 53 anos, caminha sobre os cascalhos, pedaços de tijolos espalhados sobre seu terreno, na margem direita do rio Taquari. “Aqui era a cozinha”, diz, sinalizando com os braços o espaço onde ele, até um mês atrás, almoçava com a família. “Desse lado ficavam os quartos e o banheiro. A sala ficava ali. Eu morava nesta casa com minha mãe, minha esposa e nossa filha. Era boa, nosso cantinho. A lama levou tudo. Não sei ainda para onde vamos, nem se voltaremos para cá.”

Pedro Alexandre Venancio da Silva, 53 anos, auxiliar em tratamento de couro, teve toda casa levada pelo rio Taquari, em Mucum. Foto: Andre Borges

Não voltarão. Venâncio e sua família fazem parte de um contingente de milhares de pessoas que tiveram o destino atravessado pela maior catástrofe climática do país. A tragédia que dilacerou cidades inteiras do Rio Grande do Sul e desabrigou sua população também transfigurou a área urbana de muitos municípios.

No Vale do Taquari, a 160 km de Porto Alegre, a reconstrução gaúcha não se limitará à limpeza das cidades, o reerguimento de casas, empresas e estruturas de contenção. Bairros inteiros precisarão trocar de lugar, em busca de áreas mais altas e distantes dos rios. Boa parte do território dessas cidades terá de ser feita do zero, com a criação de novos centros urbanos.

Depoimento de Pedro Alexandre Venâncio sobre enchentes na região do rio Taquari

O Valor percorreu toda a região do Vale do Taquari, passando por municípios como Muçum, Roca Sales, Encantado, Arroio do Meio, Lajeado e Estrela, alguns dos mais impactados nesta região do Estado.

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Localização de Muçum no Rio Grande do Sul

Na pequena Muçum, conhecida como a “cidade das pontes”, o cálculo inicial é de que, pelo menos, 1.500 habitantes terão de mudar de casa, o que significa realocar praticamente um terço deste município de quase 5 mil pessoas. O prefeito da cidade, Mateus Trojan (MDB), que também teve sua casa e a própria prefeitura invadidas pela lama, diz que ainda está definindo as áreas para onde parte do centro terá de migrar.

Cercado por sacos de lixo abarrotados de documentos e livros que foram levados às pressas ao primeiro andar da prefeitura para escapar da lama, Trojan diz que teme pelo êxodo de parte da população, após três enchentes castigarem o Vale do Taquari em menos de um ano. Em setembro do ano passado, os danos incluíram a morte de 20 pessoas. Nas enchentes deste ano, não houve registro oficial de vítima fatal na localidade.

“Nós tínhamos cerca de 5 mil habitantes em Muçum, mas, neste momento, eu não consigo mais mensurar, porque é fato que estamos perdendo parte da população. Tem gente indo embora para outros lugares e essa evasão vai aumentar, se a gente não reagir e se precaver da reincidência das tragédias naturais”, diz Trojan.

Mateus Giovanoni Trojan, 30 anos, prefeito de Muçum(RS), dentro da prefeitura, que também foi invadida pela lama. Foto: André Borges

No meio do caos generalizado, a necessidade urgente de erguer novas casas, galpões ou prédios é apenas uma parte do problema. O processo de reconstrução encarado pela população passa, antes, pela preparação de territórios que hoje não contam com nenhuma infraestrutura básica.

“Estamos adquirindo áreas, desapropriando, mas a realidade é que essas regiões ainda precisam de terraplenagem, precisam de rede de luz, água e esgoto, de pavimentação, enfim, de toda estrutura que vai muito além de erguer uma unidade habitacional”, diz o prefeito de Muçum. “Eu acredito que, pela gravidade do que aconteceu, vamos precisar de, no mínimo, dois anos para restabelecer o que foi perdido.”

Casas tomadas por material trazido pelo rio Taquari, em Muçum (RS). Foto: André Borges

Enquanto tentam alinhar planos de retomada que incluam medidas eficazes para lidar com novas tragédias climáticas, os municípios prosseguem com as ações emergenciais de ajuda humanitária e que continuam em andamento em todo Estado, com milhares de pessoas ainda alojadas em abrigos.

Mapa de localização da cidade de Encantado no Rio Grande do Sul
Localização de Encantado no Rio Grande do Sul

A cidade de Encantado, com seus 23 mil habitantes, também busca uma solução para um terço de sua população, cerca de 7 mil pessoas diretamente atingidas pelas enchentes.

A prefeitura já contabilizou pelo menos 400 casas destruídas, além de outras 1.300 que foram severamente atingidas pela lama. Boa parte não terá mais condições de ser utilizada. “Esse inventário de destruição ainda está em andamento. Temos vários bairros onde a população terá que ser deslocada. As pessoas não poderão ficar mais ali”, diz o prefeito de Encantado, Jonas Calvi (PSDB).

A estimativa inicial é de que mais de 600 casas terão de ser construídas em outros lugares do município, o que significa trocar o CEP de aproximadamente 2 mil pessoas. A complexidade envolve não apenas recursos financeiros, mas o respeito a aspectos culturais e hábitos cotidianos de cada morador.

Rio Forqueta, no município de Encantado (RS), causou estragos em toda a orla. Foto: André Borges

“É preciso realocar, não tem jeito, mas sabemos que não adianta colocar um ribeirinho numa área onde ele nunca viveu, nem pegar alguém da zona rural e trazer para o centro da cidade. Temos de considerar a história das pessoas, fatiar as soluções e isso não é algo simples de se fazer, principalmente em uma cidade pequena”, diz Jonas Calvi.

É essa a situação que aflige pessoas como o aposentado Carlos Zambiazi, de 66 anos. “Eu já tenho uma certa idade. Eu só queria ter um lugar tranquilo, no tempo que ainda tenho pra viver, mas queria voltar para onde eu saí. Se eu conseguir reconstruir a minha casinha no lugar que a água levou embora, pra mim é o suficiente”, diz Zambiazi, há um mês acampado dentro de uma quadra poliesportiva, no centro da cidade.

Carlos Zambiazi conta sobre a vida na barraca após perder a casa em Arrio do Meio

O prefeito de Encantado, que ficou cinco dias sem conseguir ter notícias sobre seus pais, por estarem isolados e incomunicáveis no interior do município devido às enchentes, acredita que a reconstrução das vilas e das casas destruídas deverá demorar anos. “Estávamos reorganizando o município, com a limpeza da cidade, oito meses depois da enchente que vivemos em setembro do ano passado. E agora veio essa tragédia. Fica muito difícil fazer uma previsão clara sobre a retomada da normalidade.”

Mônia Canal, 49 anos, auxiliar de padaria em Encantado, está há mais de um mês sem saber o que é “normalidade”. Dormindo em um alojamento ao lado de seu filho Cristiano, de dez anos, Mônia tem retornado diariamente ao que restou de sua casa, nas margens do rio Forqueta, um afluente do Taquari, para ver o que ainda é possível recuperar.

“Não sei descrever o que a gente sente, é muito triste. Eu tive ajuda de voluntários para limpar a casa, mas é difícil entrar de novo. Quero voltar para minha casinha. Mas quando eu tiver outro lugar, vou sair daqui”, diz Mônia, completamente exaurida, após mais um dia de limpeza no meio do barro que impregnou sua residência e acabou com seus móveis.

Mônia Canal, 49 anos, auxiliar de padaria em Encantado (RS), ao lado do filho Cristiano, 10 anos, em frente à sua casa. Foto: André Borges

Auxiliar de padaria relata a tristeza de perder a casa e ter que reconstruir sem deixar local.

Mônia Canal, 49 anos, auxiliar de padaria em Encantado (RS), ao lado do filho Cristiano, 10 anos, em frente à sua casa. Foto: André Borges

Auxiliar de padaria relata a tristeza de perder a casa e ter que reconstruir sem deixar local.

A estrada que corta as cidades de Muçum e Encantado avança sentido sul do Estado gaúcho, ladeando as margens do Taquari. Por vários dias, a rodovia ficou com diversos trechos submersos e tomados pelos deslizamentos. É esse o caminho que leva até Roca Sales e Arroio do Meio, duas cidades que também tiveram a paisagem devastada.

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Localização de Roca Sales no Rio Grande do Sul

Em Roca Sales, a “Cidade da Amizade”, cerca de 400 casas viraram montes de entulho de um dia para o outro, deixando cerca de 1.500 pessoas sem lugar para morar. O prefeito, Amilton Fontana (MDB), diz que ainda está definindo as áreas de realocação da população.

“Vamos ter de adquirir mais áreas, além de fazer as obras emergenciais. Hoje, temos um território de 50 hectares na área central que sofre alagamento. Estamos buscando uma área maior no município, de 70 hectares, para levar essa população, mas é claro que fazer essa mudança toda vai levar anos”, diz.

Para estimular a realocação, órgãos públicos devem ser transferidos para novos bairros. “Hospitais, unidades de saúde, centros administrativos e demais serviços públicos deverão ser levados aos poucos para esse outro local do município, como forma de atrair empresas e a população em geral”, afirma Fontana.

Voluntários improvisam churrasco e distribuem comida a desabrigados em Roca Sales (RS). Foto: André Borges

A ideia é que terrenos sejam concedidos para a população que perdeu tudo. “Cerca de 60% da área urbana do município terá de mudar de local. Em termos de população, a gente estima que, no mínimo, 4 mil pessoas serão realocadas, de um total de 11 mil habitantes”, diz o prefeito.

Nesse caminho para a reconstrução, a reclamação geral dos gestores municipais passa pela burocracia no acesso a recursos. Eles são uníssonos em dizer que têm recebido atenção dos governos federal e estadual, mas criticam a lentidão para que o dinheiro, de fato, esteja disponível.

“Estamos numa fase de retirada do lixo. É o que todo município ainda está vivendo. Ainda nem conseguimos calcular o volume total. Hoje, nossa preocupação está em conseguir liberar os recursos para aumentar a contratação de máquinas na remoção e armazenamento desse entulho”, diz o prefeito de Roca Sales.

Lixo é retirado por tratores no município de Roca Sales (RS), um dos mais atingidos no interior do Estado. Foto: André Borges
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Localização de Arroio do Meio no Rio Grande do Sul

Em Arroio do Meio, o prefeito Danilo Bruxel (PP) ainda estuda uma nova região do município onde terão de ser erguidas, pelo menos, 1 mil novas casas. “São três bairros da cidade que, praticamente, não vão mais existir. Teremos de remover todos”, diz Bruxel.

Com uma população de 22 mil pessoas, Arroio do Meio teve 12 mil pessoas com suas casas diretamente afetadas pelas enchentes. Pelo menos 5 mil delas não retornarão e terão de trocar de endereço.

É o que aflige pessoas como José Cézar Zotti, 62 anos, que colocou boa parte de suas economias na construção de uma casa ao lado do rio Forqueta. A propriedade segue de pé, mas está em área de extremo risco. Enquanto recolhe os brinquedos de seus netos no meio da lama, Zotti diz que não quer sair dali. “Estamos limpando para poder voltar. Perdemos tudo, mas vamos recuperar a casa.”

Casa de Jose Cezar Zotti, no município de Encantado (RS), nas margens do rio Forqueta. Foto: André Borges

Casa foi totalmente destruída pela água da chuvas em Encantado (RS)

A dificuldade de se encontrar locais provisórios e disponíveis para aluguel é outra preocupação nos municípios, situação que se agravou ainda mais com as enchentes de maio. Devido às inundações ocorridas em setembro do ano passado no Vale do Taquari, a prefeitura de Arroio do Meio, por exemplo, já vinha mantendo 200 famílias em casas bancadas com aluguel social, um benefício de até R$ 800 por família que é dado a quem perdeu sua residência. Acontece que pelo menos cem dessas famílias voltaram a perder seus lares, no caso, as casas alugadas onde estavam, devido à nova destruição.

“É a ocorrência de um problema sobre outro que nem estava solucionado. Ainda estamos buscando uma saída para isso. Devemos ter 300 novos aluguéis sociais”, diz Bruxel. “São muitas urgências ao mesmo tempo, após a fase de salvar as vidas e resguardar as pessoas. Além de cuidar da reconstrução das casas, outra prioridade neste momento é a logística, as travessias que perdemos.”

Arroio do Meio ficou praticamente isolada, após a enxurrada de lama derrubar a ponte de concreto que liga o município a Lajeado e Estrela, por meio da BR-386. Hoje, a previsão mais otimista é de que essa religação por onde passam veículos esteja pronta em meados de setembro. Outra passagem de ferro, porém, batizada de “Ponte da Reconstrução”, foi reerguida e já está em operação, sobre o rio Forqueta.

Ponte entre Arroio do Meio e Lajeado (RS) terá de ser totalmente reconstruída, depois de arrancada pelas enchentes. Foto: André Borges

Em meio à tragédia histórica, os sinais de retomada, aos poucos, se espalham pelas cidades do Vale do Taquari. No centro de Muçum, o casal Eneleide Ulme e Enestor Ulme contratou os serviços do pedreiro Djalma Conceição para reerguer as paredes de sua loja.

Casal em Muçum descreve o sentimento de ter que reconstruir a própria casa

Com um carrinho cheio de cimento e uma colher de pedreiro nas mãos, Djalma rebocava os tijolos que tinha acabado de assentar, no fim de maio, quando muitas ruas próximas e em todo Estado ainda estavam debaixo d’água. “Estar aqui, construindo, é sinal de recomeço para uma vida nova, esperando que isso nunca mais aconteça”, diz Eneleide Ulme. “Temos muita força e coragem para lutar e conseguir vencer de novo.”