Cinema

Por Daniel Riley

No outono de 2021, Christopher Nolan sabia exatamente onde encontrar Cillian Murphy. O diretor voou para a Irlanda com um documento em sua bagagem de mão. Era um roteiro para seu novo filme ultrassecreto, impresso, aparentemente, em papel vermelho.

“O que supostamente o torna à prova de fotocópia”, explicou Murphy. Ele não ficou surpreso com a visita. Os dois já haviam trabalhado juntos em cinco filmes, e todos os roteiros de Nolan, disse Murphy, foram entregues pelo próprio Nolan ou por um de seus parentes.

“Então, tipo, foi a mãe dele que me entregou o roteiro uma vez. Ou seu irmão. Ele chega, vai embora e volta em três horas. Parte disso tem a ver com manter a história em segredo, mas outra parte tem a ver com uma certa tradição. Sempre fizeram assim, por que parar agora? Acrescenta um ritual que realmente aprecio. Combina comigo.”

Murphy encontrou Nolan em seu quarto de hotel em Dublin, e Nolan o deixou sozinho para ler. Ele lia, lia e lia. Todas as 197 páginas, o tipo mais raro de roteiro, escrito na primeira pessoa do protagonista do filme, J. Robert Oppenheimer. Toda a ação, toda a incidência, girava em torno desse personagem — um gênio gigante e psicologicamente complexo da história mundial.

Murphy nunca havia protagonizado um filme de Nolan antes, mas se comprometeu com o papel assim que o diretor lhe contou sobre a produção, antes mesmo de ver uma página do roteiro. “Ele já tinha me ligado e dito que queria que eu fizesse o papel. E eu tinha dito sim, porque sempre digo sim para ele.” A tarde acabou. “E ele não tem telefone nem nada”, disse Murphy. “Mas sabia instintivamente quando voltar.” Eles passaram o resto da noite juntos — e, então, Murphy pegou o trem para casa e começou a trabalhar.

Cillian Murphy veste suéter Bode — Foto: Gregory Harris
Cillian Murphy veste suéter Bode — Foto: Gregory Harris

O resultado foi um dos filmes mais assistidos e aclamados de 2023, um blockbuster de quase US$ 1 bilhão sobre um gênio atormentado (e, sim, o pai da bomba atômica). A performance confirmou para muitos o que se sabe discretamente há algum tempo: que Cillian Murphy é, ou pelo menos foi, um dos atores mais subestimados de Hollywood.

Seja com pequenos papéis potentes em outros filmes de Nolan, seja como um intérprete que muda de forma e protagonizou dezenas de filmes e peças de teatro nas últimas três décadas, ou, claro, ao longo de dez anos e seis temporadas de Peaky Blinders, a série de sucesso que o tornou realmente conhecido no mundo.

“Alguns anos atrás”, disse Christopher Nolan, “cometi o que provavelmente foi um erro em algum momento de sinceridade bêbada: o de dizer a ele que é o melhor ator de sua geração. Agora, ele consegue mostrar isso para o resto do mundo.”

Parte da razão pela qual Murphy ainda se sentia como uma espécie de segredo até recentemente é que ele vive, respira e reside a uma distância segura de todo o burburinho. Intencionalmente. Em 2015, voltou de Londres para sua casa na Irlanda, já a certa distância de Hollywood, em uma aldeia tranquila no Mar da Irlanda — não exatamente fora de alcance mas ainda longe do raio de explosão de sua indústria.

Em uma noite de inverno, peguei o trem pela costa do centro da cidade de Dublin até Monkstown para jantar com Murphy. Nos conhecemos em um restaurante onde ele me disse: “Tenho uma mesa habitual, você acredita?”.

Cillian Murphy veste suéter Tom Ford | calça Saint Laurent por Anthony Vaccarello | lenço, acervo do stylist | colares Mikimoto (acima), Platt Boutique Jewelry (meio) e acervo pessoal (abaixo) — Foto: Gregory Harris
Cillian Murphy veste suéter Tom Ford | calça Saint Laurent por Anthony Vaccarello | lenço, acervo do stylist | colares Mikimoto (acima), Platt Boutique Jewelry (meio) e acervo pessoal (abaixo) — Foto: Gregory Harris

Uma declaração orgulhosa cercada em néon, enfatizando que ele não tinha uma mesa habitual em nenhum outro lugar. Ele ficou ali, confortável, saltitante, inclinado para a frente, cabelos roqueiros caídos casualmente pela testa, seus famosos olhos claros atraindo transeuntes como dois bolsões de areia movediça.

Murphy e sua esposa de um casamento que já dura vinte anos, a artista Yvonne McGuinness, vivem à beira-mar com os dois filhos adolescentes. Na Irlanda, a abundância de sua existência criativa surge ao seu redor. As galerias de arte parecem estar cheias de trabalhos de seus parentes. A música na rádio tem curadoria de amigos — ou do próprio Murphy. Às vezes, ele toma cerveja com seus ídolos irlandeses mais velhos, os atores Brendan Gleeson e Stephen Rea.

A vida aqui para Murphy é cheia de, bem, vida. Seus meninos estão chegando à idade de sair de casa. Há provas. Tarefas. Recados. Ele e o caçula viajaram pela manhã para assistir a uma partida de futebol em Liverpool. “Eu teria levado você para outro lugar para tomar uma Guinness”, disse Murphy, “mas preciso dirigir para deixar meu filho em uma festa hoje à noite”. Os afazeres estavam muito longe das bolhas que normalmente encapsulam os principais homens do cinema.

“A maioria dos meus amigos não está no ramo”, contou Murphy. “Também adoro não trabalhar. Acho que, para mim, muito da pesquisa como ator é apenas... viver. Sabe, ter uma vida normal fazendo coisas normais e apenas conseguir observar e existir nesse tipo de fluxo adorável da humanidade. Se você não pode fazer isso porque está indo do festival de cinema para o set, para divulgações... Quero dizer, essa é a bolha. Não estou dizendo que isso o torna melhor ou pior como ator, mas é um mundo no qual eu não poderia existir. Acho que seria muito limitante em relação ao que você pode experimentar como ser humano, sabe?”

“Cometi o que provavelmente foi um erro em algum momento de sinceridade bêbada:o de dizer a ele que é o melhor ator de sua geração. Agora, ele consegue mostrar isso para o resto do mundo.”
— Christopher Nolan, diretor

Cillian Murphy, pelo menos naquele fim de semana, me pareceu ter descoberto como viver tão profundamente do jeito que muitos outros atores afirmam querer. Passei o mês, após nosso tempo juntos, incapaz de superar a experiência de ter estado na presença de alguém vivendo assim — longe de tudo, mas em alta demanda.

Entregando performances dignas do Oscar ao mesmo tempo em que parece, de forma convincente, contente em desaparecer por um longo tempo, sem perguntas. As forças estabilizadoras de sua casa parecem funcionar como um ponto de ancoragem a partir do qual ele sai a vagar como artista. “Ele tem essa mistura rara de humildade com supercarga de criatividade”, disse Emily Blunt. “Ele é adorável e são. É tão, tão são. No entanto, tem tanta loucura nos papéis que consegue interpretar.”

Ele foi o primeiro de seus amigos a ter filhos e, portanto, será o primeiro com um ninho vazio. Mais tempo para filmes (talvez). Mais tempo para a música (com certeza). Mais tempo para correr à noite. Ainda mais tempo para dormir:

“Durmo dez horas por noite”. Cillian parece imune à necessidade de estar na “cena” — da fama, da moda, dos jantares grátis. Muitos atores superam essa compulsão após envelhecer, mas a questão é que ele não é velho. Quarenta e sete. No auge de seus poderes, entrando em seu auge. Não saindo da indústria, apenas flutuando levemente ao redor dela, até ser chamado, o que muitas vezes é. E será mais agora do que nunca.

Cillian Murphy veste camiseta Raggedy Threads | calça Prada | sapatos Bally | meias Uniqlo — Foto: Gregory Harris
Cillian Murphy veste camiseta Raggedy Threads | calça Prada | sapatos Bally | meias Uniqlo — Foto: Gregory Harris

Ele tenta fazer um filme por ano, de preferência não durante o verão, quando gosta de passar a maior parte do tempo na costa oeste da Irlanda fazendo nada além de encontrar novas músicas para seu programa de rádio na BBC 6 ou passear com seu labrador, Scout.

Ele se vê perfeitamente feliz com o “desemprego”, enquanto espera que o novo filme certo apareça em seu caminho. “Poderia ter acontecido de o Chris me ligar e eu estar fazendo outra coisa”, disse. “Esse teria sido o pior dos cenários.” Assim, ele parece aderir à máxima: “Faça filmes. Não muitos. Principalmente com Christopher Nolan”.

Nolan viu Murphy pela primeira vez em 2003, em uma imagem promocional do filme Extermínio, veiculada no jornal San Francisco Chronicle. “Eu queria escalar o Batman, buscava atores para testes. Fiquei muito impressionado com seus olhos, sua aparência, tudo sobre ele, queria descobrir mais”, lembrou Nolan. “Quando o conheci, ele não me pareceu necessariamente certo para o Batman. Mas havia uma ‘vibe’: há pessoas que você conhece e com as quais só quer ficar conectado, trabalhar, tentar encontrar maneiras de criar junto.”

Então, Nolan o colocou nas câmeras apenas para ver o que acontecia. “Ele se apresentou pela primeira vez como Bruce Wayne, e eu vi a equipe parar e prestar atenção de uma maneira nunca antes vista, e que nunca vi desde então. Era uma eletricidade saindo do cara, uma energia incrível. Então, liguei para alguns executivos, e eles ficaram impressionados o suficiente para me deixar escalá-lo como Espantalho. Esses vilões do Batman, na época, só tinham sido interpretados por grandes estrelas — Jack Nicholson, Arnold Schwarzenegger. Então, trata-se de mais uma prova de seu talento bruto.”

Batman Begins foi o primeiro de seus papéis menores nos três filmes do Batman de Nolan, e também em A Origem e Dunkirk. “Espero que ele não se importe de eu dizer, mas, quando trabalhei com ele pela primeira vez, ele era puro instinto, e o lado técnico da atuação não se mostrava tão importante. Nós colocávamos marcações no chão e ele simplesmente passava por cima delas”, contou Nolan, rindo. Mas, ao longo de duas décadas, “ao vê-lo desenvolver sua facilidade técnica, isso não distraiu ou diminuiu de forma alguma a natureza instintiva de sua atuação”.

Para o papel principal em Oppenheimer, Murphy se preparou em casa por seis meses, concentrando-se primeiro na voz e na silhueta (em outras palavras, perdendo peso para refletir a pele e os ossos de um físico de renome mundial que viveu basicamente de martínis e cigarros durante seus anos desenvolvendo a bomba). No set, à medida que os dias de filmagem se acumulavam no deserto do Novo México, a excepcionalidade do que Murphy estava fazendo começou a se espalhar entre o elenco e a equipe “como um boato”, disse Nolan. “Lembro de a mesma coisa acontecer com Heath Ledger em O Cavaleiro das Trevas.”

Cillian Murphy veste camisa e calça Versace | regata Calvin Klein | sapatos George Cortina para Anderson & Sheppard | meias Uniqlo | colares Platt Boutique Jewelry (abaixo) e acervo pessoal (abaixo) — Foto: Gregory Harris
Cillian Murphy veste camisa e calça Versace | regata Calvin Klein | sapatos George Cortina para Anderson & Sheppard | meias Uniqlo | colares Platt Boutique Jewelry (abaixo) e acervo pessoal (abaixo) — Foto: Gregory Harris

Blunt, que interpreta a esposa sitiada de Oppenheimer, Kitty, conheceu Murphy em Um Lugar Silencioso - Parte II. “Estar em uma cena com Cillian é quase como um sequestro. Ele te puxa para uma espécie de vórtice vibracional”, descreveu ela. “Ele adora uma festa. Mas, quando está trabalhando, fica focado e não socializa muito. Certamente não em Oppenheimer, quero dizer, ele não tinha mais uma palavra para dizer no final do dia.”

Matt Damon me disse que, quando estavam filmando no meio do Novo México, ele, Blunt e o resto do elenco desciam e comiam em um pequeno café. “Era como uma barraca de bagunça. Cillian era convidado todas as noites, mas nunca chegou a ir, nem uma vez”, contou. “Ok, ele precisou perder muito peso, não podia comer à noite, estava arrasado”, disse Damon. “Sabíamos que ele estava fazendo o que era melhor para o filme. A única coisa que se permitia, seu único luxo, era tomar banho à noite. Quer dizer, ele se permitiria literalmente algumas amêndoas ou algo assim. Depois sentava na banheira com o roteiro e só trabalhava. Sozinho, todas as noites.”

A performance se mostra imensa, mas muito dela é invisível para o público, na intensidade concentrada da interpretação, o núcleo, em direção ao qual tantos elementos sutilmente nos aproximam do personagem. Apenas um exemplo: se o filme fosse historicamente preciso, disse Murphy, todos estariam fumando e usando chapéus. Mas ele é o único a fazê-lo. “É enfático, mas subliminar.”

O autor Kai Bird, que coescreveu a monumental biografia Oppenheimer: o Triunfo e a Tragédia do Prometeu Americano, na qual o longa se baseia, passou um dia no set de Los Alamos assistindo à cena na qual Oppenheimer conversa com sua equipe de cientistas sobre a bomba, enquanto alguém joga bolinhas de gude em um aquário e numa taça de conhaque.

“Durante um intervalo, Murphy se aproximou vestindo seu terno marrom folgado e um cinto turquesa. Eu levantei os braços e gritei: ‘Dr. Oppenheimer, Dr. Oppenheimer, estou esperando há décadas para conhecê-lo!’”, disse Bird. “Ele capturou especialmente a voz e a intensidade de Oppie.”

O filme foi lançado no fim de semana de Barbenheimer, logo após o início da greve da SAG-AFTRA. Apesar de curtir passar um tempo de forma mais leve com Blunt, Damon e o elenco, Murphy ficou aliviado por interromper a divulgação do filme.

“Acho que é um modelo quebrado”, disse ele sobre entrevistas no tapete vermelho e coletivas para a imprensa. Ultrapassado e um tédio para os atores. “O modelo é... todo mundo está entediado.” Veja o que aconteceu quando entraram em greve, disse ele. Tudo parou. Mas o fato de o filme ser bom, e de Barbie ser bom, dois bons filmes ao mesmo tempo, as pessoas enlouqueceram — isso só mostra que ninguém precisa disso. “O mesmo aconteceu com Peaky Blinders. Nas três primeiras temporadas, não houve publicidade, só uma pequena série na BBC Two; o programa só explodiu porque as pessoas conversavam umas com as outras sobre isso.”

A reticência de Murphy em muitas entrevistas se mostra palpável. “É como Joanne Woodward disse”, ele afirmou. “‘Atuar é como sexo: faça, mas não fale sobre isso’.” Ele é basicamente incapaz de ser falso. Reage da maneira que você talvez reagisse ao ouvir a mesma pergunta pela centésima vez em uma semana. “As pessoas sempre me diziam: ‘Ele tem reservas’ ou ‘Ele é um entrevistado difícil’”, contou Murphy. “Na verdade não! Adoro falar sobre trabalho, arte. Com o que tenho dificuldades, e acho desnecessário e inútil, a respeito do que quero fazer é: ‘Conte-me sobre você...’”

Ainda assim: Murphy cresceu em Cork. Frequentou uma escola católica mais adequada para um tipo de menino atlético do que para uma alma artística. “Sempre odiei esportes coletivos. Gosto de assistir, mas sempre fui péssimo neles”, lembrou. Esse sistema clássico de educação não era bom para ele, “nem emocional, nem psicologicamente”, disse. “Mas pelo menos me deu um empurrão.”

Ele tocou em uma banda de sucesso com seu irmão e entrou sem muito entusiasmo na universidade local como estudante de direito. Enquanto estava na escola em Cork, deparou-se com uma performance de Laranja Mecânica e foi parar na cena teatral local. Não contava com nenhum tipo de experiência, mas conseguiu o primeiro papel para o qual fez teste, em Disco Pigs, de Enda Walsh, que viajou pelo Reino Unido, Europa e Canadá, e transformou sua vida.

“Tudo aconteceu em um mês, em agosto de 1996: nos ofereceram um contrato de gravação, reprovei nas minhas provas de direito, consegui o papel em Disco Pigs e conheci minha esposa”, disse. “Agora olho para trás e penso: 'oh, merda, eu não sabia ali quão importantes todas essas coisas eram, o tipo de efeito dominó que teriam na minha vida.'” Perguntei a Murphy, que no passado falou que se identificava como ateu, se tal confluência o fez se perguntar se havia de fato um poder superior organizando tudo isso. “Ah”, afirmou. “Eu amo o caos e a aleatoriedade. Eu amo a beleza do inesperado.”

Naquele fim de semana de inverno, enquanto caminhávamos por Dublin, em uma espécie de divagação joyceana, passamos por uma livraria. “Esta era a minha livraria favorita quando me mudei para Dublin. Não tinha dinheiro e morava com a minha sogra. Chegava aqui e pegava um café de 50 centavos, mas aí eles reabasteciam, sabe? Então, eu ficava lá o dia todo e só lia peças. Depois, colocava-as de volta nas prateleiras, ia para casa e minha sogra fazia o jantar”, contou.

“Só para me educar. Para recuperar o atraso. Porque eu não fui para a escola de teatro, então lia todas as peças que deveria ter lido. Pedia a todos esses roteiristas e diretores que me dissessem as peças que achavam que eu devia ler.”

“O teatro é a chave para Cillian”, me contou o diretor Danny Boyle. “Isso pode soar estranho, dado que ele é um ator de cinema extraordinário.” Tem capacidade, a partir do teatro, de percorrer a grande distância de um arco extremo de personagem. “Todo mundo fala sobre seus olhos sonhadores de Paul Newman. E tudo isso vem a seu favor, claro, porque por trás surge essa capacidade, esse alcance que ele tem em energia vulcânica.” (A outra chave para Cillian, disse Boyle, é que ele é um baita de um irlandês: “Trata-se de uma das grandes, grandes exportações, e a pátria claramente o nutre sempre que possível”.) Boyle escalou Murphy para Extermínio, de 2002, o filme que o tornou conhecido. O longa o levou à parceria com Nolan, bem como a trabalhar com Boyle novamente em Alerta Solar, de 2007.

Cillian Murphy veste look total Ralph Lauren Purple Label | colares Atra Nova por Sheila B. (acima), FoundRae (meio) e acervo pessoal (abaixo) — Foto: Gregory Harris
Cillian Murphy veste look total Ralph Lauren Purple Label | colares Atra Nova por Sheila B. (acima), FoundRae (meio) e acervo pessoal (abaixo) — Foto: Gregory Harris

Nos anos seguintes, Murphy trabalhou com frequência em algumas produções melhores do que outras. “Muitos dos meus filmes eu não vi”, confessou. “Sei que Johnny Depp sempre diz isso, mas é verdade. Geralmente, os que eu não vi são os que ouço que não são bons.”

No verão de 2005, alguns meses após o lançamento de Batman Begins, o ator estava de volta aos cinemas com Voo Noturno, de Wes Craven. Foi uma temporada de vilões. Os dois papéis, de perto, pareciam se aglutinar em torno de um sentimento: aquele cara me assusta.

Ao casualmente perguntar às pessoas sobre o que achavam quando pensavam em Murphy, fiquei chocado com a marca que Voo Noturno tinha deixado no americano de certa idade. “Ah, eu sei, é loucura!”, Murphy disse. “Acho que é a questão da dualidade. Por isso, queria interpretar esse papel. Os dois. O cara legal e o bandido em um homem só. A única razão pela qual me atraiu é que poderia fazer isso” – ele estalou os dedos – “aquela virada, sabe?”

“Dizem que as pessoas mais legais interpretam os melhores vilões”, disse Rachel McAdams, lembrando de seu tempo com Murphy no apertado set de um avião de Voo Noturno. “A gente ouvia música e fazia palavras cruzadas que ele trazia todos os dias e gentilmente me deixava fazer junto dele...”

“Para mim, muito da pesquisa como ator é apenas... viver. Ter uma vida normal fazendo coisas normais. Se você não pode fazer isso porque está indo do festival de cinema para o set, para as divulgações... É um mundo no qual eu não poderia existir.”
— Cillian Murphy

Nesse mesmo período, o astro estrelou Ventos da Liberdade, de Ken Loach, um de seus melhores filmes, e do qual se orgulha de forma única. Um épico de época que conta a história de uma tripulação de amigos irlandeses que lutam contra os britânicos na Guerra da Independência Irlandesa e depois uns contra os outros na Guerra Civil Irlandesa.

O filme é exuberante, angustiante, implacável e nos transporta àquele momento. Murphy tem um rosto que encaixa em qualquer década do século XX — e esse é um dos fatores que faz com que Oppenheimer seja tão convincente.

Murphy e seus diretores conduziram esse atributo de diversas maneiras. Em Operação Anthropoid (2016), como combatente da resistência tchecoslovaca na Praga ocupada por nazistas. Em Free Fire: o Tiroteio (2016), como um membro do IRA envolvido em um acordo de armas que deu terrivelmente errado. Em Dunkirk (2017), como um “soldado tremelicante” britânico que sofre de transtorno de estresse pós-traumático. E, claro, em Peaky Blinders (2013- 2022), como um herói da Primeira Guerra Mundial que virou gângster na Birmingham dos anos 1920. Com esse rosto, ele pode interpretar todos os lados dos conflitos europeus no pré e pós-guerra.

“Cillian sempre ri de como frequentemente interpreta pessoas traumatizadas”, disse Blunt. “Deve ter algo em seu rosto que atrai esse tipo de oferta.”

Em Dublin, andamos por ruas movimentadas. “Peaky [Blinders] ainda é a coisa sobre a qual mais me perguntam no mundo.” Murphy acabou abordado por um fã, que pediu uma foto. “Ah, eu não faço fotos”, explicou ele para um rapaz decepcionado. “Quanto a agir assim”, ele me disse, “minha vida mudou. Só acho que é melhor dizer olá, e conversar um pouco. Você não precisa de um registro fotográfico de todos os lugares em que já esteve um dia.”

“Existe um tipo de maravilha efervescente quando pensamos em Cillian”, afirmou Blunt. “Acho que, para alguém tão interior quanto ele, esse nível de fama cinética é, tipo, horrível. Se existe alguém que não foi feito para a fama, é ele.”

Perguntei a Murphy sobre qual é o status de um possível filme de Peaky Blinders: “Não há status nesse momento. Então, não tenho atualizações. Mas sempre disse que estou aberto a isso, se houver mais história. Adoro como a série terminou, e a ambiguidade disso. Fico muito orgulhoso do que fizemos. Mas estou sempre aberto a um bom roteiro”.

Murphy atuou como produtor executivo das últimas três temporadas de Peaky Blinders, mas estava em busca de um primeiro filme para produzir. Garantiu os direitos de Small Things Like These, de Claire Keegan, finalista do Booker Prize. Em uma noite no set de Oppenheimer, enquanto ele e Damon estavam sentados no deserto, Damon contou a Murphy sobre sua nova empresa com Ben Affleck, a Artists Equity, cujo modelo financeiro tem como premissa a participação nos lucros com a equipe. Murphy enviou o livro para a dupla e a Artists Equity acabou por financiar o longa.

Small Things Like These gira em torno de um homem comum em uma pequena cidade no condado de Wexford que se depara com um segredo horripilante no convento local — as chamadas Lavanderias Madalena, que, do século XVIII aos anos 1990, mantiveram milhares de meninas e mulheres prisioneiras em casas de trabalho da Igreja. Perguntei a Murphy se, com seu novo poder, achava importante contar histórias irlandesas. Não especialmente, disse. O único critério era: qual é a melhor história para este momento? “Se você puder fazer algo que seja divertido e comovente, mas também gere algumas perguntas sobre quem somos e fomos como nação, e até onde chegamos, então isso é ótimo.”

Murphy contou, em um momento, brincando, que passou a greve dos atores em casa “comendo queijo”, mas o que realmente fez foi editar Small Things, que estreou em fevereiro no Festival Internacional de Cinema de Berlim, e supervisionar “todas as coisas adoráveis a que nós, atores, nunca damos atenção”.

O astro possui uma propensão natural a um estilo de vida analógico que funciona bem com Nolan, que não usa e-mail nem tem smartphone. “Almejo essa vida”, revelou Murphy. “Limpei muita coisa do meu telefone, mas preciso manter os aplicativos para música e descoberta de música.”

“Ainda tenho todos os meus CDs, DVDs e Blu-Rays”, disse. “Não consigo me livrar deles. Eu me livrei do meu VHS, no entanto. Só o deixei na rua, porque ninguém o queria.”

Trabalhar com Nolan pode soar como uma fuga muito desejada da vida moderna. “Quando estou no set com Chris, aquilo parece um pouco com um laboratório privado e íntimo”, disse Murphy. “Mesmo que ele trabalhe em ritmo acelerado, sempre há espaço para curiosidade e para descobrir coisas, e é isso que fazer arte deve ser, sabe? Não há telefones, mas também não há avisos: todo mundo sabe o que deve ser feito. E não há cadeiras. Porque ele não se senta. Às vezes, um set de filmagem pode parecer um piquenique. Mas por quê?”

Murphy me contou que ouviu “um dos Sydneys” — Lumet ou Pollack — dizer que se leva trinta anos para formar um ator. “Eu já tenho 27”, calculou. “Estou perto.” Aqui está um homem — um homem de 47 anos, que poderia interpretar um personagem de 27 com a luz certa e um de 67 com a maquiagem certa — que provavelmente vai ganhar o Oscar de melhor ator, mas cuja mente não poderia se ver mais longe das conversas e do burburinho de sua indústria. “Realmente, sou meio que patologicamente antissentimental”, disse. “Apenas sigo em frente, e muito rapidamente.”

“Há algumas coisas que Francis Bacon (pintor que admira) disse que sempre acho que se aplicam ao nosso meio. ‘O trabalho do artista é sempre o de aprofundar o mistério.’ Filmes provocativos. Performances provocativas. Sem respostas fáceis, mas talvez algumas perguntas novas. Não dê tudo. Não dê nem mesmo a maior parte. Recue. Seja claro. Com você mesmo, mas não necessariamente com os outros. Deixe a onda da fama passar. Viva à beira-mar.”

E ele repete: “Aprofunde o mistério. É isso, não é?”

Cillian Murphy é capa de março da GQ Brasil — Foto: Gregory Harris
Cillian Murphy é capa de março da GQ Brasil — Foto: Gregory Harris

Styling: George Cortina
Tradução: Gabriela Fróes
Cabelo: Teddy Charles da Nevermind Agency
Pele: Holly Silius com Lyma e YSL Beauty
Cenário: Colin Donahue para Owl and the Elephant Agency
Produção: Paul Preiss da Preiss Creative

Onde adquirir a GQ de março

Cillian Murphy estampa a capa da edição de março da GQ Brasil. Adquira a sua nas bancas ou no aplicativo Globo+ e na loja virtual, com entrega para a Grande São Paulo e para Rio de Janeiro, Curitiba, Brasília, Porto Alegre e Campinas. Para fazer sua assinatura, clique aqui.

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