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Por Emilio Botta e Laura Monteiro — São Paulo


O torcedor brasileiro é verdadeiramente apaixonado por futebol ou apenas quando o seu time vence? O questionamento pode valer se levarmos em consideração as divisões periféricas do esporte no país, como a quarta e última divisão do Campeonato Paulista, a Bezinha.

Sem grandes atrativos e com estádios cada vez mais vazios, muitos clubes e palcos tradicionais do futebol paulista lutam pela sobrevivência. E, pior, quase sem testemunhas.

Em 2019, reportagem mostrou que bilheteria do estádio Teixeirão havia se tornado casa para funcionário do clube

Em 2019, reportagem mostrou que bilheteria do estádio Teixeirão havia se tornado casa para funcionário do clube

Inaugurado em 1996 com capacidade para 45 mil lugares, o estádio Benedito Teixeira, o Teixeirão, em São José do Rio Preto, é um retrato do sumiço dos torcedores em jogos do tradicional América.

Nos últimos dez anos, sendo nove dessas temporadas com o América na última divisão estadual, o estádio recebeu apenas 30% de sua capacidade total. Somando o público de todos os 70 jogos disputados no local, o clube só conseguiu atrair 14.882 pessoas (veja em detalhes abaixo).

Estádio Teixeirão, casa do América de Rio Preto — Foto: Gustavo Bottini/6três Comunicação

Além de ter média de apenas 212 torcedores por partida disputada na última década, o América precisa lidar também com o prejuízo dos custos da realização dos jogos. No mesmo período, o clube teve déficit de R$ 65.683,40 e fechou no vermelho em 48 dos 70 jogos disputados no Teixeirão.

O melhor público do América no estadual deste ano foi 110 pagantes, em jogo contra o Taquaritinga. A pior marca foi de 75 pagantes contra o Batatais. Na soma das outras quatro partidas em casa, foram apenas 359 pessoas presentes no estádio em São José do Rio Preto.

  • Números de jogos no Teixeirão entre 2013 até 2023*: 70
  • Público total no período: 14.882 pessoas
  • Média de torcedores por jogo: 212 pessoas
  • Capacidade total do estádio: 45 mil pessoas
  • Capacidade atual do estádio: 33 mil pessoas
    *Números contabilizados até a décima rodada da 4ª divisão de 2023.

O cenário atual é bem diferente do auge vivido pelo Teixeirão, antes considerado a "segunda casa" dos grandes clubes de São Paulo, quando Corinthians e Palmeiras ainda não possuíam suas modernas arenas.

O estádio, quarto maior do estado (atrás de Morumbi, Neo Química Arena e Allianz Parque), costumava receber jogos da Série A do Brasileiro, Copa do Brasil e ainda foi palco do título brasileiro do Santos, em 2004, além de um amistoso da seleção brasileira. Hoje, não tem nem iluminação para jogos à noite.

Estádio Benedito Teixeira, em São José do Rio Preto — Foto: Reprodução/TV TEM

Em 2018, o ge mostrou que o estádio lutava contra o abandono e que a falta de manutenção básica chegou a fazer do local uma moradia para usuários de drogas. Atualmente, o Teixeirão recebe reparos frequentes e melhorias pontuais em sua estrutura, de acordo com os recursos obtidos pelo América, dono do imóvel construído em um terreno de 43 mil m².

Em campo, o América conseguiu passar para a segunda fase da competição, mas a crise continua. Jogadores chegaram a ameaçar não entrar em campo nas últimas rodadas por causa do atraso no pagamento dos salários. Segundo eles, falta até comida.

Em 2004, Santos vence o Vasco e levanta a taça de campeão brasileiro em Rio Preto

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Clubes flertam com o anonimato

Outros times tradicionais do futebol paulista também sofrem com a falta de público nos estádios, algo incomum até pouco tempo. Um dos exemplos é o Paulista, vice-campeão estadual em 2004, campeão da Copa do Brasil no ano seguinte e que em 2006 estava disputando a Libertadores da América. O time quase fechou as portas em 2018.

O Galo de Jundiaí, eliminado na primeira fase neste ano, ainda conseguiu atrair públicos maiores do que o América, mas longe de quando recebeu em casa o River Plate, pela Libertadores.

Em 2023, a melhor marca foi de 1.235 torcedores contra o Colorado Caieiras. Na rodada seguinte, jogo que decretou o rebaixamento para a quinta divisão, apenas 575 pessoas acompanharam a derrota por 2 a 0 para o União Barbarense.

Sem jogos do time, o estádio Jayme Cintra agora será utilizado pelo time feminino do Palmeiras no restante do ano.

Paulista perde para União Barbarense e cai para a quinta divisão do estadual

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O Mogi Mirim, que até 2015 estava na Série B do Brasileiro, teve público total de apenas 281 pagantes nos cinco jogos em que disputou. Com problemas administrativos, o clube foi obrigado a mandar jogos em Itapira e Amparo e atuou no estádio Vail Chaves apenas uma vez. Em nenhuma delas conseguiu passar de 100 pagantes. Veja abaixo:

  • Mogi Mirim x XV de Jaú (em Itapira): 75 pagantes
  • Mogi Mirim x União São João (em Itapira): 81 pagantes
  • Mogi Mirim x São-Carlense (em Amparo): 18 pagantes
  • Mogi Mirim x São Carlos (em Amparo): 39 pagantes
  • Mogi Mirim x Independente (em Mogi Mirim): 68 pagantes

União São João, Rio Branco, XV de Jaú, Taquaritinga e União Barbarense são os únicos entre os 36 participantes que conseguiram alguma marca um pouco expressiva no torneio até agora.

O clássico União Barbarense x Rio Branco detém o maior público até o momento, com 1.914 pagantes, seguido por dois jogos do Taquaritinga, contra Francana (1.892) e Inter de Bebedouro (1.841).

A média de público por jogo na competição é de apenas 353 pessoas. No confronto entre Santacruzense e Fernandópolis, pela quinta rodada da primeira fase, apenas seis torcedores pagaram ingresso.

XV de Jaú x Mogi Mirim: duelo tradicional do futebol paulista recebeu 1.123 torcedores no Zezinho Magalhães — Foto: César Mantovelli/XV de Jaú

Desde que teve início, em abril, a última divisão do Campeonato Paulista contabiliza 180 jogos, sendo que 49 deles tiveram público inferior aos 100 pagantes. Até o momento, nenhuma partida teve mais de duas mil pessoas presentes (veja o detalhamento abaixo).

  • Total de jogos*: 180
  • Público total*: 63.611 pessoas
  • Média de público por jogo*: 353 pessoas
  • Jogos com até 100 pagantes*: 49
  • Jogos com 101 até 999 pagantes*: 117
  • Jogos com mais de mil pagantes*: 14
  • Jogos com mais de 2 mil pagantes*: 0
    *Números contabilizados até a décima rodada.

A Federação Paulista de Futebol (FPF), organizadora da competição, exige que um clube participante da quarta e última divisão tenha um estádio com capacidade para pelo menos quatro mil pessoas. O preço das entradas varia de R$ 10 a R$ 20.

A partir de 2024, uma nova divisão será criada, e o Campeonato Paulista passará de quatro para cinco níveis de disputa. A grande preocupação dos clubes é para um desinteresse ainda maior por parte dos torcedores com a criação da quinta divisão, ainda sem um número fixo de equipes participantes.

Sede da Federação Paulista de Futebol em São Paulo: entidade diz que investe quase R$ 6 milhões anuais na Bezinha — Foto: ANDERSON ROMÃO/AG. PAULISTÃO

Em nota ao ge, a entidade máxima do futebol paulista afirma que investe anualmente quase R$ 6 milhões na competição, incluindo cotas, premiações aos clubes e despesas como arbitragem, custos de ingressos, antidoping e transmissão gratuita dos jogos. Veja a nota na íntegra abaixo:

"O Paulista Sub-23 Segunda Divisão é uma das competições mais importantes do calendário paulista, e que será remodelada a partir de 2024, por decisão direta dos clubes. Atualmente, FPF investe quase R$ 6 milhões anualmente na competição, incluindo cotas, premiações aos clubes e despesas como arbitragem, custos de ingressos, antidoping e transmissão gratuita de todos os jogos, cuja audiência somada ultrapassou 1,2 milhão de pessoas em 2023."

"A FPF também oferece aos clubes eventos de capacitação com abordagem de temas como Operação de Jogo, Certificado de Clube Formador, Manutenção de Gramados, Prevenção de Lesões, Manipulação de Resultados, dentre outros. No último domingo (25) e segunda (26), a FPF realizou Encontro Técnico com os clubes classificados para a segunda fase, onde discutiu diversos temas atuais em palestras e mesas redondas."

Jogo ruim e transmissão na internet: por que o público sumiu?

Luiz Donizette Pietro, presidente do América, credita o desinteresse dos torcedores ao baixo número de partidas ao longo dos anos.

Todos os jogos da quarta divisão do Campeonato Paulista também são transmitidos ao vivo pela internet, o que, na visão de alguns clubes, também colabora para um menor público presencial nos estádios. Segundo números da Federação Paulista, mais de um milhão de pessoas assistiram aos jogos transmitidos ao longo da atual edição da competição.

– Enxergo que são poucos jogos no ano, você desacostuma o público a vir ao estádio. Quase não tem jogo, o povo esquece do time. Se tem um calendário anual de jogos, você habitua o torcedor a ir ao estádio. Uma competição de dois, três meses, até o pessoal acostumar já acabou o campeonato – disse o dirigente.

Paulista x União Barbarense: jogo decretou rebaixamento do clube de Jundiaí — Foto: Edivaldo Santos/Paulista FC

Com média de apenas sete partidas por ano na última década, o América busca outras receitas para manter o estádio viável. A ideia é não só ter lucro com o local, mas conseguir equacionar as contas, o que seria uma grande vitória do clube fora de campo.

– Por isso o América está abrindo o estádio para eventos, shows. A conta não bate, o estádio tem que dar lucro e o América está transformando em arena para que ele possa dar lucro. O estádio está sem iluminação, estamos contratando uma empresa para refazer esse sistema de acordo com a CBF para trazer os grandes jogos de volta para Rio Preto – disse Italiano, como é conhecido o presidente.

Quem são as pessoas que vão as jogos?

O ge esteve presente em alguns dos jogos da edição 2023 da "Bezinha" para entender o perfil de quem acompanha os "jogos para quase ninguém". São vários os motivos que levam os torcedores aos jogos da quarta e última divisão do Campeonato Paulista.

Roseli Garcia era uma das 221 pessoas que pagaram ingresso para assistir Nacional e Barcelona, jogo válido pela quarta rodada, disputado no estádio Nicolau Alayon, em São Paulo.

O motivo? Gabriel, filho que busca, entre tantos outros garotos, o sonho de ser jogador profissional. Há dois meses treinando no Barcelona, a angústia da mãe era saber o motivo de o filho sequer ter sido inscrito para disputar a competição.

– Por que o Gabriel não está jogando? Só queria que dessem uma chance pra ele – disse Roseli, que queria tirar satisfações diretamente com o diretor do clube, mesmo a contragosto do filho.

– Ele (Gabriel) não quer, acha que vou queimar o filme dele.

Alambrado do estádio Nicolau Alayon onde Roseli busca explicações pelo filho não estar em campo pelo Barcelona — Foto: Laura Monteiro

Aos 21 anos, Gabriel sonha com a seleção brasileira, mas sabe que o caminho é longo. O jovem jogador começou a trajetória na escolinha do Nacional, mas teve uma passagem pelo Corinthians. Depois de terminar o Ensino Médio, o lateral-direito precisou parar de jogar para ajudar com as despesas de casa.

– Nesse mundo do futebol, ou você joga ou estuda – disse.

Foram quatro anos até concluir a graduação em fisioterapia. Recém-formado, Gabriel se divide entre o trabalho e a bola. Do final do ano passado para cá, fez testes no Guaratinguetá e no Brasilis FC, que não vingaram. Mas uma coisa é certa: ele está decidido a correr atrás da sua maior paixão.

Gabriel posa com Roseli e o pai com o diploma de fisioterapeuta — Foto: Arquivo Pessoal

Abraçado à mãe, o garoto não parou de agradecer o papel e suporte da família na curta carreira. Gabriel nasceu na Paraíba e, com dois dias de vida, Roseli foi buscá-lo e o trouxe a São Paulo.

– Eu sou adotado, né? Ela é minha mãe do coração – contou o garoto, que viu o Barcelona ser eliminado ainda na primeira fase do estadual e ser rebaixado para a quinta divisão.

Tietagem e pedido de camisa

Ariel, Louis e José são nômades de arquibancada: neste exato momento, estão em um lugar. Daqui a cinco minutos, você já os perdeu de vista. De repente, enxerga-os, com os olhos franzidos, a bons metros de distância. Os três garotos não gostam da multidão, preferem o silêncio. São observadores e atentos aos detalhes - com apenas 12 anos de idade.

Por morarem na região, eles frequentam quase todos os jogos no estádio Nicolau Alayon. José, um dos três amigos, é tagarela e falou no lugar dos outros dois.

– A gente prefere assistir jogos menores porque tudo é diferente e mais acessível – contou.

Visão da arquibancada do estádio Nicolau Alayon, em São Paulo, casa do Nacional — Foto: Laura Monteiro

O menino, que parecia com pressa, disse estar presente na partida por conta de uma promessa. Na segunda rodada, quando o Nacional enfrentou o Jabaquara, José, ao final do jogo, pediu para tirar uma foto com Lucas Vargas, lateral-direito do time da casa. Era a primeira vez que o jogador foi abordado por um torcedor. Por isso, prometeu a camisa para o garoto.

Quando o juiz apitou e fez o gesto de fim de jogo, José já estava grudado ao alambrado que liga o campo ao vestiário da equipe, esperançoso pelo presente do jogador. Após sumir pela sombra do túnel, o garoto não voltou mais.

Mochileiros da bola

Entre os 76 pagantes de Barcelona x Mauá, o sotaque carioca de dois homens se destacou no meio da arquibancada vazia da Rua Javari. Eram Raphael e Rodrigo, uma dupla de amigos que viaja pelo Brasil inteiro por causa de uma paixão: o futebol.

Rua Javari recebeu apenas 76 pagantes para Barcelona x Mauá

Rua Javari recebeu apenas 76 pagantes para Barcelona x Mauá

Os amigos são mochileiros da bola, percorrem o Brasil de carro e ônibus para acompanhar os jogos mais aleatórios. Só este ano, Raphael conta que foi a 86 partidas, em 32 estádios e sete estados diferentes, contando apenas jogos do profissional. Se contar jogos de base e futsal, a marca já ultrapassou os 100 jogos. Rodrigo diz que esteve em 58 jogos, 26 estádios e em cinco estados diferentes.

– Nós nos conhecemos há 11 anos. Somos colecionadores de camisas do Vasco e devido a esse hobby em comum, acabamos tendo contato pela internet – explicou Raphael.

Rua Javari, estádio tradicional de São Paulo recebeu Barcelona x Mauá pela 4ª divisão do Paulista — Foto: Laura Monteiro

Os dois fizeram da diversão a fonte de renda: eles possuem uma loja de camisas focada em colecionadores. Por isso, cada jogo que assistem pelo Brasil também é uma forma de aumentar as opções de negócio com camisas consideradas raras para os amantes do futebol.

– Cada viagem por si só tem suas características, mas acho que a mais legal que fizemos foi ano passado, dia 13 de agosto. Foi um dia que conseguimos ir em três jogos. De manhã, às 11h, teve Vasco x Tombense, em São Januário. Vimos uma grande vitória do nosso time de coração. Assim que acabou, saímos correndo e fomos para Saquarema, uma viagem de cerca de duas horas de carro, porque às 15h tinha a final da Taça Corcovado (Série A2 do Carioca), entre Olaria x Americano.

Como funciona a Bezinha?

Dos 36 participantes, apenas dois sobem para a Série A3. A segunda fase da competição começa nesta sexta-feira. Os 24 clubes estão divididos em seis grupos de quatro times cada. Os dois primeiros de cada grupo avançam para a terceira fase, além dos quatro melhores terceiros colocados.

Na terceira fase, os 16 clubes classificados são divididos em quatro grupos de quatro equipes. Avançam para as quartas de final os dois primeiros de cada grupo.

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