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Por Rafael Lopes

Comentarista de automobilismo do Grupo Globo

Voando Baixo — São Paulo

Clive Mason/Getty Images

Algo me diz que estava escrito para ser dessa forma. A chuva tinha de ser protagonista. Não seria a mesma coisa sem ela. Até para mudar o dia da homenagem, da tarde de sábado para a manhã de domingo, dia e horário clássicos das corridas de Fórmula 1 no Brasil. Para quem estava presente ao Autódromo José Carlos Pace, em Interlagos, no dia 3 de novembro, foi uma espécie de uma volta ao passado. Passado que a maioria das pessoas que estava presente ao circuito sequer viu. Mas ouviu falar. De seu pai, de sua mãe, de seus avós. Foi como se uma máquina do tempo transportasse aquelas 110.260 pessoas direto para os anos 1980 e 1990. Um dia de sensações.

Lewis Hamilton rasga a reta de Interlagos com a McLaren MP4/5B de Ayrton Senna em 1990 — Foto: Mark Thompson/Getty Images

O som daquele motor Honda V10 na McLaren MP4/5B usada por Ayrton Senna na temporada de 1990... ninguém escapou daquela sensação. Quando ouvi Lewis Hamilton acelerar aquele carro... veio aquele arrepio. Como se estivesse ouvindo uma orquestra rasgando as curvas e retas de Interlagos. O capacete amarelo com detalhes em verde e azul no carro vermelho e branco trouxe muitas memórias à tona. Quem viveu aqueles anos certamente lembrou de tempos felizes. Muito mais do que apenas corridas nas manhãs, madrugadas e tardes de domingo. De 15 em 15 dias as pessoas, as famílias se juntavam para torcer por Senna na frente da televisão. Muitas vezes era um escape de uma dura realidade, em um Brasil muito pior do que o atual. E que ajudou a criar laços afetivos.

NA PONTA DOS DEDOS: Rafael Lopes e Luciano Burti comentam a homenagem a Ayrton Senna

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Creio que o mais impressionante naquele dia da homenagem foi o silêncio. O silêncio que precedia a passagem de Hamilton com o MP4/5B. O silêncio que se seguia à passagem de Hamilton com o MP4/5B. Não se ouvia uma voz vinda das arquibancadas. O público parou para contemplar aquele momento, como poucas vezes se vê nos conectados dias atuais. Por 11 minutos, as memórias construídas pelos relatos e por aqueles vídeos com resolução ruim e cores esmaecidas se concretizaram a poucos metros daquelas pessoas. Quem não pôde ver Senna ao vivo, teve uma experiência inesquecível para chamar de sua. E, como toda memória, passar adiante. Repetir o gesto que fez tantas pessoas cultuarem o tricampeão mesmo 30 anos depois de sua morte. E por tanta gente que o sequer viu acelerar nos autódromos do mundo.

A bandeira do Brasil foi o toque final para as lágrimas rolarem por todo o autódromo. Além do público já encharcado pela chuva que caía desde a tarde de sábado, poucas vezes vi tanta gente no paddock de uma corrida de Fórmula 1 aos prantos. E sem exceção: brasileiros, ingleses, italianos, espanhóis... não houve quem escapasse ileso àquela emoção. Memórias de um tempo romântico do esporte que dificilmente vai voltar. Para quem acha que Senna foi apenas um fenômeno brasileiro, todas as homenagens a ele ao redor do mundo, todos os anos, servem para mostrar o quanto o tricampeão foi importante não só para o esporte, mas para muitas pessoas - não importando a nacionalidade delas.

Lewis Hamilton contorna o S do Senna com a McLaren MP4/5B de Ayrton Senna em 1990 — Foto: Stringer/Anadolu via Getty Images

Até por isso, não havia escolha melhor do que Lewis Hamilton para esta homenagem, principalmente por toda a ligação do heptacampeão inglês com o tricampeão. Ter um estrangeiro ao volante da McLaren de Ayrton Senna em pleno Autódromo José Carlos Pace mostra o tamanho do alcance do legado do piloto brasileiro. Neste ano, em Imola, o alemão Sebastian Vettel, tetracampeão da Fórmula 1, já havia andado na MP4/8 de 1993. Nós, brasileiros, já temos uma ligação natural e afetiva com Senna. O que sempre me impressionou, desde a minha primeira viagem internacional a trabalho, justamente para o mítico circuito de Donington Park, na Inglaterra, foi justamente a reverência internacional ao piloto.

Algo que só aumenta ao longo dos anos. E a volta de Hamilton com a bandeira brasileira, além da reverência a Senna, serve para reforçar ainda mais a identificação de um piloto com um país. Um país que ele escolheu também chamar de seu. Um cidadão inglês mais brasileiro que muitas pessoas que apenas nasceram no país - e agora cidadão honorário. Assim como na vitória épica de 2021, selando a identificação de um piloto com um país. E também a identificação de um país com um piloto.

Lewis Hamilton reverencia a McLaren MP4/5B de Ayrton Senna em 1990 após a volta em Interlagos — Foto: Peter Fox/F1 via Getty Images

Som, silêncio, lágrimas, memórias. Um domingo de muitas sensações. Sem dúvidas, um domingo inesquecível em Interlagos.

Obrigado, Lewis Hamilton.

Obrigado, Ayrton Senna.

Lewis Hamilton levanta a bandeira do Brasil na homenagem a Ayrton Senna em Interlagos — Foto: Peter Fox/F1 via Getty Images

Perfil Rafael Lopes — Foto: Editoria de Arte/GloboEsporte.com

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