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Por Gabriel Oliveira — São Paulo


Em um movimento que pode representar uma ameaça à alimentação saudável no Brasil, os alimentos ultraprocessados passaram a ser mais baratos do que os in natura, minimamente processados e ingredientes culinários. A reforma tributária, em discussão no Congresso, é a esperança de especialistas para sobretaxar os ultraprocessados e livrar de imposto o que é benéfico à saúde, de modo a incentivar o consumo de alimentos saudáveis.

Produtos ultraprocessados estão acessíveis no mercado e cada vez mais baratos em relação à alimentação saudável — Foto: iStock

Produtos frescos ou minimamente processados são boa parte da alimentação dos brasileiros (48,6%), segundo os últimos dados disponíveis, de 2017-2018, da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IGBE), mas o consumo de ultraprocessados tem crescido nos últimos anos.

A fatia de ultraprocessados na alimentação dos domicílios saiu de 14,3% em 2002-2003 para 19,4% em 2017-2018, acompanhando uma tendência de diminuição gradativa dos preços dos produtos ao longo das décadas, o que os tornou cada vez mais acessíveis para compra.

— Por serem ultraprocessados, os produtos têm a benesse de mexer na composição. A partir do momento em que o ingrediente fica caro, substitui-se por outra coisa mais barata. Além disso, os ingredientes baratos dos ultraprocessados podem ser comprados em escala muito grande, porque são empresas transnacionais. Eles não só têm escala para fazer a compra, como possuem mecanismos de proteção. E as cadeias de produção mais complexas conseguem fazer movimentos disruptivos. Abrem-se plantas em novos locais e conseguem-se facilidades tributárias. O resultado disso, com o passar do tempo, é que os ultraprocessados tendem a sempre ficar mais baratos — explica Rafael Moreira Claro, professor na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens-USP).

Ultraprocessados são alimentos industrializados produzidos inteiramente ou majoritariamente de substâncias extraídas de alimentos, derivadas de constituintes de alimentos ou sintetizadas em laboratório com base em aditivos alimentares. Eles têm adição de açúcares, sódio, gorduras e produtos químicos, ao mesmo em que são pobres em vitaminas, sais minerais e fibras. Por isso, fazem mal à saúde. Revisão de estudos recente associou os ultraprocessados à possível ocorrência de 32 problemas de saúde, inclusive cânceres.

Tendência de inversão de preços

Segundo levantamento do Nupens-USP desde 1994, alimentos saudáveis (in natura, minimamente processados e ingredientes culinários) têm uma tendência contínua de alta nos preços, enquanto os não saudáveis vêm barateando. Para fazer essa comparação, os valores são deflacionados, ou seja, a inflação do período é desconsiderada.

O Nupens-USP projetava que o preço (R$ por kg) da comida não saudável superaria o da saudável em 2026, mas constatou que isso já aconteceu a partir de 2022, segundo estudo divulgado durante a realização do Congresso Brasileiro de Nutrição (Conbran), em São Paulo, e publicado na revista norte-americana Plos One. Foram considerados os 95 alimentos e bebidas mais consumidos no Brasil.

Conforme os pesquisadores, a pandemia de Covid-19, como evento inflacionário, acelerou tal movimento nos preços, em razão da diminuição da oferta e da explosão na demanda.

— Ainda que a inflação tenha afetado o preço de todos os alimentos, a pressão inflacionária é sempre maior sobre os alimentos in natura e minimamente processados, porque há menos mecanismos na cadeia para amortizar aumento de preço — explicou o professor da UFMG em palestra no Conbran.

Conforme os dados disponíveis até março de 2022, considerados no estudo do Nupens-USP, os alimentos in natura, minimamente processados e ingredientes culinários custavam, em média, R$ 15,11 em 2018 e chegaram a R$ 17,43 em 2022. Por outro lado, no mesmo período, as médias dos preços dos processados caíram de R$ 16,82 para R$ 14,96 e dos ultraprocessados diminuíram de R$ 21,78 a R$ 18,60.

Com a margem de erro e as projeções até 2025, é possível dizer que os ultraprocessados já passaram a ter uma tendência de custar menos do que os alimentos saudáveis.

— Isso não quer dizer que não haja opção barata de alimento saudável. O que reflete é que, pouco a pouco, as opções baratas estão ficando para trás. Tem um conjunto cada vez mais restrito de opções baratas para o saudável e um conjunto mais amplo de opções baratas para o não saudável — comenta Rafael.

Preço da comida e insegurança alimentar

No estudo, os pesquisadores do Nupens-USP e também da UFMG e do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) alertam que "o aumento do preço dos alimentos saudáveis ​​agrava a insegurança alimentar e nutricional no Brasil", em uma tendência que "incentiva a substituição das refeições tradicionais pelo consumo de alimentos não saudáveis, aumentando o risco à saúde da população".

O último Panorama Regional de Segurança Alimentar e Nutrição, da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), mostra que o custo da alimentação saudável no Brasil vem crescendo: subiu de US$ 2,80 por pessoa por dia em 2017 e chegou a US$ 3,35 em 2021. No último ano do relatório, o número de brasileiros que não podiam acessar uma alimentação saudável chegou a 48,1 milhões.

Segundo os dados nacionais mais recentes do POF-IBGE, a alimentação corresponde a, em média, 17,5% dos gastos totais do brasileiro. Esse número diminuiu com o tempo, pois, em 1974, a comida correspondia a 33,9% do total de despesas. Mas deveria ser ainda menor, de 10% a 13%, que é o patamar de países ricos.

Com uma margem maior, a população poderia fazer escolhas mais saudáveis sem comprometer outras despesas obrigatórias, como habitação e transporte. Grupos alimentares menos consumidos são os que têm maiores preços. Da mesma maneira, os grupos com preços mais altos possuem consumo menor.

Individualmente, é possível trocar uma alimentação rica em açúcares, gorduras, sódio e aditivos alimentares por uma dieta saudável, com verduras, legumes, carboidratos e proteínas. Mas a preocupação dos especialistas é com as políticas públicas que façam isso ser possível para a população brasileira.

— É possível priorizar o consumo de alimentos tradicionais, como arroz, feijão e farinha de mandioca, e carnes de menor custo sem teor de gordura elevado. Há um caminho que não seja impeditivo pela renda. Só que, à medida que se fecham as possibilidades, tudo começa a ficar mais difícil. E esse é o papel da política pública: é fazer a escolha mais saudável ser a escolha mais fácil. Na hora em que a escolha mais saudável começa a ser mais difícil, número cada vez menor de pessoas consegue aderir à escolha saudável — analisa o pesquisador do Nupens-USP.

Tributação de ultraprocessados

Segundo a socióloga Paula Johns, diretora-executiva da ONG ACT Promoção da Saúde, o preço dos alimentos "está ligado muito intimamente às escolhas que as pessoas têm possibilidade de fazer".

— Se há uma quantidade grande de ultraprocessados ficando cada vez mais baratos, como miojo, salsicha e biscoito recheado, é um incentivo ao consumo de coisas nocivas muito forte. Isso é uma grande ameaça, porque preço é muito significativo no acesso — considera a especialista, fazendo coro a outros defensores da alimentação saudável.

— O hábito é importante, mas é claro que, se uma coisa que a pessoa estava habituada a consumir fica mais cara, a pessoa deixa de consumi-la. E se, por outro lado, outras coisas mais caras passam a ser mais acessíveis, isso pode ser acessível ao consumo. Dependendo da população, é comer o que dá para pagar, e não o que é melhor para a saúde.

A ACT é uma das signatárias de um manifesto que pede que a regulamentação da reforma tributária imponha impostos seletivos, maiores, sobre os ultraprocessados.

— Tributação é uma das políticas de um conjunto de políticas públicas importantes e acaba sendo a mais determinante, pelo histórico, por exemplo, na área do tabaco. O que fez a redução de consumo de cigarro, dentre as várias políticas adotadas, a mais importante foi a majoração de tributos. Isso é importante que seja realizado com outras políticas, como alimentação escolar e em outros ambientes institucionais e as questões da publicidade e da rotulagem.

A representante da ACT chama atenção que o sistema tributário brasileiro não está alinhado com o que preconiza o Guia Alimentar para a População Brasileira.

Ela dá exemplos: em São Paulo, a salsicha, que é produto ultraprocessado, está presente na cesta básica e tem a mesma alíquota de ICMS de 7% do arroz e feijão; refrigerante apresenta a mesma alíquota do IPI de uma água mineral engarrafada; e alimentos como macarrão instantâneo, nuggets e néctar de frutas têm isenção de IPI.

Com a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da reforma tributária já aprovada, a discussão agora se concentra regulamentação, fase na qual os especialistas veem riscos de, apesar de frutas, vegetais e ovos terem isenção de imposto, os ultraprocessados serem colocados em uma faixa de tributação com alíquota menor do que a de hoje em dia, o que os tornariam ainda mais baratos.

Para a ACT e outras entidades de promoção de saúde, os ultraprocessados devem ser colocados na cesta de imposto seletivo, junto de refrigerante, álcool e cigarro.

— A gente precisa de um sistema tributário que seja pró-saúde, pró-sustentabilidade e pró-justiça social, e o sistema tributário vigente é contra isso tudo — pondera Paula.

— A tributação é importante para garantir uma certa sobrevivência dos alimentos saudáveis em um patamar econômico razoável. Em um cenário ideal, alimento saudável não deveria pagar imposto. E taxar alimentos não saudáveis não só cria um cenário de justiça tributária, como também mitigo o dano que esses produtos causam para a saúde das pessoas, para o sistema de saúde e para o meio ambiente em que está inserido. Existem um milhão de razões para taxar e nenhuma razão para preservar o sistema tributário como está atualmente — defende Rafael.

Fontes:

Rafael Moreira Claro é professor associado de Nutrição da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador no Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens-USP). Graduado em Nutrição, tem mestrado e doutorado em Nutrição e Saúde Pública, com pesquisas sobre preço da alimentação.

Paula Johns é socióloga e mestre em estudos de desenvolvimento internacional pela Universidade de Roskilde, na Dinamarca. Atua no terceiro setor desde 1998, coordenando projetos voltados à promoção de direitos humanos, equidade de gênero, preservação do meio ambiente e saúde pública. É diretora-executiva da ACT Promoção da Saúde.

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