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Por Gabriel Oliveira e PH Nascimento — São Paulo


O debate sobre esportes eletrônicos serem esportes ou não voltou à pauta após as declarações da ministra do Esporte, Ana Moser, de não considerar esports como esportes e, por isso, não prever investimento público no mercado de competições de games. O assunto é complexo e não há consenso sobre a conceituação de esports, embora seja possível equipará-los com os esportes tradicionais, segundo especialistas e estudos consultados pelo ge.

Profissionais que trabalham com esports tendem a defendê-los como esportes, enquanto estudiosos do Esporte consideram a classificação complexa demais para responderem somente "sim" ou "não", já que há diferentes vertentes de conceituação sobre o que são esportes. Entra nessa discussão ainda o fato de que os jogos eletrônicos são propriedades intelectuais de empresas, ou seja, têm donos, ao contrário dos esportes tradicionais.

Jogadores da LOUD disputam a final do 2º Split do Campeonato Brasileiro de League of Legends (CBLOL) de 2022 no Ginásio do Ibirapuera, em SP — Foto: Riot Games

Esports são esportes?

A polêmica comparação entre esports e esportes ressurgiu após as declarações de Ana Moser, que revoltaram a comunidade gamer brasileira. Astros como o streamer Alexandre "Gaules", o jogador profissional de Counter-Strike: Global Offensive (CS:GO) Gabriel "FalleN" e o empresário e influenciador Bruno "Nobru" reagiram nas redes sociais.

"Esports" não consta no dicionário em português e é resultado da junção de duas palavras em inglês: "electronic" e "sports", que significam "eletrônico" e "esportes". O termo nasceu em 1988, primeiro chamado de "online sports game" (jogo esportivo online) pela revista norte-americana Wired, e depois evoluiu para "esports" em 1999, em um comunicado à imprensa sobre o lançamento da associação Online Gamers Association. Há duas décadas, portanto, que os esports estão ligados aos esportes na nomenclatura adotada pela comunidade de jogos eletrônicos competitivos.

Mas, antes de tudo, o que é esporte?

No dicionário Michaelis, "esporte" é assim definido:

  1. Prática metódica de exercícios físicos visando o lazer e o condicionamento do corpo e da saúde;
  2. O conjunto das atividades físicas ou de jogos que exigem habilidade, que obedecem regras específicas e que são praticados individualmente ou em equipe;
  3. Cada uma dessas atividades; desporte, desporto.
  4. Atividade de lazer ou de divertimento; hobby, passatempo.

A Lei Geral do Desporto do Brasil conceitua que o desporto brasileiro abrange práticas formais (reguladas por normas nacionais e internacionais e pelas regras de prática desportiva de cada modalidade, aceitas pelas respectivas entidades nacionais de administração do desporto) e não-formais (liberdade lúdica de seus praticantes).

Um artigo de Valdir José Barbanti, professor emérito da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (USP), conceitua o esporte assim:

— Esporte é uma atividade competitiva institucionalizada que envolve esforço físico vigoroso ou o uso de habilidades motoras relativamente complexas, por indivíduos, cuja participação é motivada por uma combinação de fatores intrínsecos e extrínsecos — diz a definição, sendo que fatores intrínsecos são as motivações próprias do esporte, como o espírito esportivo, e os extrínsecos são aqueles para além do esporte, como o desejo de obtenção de dinheiro.

O que dizem os especialistas

A psicóloga Alessandra Dutra, que trabalha com esports e já integrou o Comitê Olímpico Brasileiro (COB), acredita que os esports podem ser equiparados aos esportes tradicionais, embora admita que não haja consenso.

— Existe uma discussão pelos especialistas sobre o que vem a ser esporte. Há aqueles mais conservadores que consideram esporte somente aquilo que vem de esforço físico. Mas há uma outra vertente que acredita que esporte também vem daquilo que há desgaste físico. Aqui entram games, xadrez, Fórmula 1, Stock Car. Esports têm regras, treinamento, entidades organizadas, campeonatos. Além disso, estamos na era da intersecção do desempenho com a saúde mental. Nos esports esse diálogo ocorre há muito tempo.

— O preconceito vem porque a história com o entretenimento é muito forte. O que as pessoas precisam saber é que um viciado em game jamais chega ao nível profissional. Não suporta a rotina de um gamer profissional porque há algo de muito errado no comportamento dessa pessoa viciada. A rotina de um gamer profissional é pesada, completamente diferente de Ivete Sangalo na hora que vai desestressar — detalha a especialista, fazendo referência à comparação que a ministra Ana Moser fez de um atleta de esports com a cantora baiana.

Claudio Godoi, presidente da Associação Brasileira de Psicologia dos Esportes Eletrônicos (ABRASPEE), também defende o entendimento de que esports são esportes:

— O nível de execução física do jogador de esports é um fator diferencial no aspecto competitivo, porém diferente de um esporte tradicional. Nos esports, se dá pela coordenação motora fina majoritariamente. Os esports são categorias esportivas nas quais racicíonio, estratégia, velocidade, habilidade, destreza, controle emocional, processamento de várias informações ao mesmo tempo, comunicação e trabalho em equipe possuem papel fundamental. O atleta necessita estar em pleno funcionamento mental e físico para desempenhar.

— É possível considerar os esports como misto de xadrez com automobilismo. É uma modalidade que entra no hall dos esportes intelectuais, cuja performance é mediada por um dispositivo eletrônico. No automobilismo, o dispositivo de mediação é mecânico, o carro.

O professor Ary José Rocco Júnior, livre-docente de Gestão de Esporte na USP, considera a discussão complexa, pois há diferentes vertentes de entendimento sobre o que é esporte.

— A questão sobre esports serem ou não esporte é bastante complexa. No século 20, conceitualmente falando, os esportes eram caracterizados por regras de disputa universalmente aceitas e por uma institucionalização, ou seja, precisava ter uma confederação ou uma federação que organizasse as competições e permitisse que pessoas dos mais diversos cantos do mundo pudessem praticar a modalidade em igualdade de condições. Portanto, a modalidade deveria fazer parte do sistema esportivo internacional, leia-se sistema olímpico. Obviamente, dentro desse conceito clássico, os esports estão fora.

— Porém, dos anos 2000 para cá, o mundo vem mudando muito e, consequentemente, os esportes também. Você tem uma série de modalidades que estão fora do sistema olímpico. Hoje, a definição mais clara que se tem é que esporte é qualquer tipo de atividade organizada com regras universalmente conhecidas pelos seus participantes e que envolvam qualquer tipo de esforço e preparo físico e mental. Nesse sentido, esports se enquadrariam como esportes. Mesmo dentro da academia não existe um consenso a respeito disso, porque o mundo está se transformando. A inserção dos esportes eletrônicos dentro do sistema esportivo e olímpico, no conceito do século 20, eu tenho a impressão de que deve acontecer em questão de tempo.

O doutor em Educação Física Leandro Carlos Mazzei, professor de Ciências do Esporte da Faculdade de Ciências Aplicadas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), elenca três perspectivas de análise dos esports:

  • — No âmbito da sociologia, é possível afirmar que o esport não é igual ao esporte. É uma coisa nova. É um fenômeno da sociedade pós-industrial. Existem coisas da nossa pós-modernidade que são novas: a tecnologia e o universo virtual. Como são novas, existe uma evolução das coisas antigas. Comparar esports com esporte tradicional talvez seja um equívoco sob o olhar filosófico. Esports e esportes são coisas diferentes, vividas por gerações diferentes.
  • — Sob olhar do esporte, em uma corrente de definições do esporte moderno, baseada em um caráter da sociedade industrial, é possível classificar os esports como esporte. São parecidos em várias definições do esporte moderno. Atletas de esportes tradicionais e eletrônicos têm rotinas bem semelhantes.
  • — O terceiro olhar é de políticas públicas. Há, no esporte tradicional, um problema muito grave de acessibilidade. Boa parte das escolas não tem instalações esportivas. Há esporte de alto rendimento muito bem desenvolvido no Brasil, mas não há um nível de participação esportiva muito grande. E aí o entendimento da Ana Moser é esse, apesar de ela talvez ter se comunicado mal, é de que haverá prioridade para essa acessibilidade à prática esportiva tradicional, voltada para a formação e a saúde do indivíduo. Provavelmente haverá um orçamento limitado e, se fosse colocar esports nesse guarda-chuva, teria problemas. O esporte eletrônico precisa de outras questões, que envolvem tecnologia e acessibilidade, mas em áreas diferentes. No esporte tradicional, a acessibilidade envolve espaço físico. No esporte eletrônico envolve condições tecnológicas, inclusive de acesso à internet.

O professor ainda destaca que os esportes eletrônicos têm o diferencial de não dependerem de confederações ou federações para os campeonatos existirem. No caso dos esports, são organizadoras de torneios independentes ou as próprias desenvolvedoras dos jogos que promovem os games, que, ao contrário dos esportes, representam propriedade intelectual de empresas privadas.

— Nesse sentido, eu tenho lá minhas ressalvas se o poder público de fato precisa demandar investimento para o desenvolvimento do esporte eletrônico, já que ele se desenvolve por si próprio — avalia Leandro.

Ele acrescenta que jogos eletrônicos já estão sendo reconhecidos por entidades olímpicas, mas observa que essa aceitação deve ser maior naquelas modalidades que têm ligação com os esportes tradicionais, como os simuladores de futebol e basquete, por exemplo.

— Eu imagino que o esporte eletrônico vai ser mais facilmente reconhecido quando houver ligação com as modalidades esportivas tradicionais — opina o professor da Unicamp.

O médico do Esporte Roberto Nahon, diretor da Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte e ex-médico-chefe do COB, observa que a definição do que é ou não esporte é uma convenção social. Ele vê boas justificativas para as duas vertentes - de esport ser esporte ou não, tendo a atividade física como base de análise -, mas diz preferir a conceituação de que o esporte pressupõe treinamento para obtenção de uma performance, o que abrangeria os campeonatos de games.

O médico destaca que, do ponto de vista de saúde, obviamente uma modalidade esportiva com atividade física é mais benéfica do que uma sem, mas ressalta que os jogadores profissionais de esports também precisam de preparo físico, ainda que não seja o principal para o seu desempenho.

— Sem a menor dúvida é mais saudável o indivíduo que pratica atividade física do que o indivíduo que não pratica, mas, enquanto atividade social, a competição de esports é saudável. A atividade física pode complementar, porque vai melhorar a performance. Eu tenho jogadores de xadrez e de esports como pacientes e prescrevo atividades físicas para eles, tanto para que fiquem mais relaxados quando sob tensão quanto para que o tempo sentado não cause dor — exemplifica Roberto, relatando que os esports têm sido objeto de debate em congressos da medicina do esporte.

Daniel Orlean, gestor que capitaneou a entrada do Flamengo para os esports em 2017, vê os esports como esportes, mas considera normal a resistência inicial, já que a disputa via games ainda é um fenômeno recente.

— O fato de esports fazer o uso de programas de computador com mecânicas gamificadas, ou games, de forma simplificada, não tiram o caráter esportivo. Pelo contrário: esports são a evolução do esporte. São atividades que incorporam competividade, regras e objetivos bem definidos para superação de adversários. É um debate empolgante, mas deve ser feito de cabeça e coração abertos, não com afirmações categóricas. Entendo que a ministra, um exemplo em seu setor, vai abrir espaço para essa discussão. É normal, no começo de qualquer trajetória - e esportes eletrônicos, apesar do sucesso, ainda estão nessa etapa - uma resistência inicial de "incumbentes", os grandes e consagrados do setor.

O que dizem os estudos

Diversos estudiosos do mundo todo já se debruçaram sobre a definição acadêmica do que são esportes eletrônicos. Parte deles utiliza o esporte para explicar as competições de games, apesar de não haver consenso na definição. Outros defendem que uma disputa em jogo eletrônico não é propriamente esporte ou, ao menos, não é reconhecida como tal pela sociedade.

O pesquisador sueco Oscar Bornemark estudou quais propriedades de um game o tornam apto a ser um esporte eletrônico e defendeu que o elemento de maior importância pode ser o investimento da empresa que é dona do jogo. Ele diz que esports é "um termo genérico para descrever o ato de jogar videogame competitivamente". A pesquisadora e professora australiana Emma Witkowski o define como "uma abordagem organizada e competitiva de jogar games de computador".

Uma das definições mais citadas na academia é a de Michael G. Wagner, que traça um paralelo com a descrição de esporte do cientista e professor alemão Claus Tiedemann e propõe conceituar os esports como "uma área das atividades esportivas na qual as pessoas desenvolvem e treinam habilidades mentais ou físicas no uso de tecnologias de informação e comunicação".

Mas, apesar da comparação, o autor alega que não é necessário ver os esports como uma área disciplinar que possa ser contida na definição de esporte e que se deve entendê-los como campo de estudo totalmente distinto. Ele acredita que a questão de as competições de games serem ou não esporte é irrelevante para a discussão acadêmica sobre o tema, defendendo, inclusive, a criação de uma "ciência dos esports".

Os pesquisadores finlandeses Juho Hamari e Max Sjöblom observam que, nos esportes tradicionais, as atividades e os resultados do jogo ocorrem no "mundo real", ainda que os praticantes empreguem sistemas eletrônicos e/ou computadorizados para auxiliá-los, ao passo que, nos esports, a ação se desenrola dentro de ambientes eletrônicos, digitais e/ou mediados por computador. Nos esports, o homem opera, coordena e orquestra as ações, mas o resultado é obtido no "mundo virtual".

Para eles, esport é "uma forma de esporte em que os aspectos primários do esporte são facilitados por sistemas eletrônicos".

O filósofo finlandês Veli-Matti Karhulahti fez uma análise dos jogos eletrônicos competitivos a partir de uma perspectiva econômica. Ele lembra que os games são produtos comercialmente criados, desenvolvidos e distribuídos e que, ao contrário da maioria dos esportes tradicionais, os esports estão inseridos em sistemas projetados como produtos comerciais por empresas lucrativas. Todos os jogos, independentemente de serem gratuitos ou não, são pensados e lançados para gerar lucro e podem passar por alterações e expansões, com controle absoluto da companhia que é proprietário do título. Um game pode ser jogado somente dentro do sistema proposto pela desenvolvedora.

De outra perspectiva, um artigo dos pesquisadores Seth Jenny, R. Douglas Manning, Margaret Keiper e Tracy Olrich, que se debruçaram sobre em que aspectos os esports podem ser comparados com esportes, pontua que os esports "incluem jogo e competição, são organizados por regras, exigem habilidade e têm muitos seguidores", mas ressalta, contudo, que "esports atualmente carecem de grande aspecto físico e institucionalização".

Eles defendem que videogames baseados em movimento que futuramente usem alto nível de atividade física podem credenciar os esports a serem reconhecidos como esportes pela população.

— Embora os sinais sejam promissores, é necessário mais tempo para demonstrar que o segmento de esports é estável e institucionalizado. Sem dúvida, um refinamento da definição de esporte, ou o uso de videogames baseados em movimento, precisará ocorrer antes que os esports sejam totalmente aceitos pela maioria da sociedade como versões autênticas do esporte — concluem os pesquisadores no estudo.

O que diz a lei

Não há, no Brasil, uma legislação específica sobre esportes eletrônicos. Um projeto que possa conceituar os esports e regulá-lo chegou a tramitar no Congresso, mas não avançou. Toda vez que a proposta entrou em debate, sofreu enorme resistência da comunidade gamer, com medo de uma regulação que, no entendimento de executivos e cartolas de esports, pudesse engessar o mercado.

O advogado Helio Tadeu Brogna Coelho Zwicker explica que, independente disso, a Lei do Desporto atualmente existente pode abranger os esports.

— A Lei Geral do Desporto diz que as novas práticas desportivas são reconhecidas pela liberdade lúdica de seus participantes. Portanto, cuidadosamente, a lei deixou a critério do povo decidir, no conjunto de suas manifestações culturais, o que é, ou não, esporte. O fato de o governo não investir na modalidade não significa que a lei exclua os esports de seu conceito. Atualmente, o mercado dos esports adota a Lei Geral do Desporto nas relações jurídicas entre atletas e clubes. Há jurisprudência que vem consolidando o entendimento que a lei mais adequada para os esports é a Lei Geral do Desporto.

Está em tramitação no Congresso, atualmente no Senado, o projeto que institui a nova Lei Geral do Esporte. O texto, no qual a ministra Ana Moser admitiu que a ONG Atletas pelo Brasil atuou para não ser abrangente ao ponto de incluir os esports, traz a seguinte conceituação:

— Entende-se por esporte toda forma de atividade predominantemente física que, de modo informal ou organizado, tenha por objetivo atividades recreativas, a promoção da saúde, o alto rendimento esportivo ou o entretenimento.

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