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Por Leonardo Miranda

Jornalista, formado em análise de desempenho pela CBF e especialista em tática e estudo do futebol


Poucos treinadores mudaram tanto um clube quanto Jurgen Klopp no Liverpool, que se despede hoje após fazer história e conquistar oito títulos em quase nove anos na cidade dos Beatles.

Seu futebol vertiginoso, pautado na arriscada tática de marcar sob pressão toda e qualquer bola, mudou o patamar financeiro do clube, inspirou treinadores do mundo todo e provocou mudanças na forma de centroavantes e laterais jogarem.

Liverpool faz ensaio de despedida para Jürgen Klopp — Foto: Nikki Dyer/Liverpool FC via Getty Images

A saída após um ano de reconstrução será de emoção, memória e agradecimento. Quando chegou, o Liverpool se encontrava em situação financeira estável, porém carecia de títulos. Após vices e um time que encantou, Klopp conquistou absolutamente tudo o que é possível na Europa e se tornou ídolo com sua personalidade carismática e um amor declarado ao clube.

– Eu vim para cá como um cara normal. Eu ainda sou um cara normal, só não vivo uma vida normal. Eu não apenas me sinto em casa. Eu estou em casa. Eu amo Anfield. Eu amo Anfield quando está pulsando. Nós realmente mostramos o que nossa união pode fazer .
Klopp faz despedida emocionada da torcida do Liverpool: "Difícil dizer adeus"

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A revolução do futebol “heavy metal”

A chegada de Klopp ao Liverpool se deu num momento em que Pep Guardiola começava seus passos na Premier League após um período inventivo no Bayern de Munique e o futebol global vivia sob o reino do Real Madrid de Zidane. Klopp foi o escolhido para reconstruir os Reds após anos de “quase”, muita esperança desperdiçada em Andy Carroll e quase 30 anos sem o título inglês.

Numa primeira temporada de pura emoção, com direito à virada sob o Borussia Dortmund e um título perdido de Liga Europa para o Sevilla, Klopp apresentou sua visão do jogo aos torcedores. É mais que futebol, é vida, um jogo de escolhas. Viver o presente sem pensar nas consequências ou planejar o futuro para ter mais controle do que pode acontecer?

O Liverpool de Klopp foi o primeiro time no mundo a não tentar domar o caos do jogo. Pelo contrário: abraçou e usou a bagunça que é nossas vidas a seu favor. Formado sempre num 4-3-3, o alemão colocava o trio de ataque para sufocar na frente e puxava o meio para pressionar. A vantagem? Mais gente para roubar a bola e chegar rápido ao gol. A desvantagem? Uma defesa exposta a contra-ataques.

Mais do que isso, a filosofia tática de Klopp se pauta na ideia de que o momento em que o adversário perde a bola é uma mina de ouro: nos dois, três segundos após perder, há uma desorganização grande o suficiente que, se bem usada, resulta em gols e num controle mais do jogo. Daí vem o termo “geggenpressing”, a “contra-pressão”: sufocar sempre e o mais alto possível.

Na imagem abaixo, aquele que talvez seja um dos jogos mais emblemáticos da passagem do treinador: o recital sobre o Manchester City nas quartas-de-final da Liga dos Campeões de 2017/18: 3 a 0.

Pressão vertiginosa do Liverpool: seis jogadores no campo adversário — Foto: Reprodução

Trio de ataque que não volta para marcar? Não só pode, como deve!

Para ganhar jogadores no meio e pressionar cada vez mais, Klopp foi um dos primeiros treinadores que usaram pontas com uma função diferente: ao invés de jogadas de linha de fundo e cruzamentos, movimentação frenética entre os zagueiros.

Primeiro com Firmino, Sturridge e Coutinho. Depois, com o famoso trio Firmino, Salah e Mané: um trio vertiginoso que invertia de posição, quebrava adversários e quase sempre jogava próximo do gol. E melhor: não voltava para marcar.

Klopp chocou ao dar total liberdade para esse trio não voltar ao ataque. Estávamos falando da era dos times jogando no 5-4-1, com linhas de quatro e de cinco, como o Chelsea de Antonio Conte e a Juventus de Allegri. Klopp defendia com sete, muitas vezes até com seis. O trio de ataque ficava na frente para ter fôlego e ser ponto de referência no contra-ataque.

Trio de ataque no Liverpool não voltava: ousadia, risco e genialidade — Foto: Reprodução

O resultado eram jogos frenéticos, como a virada sobre o Barcelona, o 4 a 2 sobre a Roma e uma temporada épica com 98 pontos contra 99 do Manchester City.

Firmino, um camisa 10 que jogava de 9

Klopp também usou e abusou de um centroavante de mobilidade e inteligência. Firmino marcou história ao ocupar a faixa entre a defesa e o meio-campo do rival, a chamada entrelinha. A ideia do treinador era que ele pudesse provocar desequilíbrio por dentro e permitir tabelas rápidas, que deixem alguém na cara do gol. Ao sair da cola de um zagueiro e recuar, Firmino atrai a marcação e abre espaços que ele mesmo pode aproveitar.

Firmino na construção das jogadas — Foto: Leonardo Miranda

Além de sair da área e buscar o jogo por dentro, Firmino tinha potência e explosão para chegar pelos lados e buscar espaços para Mané e Salah. Na primeira temporada sem ele, Klopp colocou Mané como centroavante (mesma posição na qual jogou no Bayern) e tentou com Nuñez. Mas sem a mesma qualidade do brasileiro, que viveu o auge da carreira no clube.

Laterais reis de assistências

Depois de anos jogando um futebol frenético e muitas vezes perdendo títulos por conta disso, Klopp decidiu casar o caos ao controle. Na temporada de 2018/19 e especialmente entre 2019 e 2021, o Liverpool foi o melhor time do mundo jogando já num 4-2-3-1, mas com laterais numa função diferente: eles não eram aqueles laterais por dentro de Guardiola, muito menos chegavam na linha de fundo como manda o manual.

Eram jogadores de ataque que pisavam na área a todo tempo e cruzavam. Robertson e principalmente Alexander-Arnold viravam peças no meio-campo: faziam a saída de bola junto aos zagueiros, tabelavam com o meio e chegavam de surpresa ao ataque, como na imagem abaixo.

Liverpool consegue surpreender com a passagem dos laterais por dentro — Foto: Reprodução

Dessa forma, o quarteto ofensivo ficava cada vez atirado ao ataque para sufocar e pressionar e buscar jogadas perto do gol.

Todos esses componentes estarão presentes no 489º e último jogo de Jürgen Klopp no comando do clube. Será contra o Wolverhampton neste domingo, em Anfield, às 12h (de Brasília), pela última rodada da Premier League.

Liverpool faz ensaio de despedida para Jürgen Klopp — Foto: Nikki Dyer/Liverpool FC via Getty Images

Mais que em um jogo, estarão na memória. Klopp foi o primeiro treinador a se apresentar como um meio-termo entre a posse de bola organizada de Pep Guardiola e a competição e defesa fechada de José Mourinho. Inspirou toda uma geração de treinadores que hoje começa a ocupar cargos grandes, como Xabi Alonso, Roger Schmidt e Edin Terzic. E continuará a marcar por mostrar que o caos e o frenesi não são inimigos de um futebol bem jogado.

O sujeiro afável e bem humorado, que se intitulou “The Normal One” logo em sua primeira coletiva, mostrou uma versão mais leve do que é ser um treinador de futebol. Energético, porém nunca estressado, Klopp transformou um clube como poucos treinadores fizeram na história. Tudo regado a uma tática “heavy metal” que já deixa (muita) saudades.

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