Poucos treinadores mudaram tanto um clube quanto Jurgen Klopp no Liverpool, que se despede hoje após fazer história e conquistar oito títulos em quase nove anos na cidade dos Beatles.
Seu futebol vertiginoso, pautado na arriscada tática de marcar sob pressão toda e qualquer bola, mudou o patamar financeiro do clube, inspirou treinadores do mundo todo e provocou mudanças na forma de centroavantes e laterais jogarem.
Liverpool faz ensaio de despedida para Jürgen Klopp — Foto: Nikki Dyer/Liverpool FC via Getty Images
A saída após um ano de reconstrução será de emoção, memória e agradecimento. Quando chegou, o Liverpool se encontrava em situação financeira estável, porém carecia de títulos. Após vices e um time que encantou, Klopp conquistou absolutamente tudo o que é possível na Europa e se tornou ídolo com sua personalidade carismática e um amor declarado ao clube.
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Klopp faz despedida emocionada da torcida do Liverpool: "Difícil dizer adeus"
A revolução do futebol “heavy metal”
A chegada de Klopp ao Liverpool se deu num momento em que Pep Guardiola começava seus passos na Premier League após um período inventivo no Bayern de Munique e o futebol global vivia sob o reino do Real Madrid de Zidane. Klopp foi o escolhido para reconstruir os Reds após anos de “quase”, muita esperança desperdiçada em Andy Carroll e quase 30 anos sem o título inglês.
Numa primeira temporada de pura emoção, com direito à virada sob o Borussia Dortmund e um título perdido de Liga Europa para o Sevilla, Klopp apresentou sua visão do jogo aos torcedores. É mais que futebol, é vida, um jogo de escolhas. Viver o presente sem pensar nas consequências ou planejar o futuro para ter mais controle do que pode acontecer?
O Liverpool de Klopp foi o primeiro time no mundo a não tentar domar o caos do jogo. Pelo contrário: abraçou e usou a bagunça que é nossas vidas a seu favor. Formado sempre num 4-3-3, o alemão colocava o trio de ataque para sufocar na frente e puxava o meio para pressionar. A vantagem? Mais gente para roubar a bola e chegar rápido ao gol. A desvantagem? Uma defesa exposta a contra-ataques.
Mais do que isso, a filosofia tática de Klopp se pauta na ideia de que o momento em que o adversário perde a bola é uma mina de ouro: nos dois, três segundos após perder, há uma desorganização grande o suficiente que, se bem usada, resulta em gols e num controle mais do jogo. Daí vem o termo “geggenpressing”, a “contra-pressão”: sufocar sempre e o mais alto possível.
Na imagem abaixo, aquele que talvez seja um dos jogos mais emblemáticos da passagem do treinador: o recital sobre o Manchester City nas quartas-de-final da Liga dos Campeões de 2017/18: 3 a 0.
Pressão vertiginosa do Liverpool: seis jogadores no campo adversário — Foto: Reprodução
Trio de ataque que não volta para marcar? Não só pode, como deve!
Para ganhar jogadores no meio e pressionar cada vez mais, Klopp foi um dos primeiros treinadores que usaram pontas com uma função diferente: ao invés de jogadas de linha de fundo e cruzamentos, movimentação frenética entre os zagueiros.
Primeiro com Firmino, Sturridge e Coutinho. Depois, com o famoso trio Firmino, Salah e Mané: um trio vertiginoso que invertia de posição, quebrava adversários e quase sempre jogava próximo do gol. E melhor: não voltava para marcar.
Klopp chocou ao dar total liberdade para esse trio não voltar ao ataque. Estávamos falando da era dos times jogando no 5-4-1, com linhas de quatro e de cinco, como o Chelsea de Antonio Conte e a Juventus de Allegri. Klopp defendia com sete, muitas vezes até com seis. O trio de ataque ficava na frente para ter fôlego e ser ponto de referência no contra-ataque.
Trio de ataque no Liverpool não voltava: ousadia, risco e genialidade — Foto: Reprodução
O resultado eram jogos frenéticos, como a virada sobre o Barcelona, o 4 a 2 sobre a Roma e uma temporada épica com 98 pontos contra 99 do Manchester City.
Firmino, um camisa 10 que jogava de 9
Klopp também usou e abusou de um centroavante de mobilidade e inteligência. Firmino marcou história ao ocupar a faixa entre a defesa e o meio-campo do rival, a chamada entrelinha. A ideia do treinador era que ele pudesse provocar desequilíbrio por dentro e permitir tabelas rápidas, que deixem alguém na cara do gol. Ao sair da cola de um zagueiro e recuar, Firmino atrai a marcação e abre espaços que ele mesmo pode aproveitar.
Firmino na construção das jogadas — Foto: Leonardo Miranda
Além de sair da área e buscar o jogo por dentro, Firmino tinha potência e explosão para chegar pelos lados e buscar espaços para Mané e Salah. Na primeira temporada sem ele, Klopp colocou Mané como centroavante (mesma posição na qual jogou no Bayern) e tentou com Nuñez. Mas sem a mesma qualidade do brasileiro, que viveu o auge da carreira no clube.
Laterais reis de assistências
Depois de anos jogando um futebol frenético e muitas vezes perdendo títulos por conta disso, Klopp decidiu casar o caos ao controle. Na temporada de 2018/19 e especialmente entre 2019 e 2021, o Liverpool foi o melhor time do mundo jogando já num 4-2-3-1, mas com laterais numa função diferente: eles não eram aqueles laterais por dentro de Guardiola, muito menos chegavam na linha de fundo como manda o manual.
Eram jogadores de ataque que pisavam na área a todo tempo e cruzavam. Robertson e principalmente Alexander-Arnold viravam peças no meio-campo: faziam a saída de bola junto aos zagueiros, tabelavam com o meio e chegavam de surpresa ao ataque, como na imagem abaixo.
Liverpool consegue surpreender com a passagem dos laterais por dentro — Foto: Reprodução
Dessa forma, o quarteto ofensivo ficava cada vez atirado ao ataque para sufocar e pressionar e buscar jogadas perto do gol.
Todos esses componentes estarão presentes no 489º e último jogo de Jürgen Klopp no comando do clube. Será contra o Wolverhampton neste domingo, em Anfield, às 12h (de Brasília), pela última rodada da Premier League.
Liverpool faz ensaio de despedida para Jürgen Klopp — Foto: Nikki Dyer/Liverpool FC via Getty Images
Mais que em um jogo, estarão na memória. Klopp foi o primeiro treinador a se apresentar como um meio-termo entre a posse de bola organizada de Pep Guardiola e a competição e defesa fechada de José Mourinho. Inspirou toda uma geração de treinadores que hoje começa a ocupar cargos grandes, como Xabi Alonso, Roger Schmidt e Edin Terzic. E continuará a marcar por mostrar que o caos e o frenesi não são inimigos de um futebol bem jogado.
O sujeiro afável e bem humorado, que se intitulou “The Normal One” logo em sua primeira coletiva, mostrou uma versão mais leve do que é ser um treinador de futebol. Energético, porém nunca estressado, Klopp transformou um clube como poucos treinadores fizeram na história. Tudo regado a uma tática “heavy metal” que já deixa (muita) saudades.
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