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Por Irlan Simões

Jornalista e pesquisador do futebol

Rio de Janeiro


Há algum tempo o autor deste blog vem sugerindo uma reformulação total dos campeonatos estaduais.

Longe de propor a extinção desses torneios (até porque é algo impraticável), o texto a seguir levantará algumas propostas para tentar resolver esse que é considerado o grande problema do futebol brasileiro...

...para alguns. Afinal, a razão da permanência dos estaduais “como aí estão” se dá por razões bem pouco lógicas – ao menos não no sentido da financeiro (viabilidade), esportivo (competitividade) ou popular (atratividade).

Redação Sportv discute reformulação dos estaduais e a situação dos clubes menores do Brasi

Redação Sportv discute reformulação dos estaduais e a situação dos clubes menores do Brasi

A i(lógica) que sustenta os estaduais “como aí estão” é da esfera política, das federações que os organizam. Sobre essa e outras questões o blog já publicou um texto recente, “Por que os estaduais estão matando os clubes tradicionais”, que pode ser útil antes da sequência da leitura.

Naquele texto está a seguinte proposição:

Separando a “Série E” do “Campeonato Estadual”, é possível até tornar o segundo algo melhor: um torneio de tiro curto, com importância histórica e simbólica, que mantenha a contagem centenária dos títulos, mas que não seja um buraco negro para os pequenos, tampouco um estorvo para os grandes.”

Essa ideia parte da premissa de que um torneio de apenas 3 meses de duração, que obriga a maioria dos seus clubes a suspender suas atividades nos outros 9 meses, não pode ser considerado “profissional”.

Por isso, antes de pensar a razão da existência de uma “Série E”, convém entender como o futebol brasileiro funciona há algum tempo.

Um modelo sufocante

Enquanto se discute o estadual a partir da perspectiva dos clubes grandes (o inchaço do calendário), na realidade o grande problema desse modelo atual é que ele condena uma imensa quantidade de clubes a “não existir” durante a maior parte do ano. Se para uma pequena minoria há “excesso de jogos”, para a ampla maioria há total escassez, inatividade e precariedade.

Para entender essa questão, vale olhar o “mapa” do futebol brasileiro, que carrega um desenho muito parecido há tempos – estabilizado a partir da criação da Série D em 2009.

Número de clubes que disputarão as Séries A, B e C em 2024, por federação — Foto: Irlan Simões

Em 2024, nove unidades federativas não terão representantes nas três principais divisões nacionais, enquanto seis terão apenas um representante. Outras quatro federações mandarão dois participantes, o que também não é um número relevante.

A depender do número de participantes desses estaduais (que varia de 8 a 12 clubes) e do número de vagas que a federação tem direito na Série D (que varia de 1 a 4), é de se imaginar que muitos clubes ficam inativos assim que acaba o certame estadual – exceto nos casos em que existem copas secundárias no segundo semestre, também curtas.

Mesmo desconsiderando aqueles clubes que estão fora da elite local (que jogam segunda, terceira ou até quarta divisão dos estaduais), o quadro a seguir permite observar quantos clubes brasileiros reduzem suas temporadas a meros 3 meses. São os clubes que suspendem suas atividades enquanto esperam uns poucos co-irmãos voltarem dos certames nacionais (mesmo que seja uma curta Série D).

Número de clubes da primeira divisão do campeonato estadual que não jogarão Séries A, B, C ou D em 2024 — Foto: Irlan Simões

Em vários estados os “sem datas da elite” já representam um conjunto grande o suficiente para formar um campeonato de maior duração. Esse número tende a triplicar, se somados os clubes que estão nas divisões inferiores dos estaduais (que nem precisavam existir, em vários casos).

A título de informação, diversos países europeus realizam seus campeonatos nacionais com números reduzidos de clubes, como Grécia (14), Suíça (12), Áustria (12) e Dinamarca (12). Com regulamentos criativos, conseguem garantir um número maior de confrontos ao longo da temporada.

Isso permite imaginar uma “Série E” dentro de cada estado brasileiro. Ao invés de resumir todo o calendário desses clubes no “Campeonato Estadual” de tiro curto, dá para conceber a reunião de todos os demais clubes “sem divisão” em uma única competição mais longa, imediatamente abaixo da Série D.

No Rio de Janeiro, excluindo aqueles que jogam os campeonatos nacionais, existem apenas 16 clubes inscritos na “Série A1” e na “Série A2”. No Rio Grande do Sul são 19 clubes entre a “Série A” do estadual e o “Acesso”. Em Minas Gerais, os “sem datas” do “Módulo I”, do “Módulo II” e da “2ª Divisão” são ao todo 26 agremiações.

São números mais do que suficientes para a elaboração de uma "Série E" mais longa, dentro de cada estado, garantindo maior tempo de atividade a dezenas de clubes. Uma competição com duração de 10 meses poderia utilizar até 43 datas, caso os jogos ocorram apenas aos fins de semana (usando o calendário de 2024).

Enquanto a “Série E” poderia durar quase todo o ano, o “Campeonato Estadual” poderia se resumir a apenas 8 datas, agora já incluindo os clubes que estão nas Séries A, B, C e D – e com isso, desafogando o calendário dos clubes que jogam competições continentais.

Seria possível conceber até mesmo uma "Série F" em alguns estados com muitos clubes, como São Paulo; uma copa secundária entre os clubes da divisão ou fases preliminares mais longas para o próprio "Campeonato Estadual".

Novo Estadual: dá para imaginar

Como a primeira imagem mostrou, apenas 8 estados possuem quatro ou mais clubes jogando em séries nacionais, um dado que mostra como seria fácil montar as tabelas desses novos campeonatos estaduais.

Vejamos, por exemplo, o “Novo Campeonato Catarinense” com o desenho de 2024, onde o Criciúma joga a Série A; o Avaí, o Brusque e a Chapecoense estão na Série B; o Figueirense se encontra na Série C; e outros três clubes estão na Série D (poderão ser menos, com uma reformulação dessa divisão).

Caso deseje, a Federação Catarinense pode estruturar o seu “Campeonato Estadual” em um formato simples de mata-mata, com os melhores times (divisões nacionais superiores) nas fases mais avançadas, com as demais vagas disputadas entre os times da Série D e os melhores da Série E.

Simulação de um Novo Campeonato Catarinense em formato de mata-mata, com fases preliminares para os clubes de Série E e com menos datas para os clubes das principais divisões — Foto: Irlan Simões / Redação Sportv

Nesse formato reduzido de ida e volta, um time de Série A, B ou C precisaria jogar no máximo 6 partidas (se chegasse à final). O que indica, na verdade, que é possível até mesmo elaborar formatos mais complexos, garantindo os tão valorizados clássicos – desde que respeitado o limite máximo de 8 datas.

O Campeonato Carioca, que tem ainda menos representantes nas principais divisões, teria a sua montagem ainda mais facilitada, permitindo a participação de até quatro clubes da Série E. Com poucos participantes assim, há espaço para elaborar um regulamento que garanta um maior número de confrontos entre os grandes (tipo de coisa que a FERJ é famosa por fazer).

Simulação de um Novo Campeonato Carioca em formato de mata-mata, com fases preliminares para os clubes de Série E e com menos datas para os clubes das principais divisões — Foto: Irlan Simões / Redação Sportv

Com 13 representantes nas quatro primeiras divisões, o Campeonato Paulista seria um único a precisar de um número maior de fases preliminares para selecionar os clubes de "Série E", antes do encontro contra os principais clubes.

Em todos as outras unidades federativas a composição do “Campeonato Estadual” se dá de forma quase que automática. Mas, de certa forma, inverteria uma exigência que já existe.

Hoje, para jogar Copa do Brasil ou Série D, as equipes precisam passar pelo curto estadual. Não foram poucos os casos em que clubes abriram mão do torneio nacional vinculado à pirâmide nacional (a Série D), visando exclusivamente a receita da primeira fase da Copa do Brasil (muito dinheiro e pouco jogo).

Com a existência de uma “Série E” apartada de um “Campeonato Estadual”, se tornará obrigatório jogar o primeiro para ter a chance de disputar partidas contra os grandes conterrâneos no segundo. E quanto mais alta a prateleira do clube, maior a certeza de poder participar do “novo estadual” e jogar contra os grandes. A disputa da "Série E" passa a ser uma demanda incontornável.

Isso também permitiria uma reformulação da Copa do Brasil. Sem a demanda de “valorizar os estaduais”, haveria a possibilidade de garantir vaga para todos os clubes das Séries A, B, C e D, criando, além disso, fases preliminares onde os clubes da Série E se enfrentariam, selecionando os melhores (nesse caso, seria preciso montar um formato que garantisse as diferentes representatividades regionais, como ocorre hoje).

Esse é um modelo que os principais países europeus encontraram para garantir que suas copas nacionais se mantivessem realmente “democráticas”, algo que a Copa do Brasil tem deixado de ser. Não é raro ver grandes clubes europeus enfrentem clubes categoricamente amadores nas copas, gerando histórias saborosas – o que nos leva a outra questão fundamental.

Regulamentação específica e financiamento

Como são obrigados a jogar campeonatos profissionais contra clubes grandes de Série A e Série B, todos esses clubes “sem divisão e sem data” estão submetidos às mesmas exigências de clubes muito mais ricos.

Para isso o futebol europeu também indica um caminho: fora das principais divisões, os clubes são considerados semiprofissionais ou amadores, sendo assim condicionados a outros tipos de regulamentações trabalhistas, a custos muito menores para participação (no torneio e em cada jogo) e a taxas de inscrição de atletas bem mais condizentes com o patamar financeiro ao qual pertencem.

Esse tipo de concessão inexiste no Brasil, seja na legislação, seja nos regulamentos das competições impostos pelas federações. Todos os clubes são tratados como profissionais, quando a grande maioria deles só tem atividades esportivas por poucos meses.

Do ponto de vista do custo para os clubes, é de se imaginar que uma "Série E" resumida em cada estado visa exatamente diminuir as distâncias (ao passo que tende a resgatar antigas rivalidades de clubes de bairros e cidades vizinhas).

Mas também seria necessário contar com a contribuição do topo da pirâmide. É a forma que países como Inglaterra, Alemanha, Itália e Espanha conseguem garantir estruturas de seis ou até oito divisões, sempre escalonadas de regiões menores às maiores.

As grandes ligas transferem parte das suas receitas para todo o sistema, com valores variados, não deixando os clubes menores sobrecarregados com demandas comerciais irreais. Com um mínimo garantido, as localidades se mobilizam e passam a se engajar pelos seus clubes.

Também é de se perguntar: se os campeonatos de várzea de São Paulo e o famoso Campeonato Intermunicipal da Bahia conseguem se sustentar há tantas décadas, como uma divisão ligada ao mesmo sistema que comporta clubes de renome global não poderia ser viável? É possível elaborar vias de financiamento que não sejam custosas ao topo, mas que bastem à base da pirâmide.

No embalo do Carnaval que se aproxima, vamos de Mocidade Independente de Padre Miguel, escola de samba vizinha do Bangu Atlético Clube, um dos mais tradicionais do Brasil – ambas paixões do camarada Vicente Magno, um dos caras mais apaixonados pelo futebol e pelo carnaval do subúrbio do Rio nesse mundo.

“Sonhar não custa nada
O meu sonho é tão real
Mergulhei nessa magia
Era tudo que eu queria
Para esse carnaval
Deixe a sua mente vagar
Não custa nada sonhar
Viajar nos braços do infinito
Onde tudo é mais bonito
Nesse mundo de ilusão
Transformar o sonho em realidade
E sonhar com a mocidade
E sonhar com o pé no chão”

.

- Irlan Simões (@irlansimoes) é autor do livro “A Produção do Clube: poder, negócio e comunidade no futebol” (2023).

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