No dia seguinte à morte de Ariano Suassuna, entre tantos obituários (lidos, vistos e ouvidos), um me chamou a atenção em especial. Era um trecho de uma entrevista com o poeta escritor, onde ele comentava, com ironia, a conversa com um repórter. Não me lembro o que ele disse com todas as letras, mas era algo como:

"Outro dia um repórter me perguntou se eu tenho o hábito da leitura. Hábito? Eu tenho é uma paixão por leitura!".

E dali ele contava sobre as origens dessa paixão, que vinha desde a infância e que, segundo ele, o permitia viajar . "Era abrir o livro e a viagem começava", dizia Suassuna com seu poder de encantador. E eu não podia escolher maneira melhor de começar um texto em que, num balanço da minha última semana cultural, um livro ganhou de dez filmes que vi.

Não eram filmes muito bons, é verdade. Mas eram filmes que eu havia comprado - há tempos. E que estavam pegando poeira na minha estante. Explico melhor: estou ficando livre de várias coisas que acumulei durante minha vida - uma consequência lógica de ter completado 50 anos (na verdade, já estou com 51). Daqui para a frente, não vejo muito motivo para continuar acumulando coisas –  como fiz até agora na minha vida. É melhor eu aproveitar bem o que tenho, e passar adiante o que estiver "sobrando".

Já comecei este "movimento" no ano passado - quem me acompanha aqui talvez se lembre da minha "promoção" que distribuiu para os leitores deste espaço 500 CDs da minha coleção. Pelas respostas que recebi, dos que receberam os CDs (50 pacotes de 10), foi um grande sucesso - no que diz respeito à descoberta de novos sons. Do meu lado, devo dizer que foi uma experiência liberadora. E, inspirado por ela, desde então estou pensando em fazer uma coisa parecida com meus livros (com outros que estão a mais, além de vários que eu já distribuo). E, com certo atraso, comecei a fazer o mesmo com meus DVDs.

A diferença entre reciclar CDs e DVDs é uma só: enquanto você hoje pode colocar qualquer música no seu computador – e, dali, para sua "nuvem" favorita, para então ouvir quando quiser –, o conteúdo de um DVD exige uma atenção especial. Isto é, ele pede que você o assista antes. Claro que estou ciente de que é possível você transferir um filme de um DVD para seu computador ou tablet. Mas, além de ser um material pesado, sejamos honestos: ele vai ficar lá, ocupando espaço, e você vai ficar sempre adiando a data para assistir a ele. (Enquanto uma música, você pode ouvir a qualquer hora, fazendo qualquer atividade).

Pilha de DVDs do Zeca CamargoAssim, semana passada, tomei coragem – e separei um tempo (aproveitando que estou passando por uma gripe "daquelas") – para então "traçar" as pilhas de DVDs que tenho aqui em casa. Muitos deles, aliás, fechados. E, ao contrário do que você possa imaginar – ao contrário até mesmo da minha expectativa –ainda não encontrei nada de bom. A amostra, reconheço, é pequena ainda – vi apenas 10 filmes, de pilhas com mais de 200. Mas a duvidosa qualidade desta primeira leva me levou a um questionamento quase "metafísico": afinal, por que eu comprei esses DVDs num primeiro momento?

Essa era a pergunta que eu me fazia – e ainda me faço – quando os créditos começavam a rolar. O que me levou a adquirir esses filmes? Antes que você venha com o argumento de que hoje em dia, com o "streaming", não faz sentido comprar DVD, já que está tudo disponível (ou, quase tudo, quando você lembra que a oferta de filmes de uma Netflix, por exemplo, ou mesmo de um Now, não está muito distante de um cardápio de produções que já estão disponíveis no cabo e até na TV aberta – ou, para me alongar na tortura, eu sofro toda vez que eu recebo uma newsletter de cultura pop, "Vulture", e vejo o que eles indicam para assistir de legal da Netflix daquele semana... nos Estados Unidos, ou seja, coisas que a gente nem sonha por enquanto que vão estar disponíveis para "streaming" aqui no Brasil... mas eu divago...) – enfim, quero explicar que comprei esses DVDs todos, ao longo da última década, porque são produções que ou são independentes demais para serem lançadas no circuito comercial nacional (especialmente documentários e filmes de língua que não seja inglês) ou eu não consegui ver quando estavam em cartaz e quis correr atrás do prejuízo.

Como "Minhas mães e meu pai", "perdi" a chance de assistir a este filme em 2010 – e aí, numa viagem no ano seguinte, lembro-me que o encontrei por menos de R$ 20,00 numa mega livraria americana e achei que seria um bom negócio levá-lo. Tomou três anos de poeira na minha estante até que eu abri o celofane dele na semana passada. Estou tentado, como você que me conhece bem já sabe, a passar o resto do post comentando sobre a estupidez da tradução do título do filme – que, no original, aproveita brilhantemente a canção do The Who ("The kids are alright") para falar que uma família com duas mães pode dar certo. Mas tenho outros nove filmes para comentar – e mais um livro, lembra? Então vamos deixar barato.

"Minhas mães" é um filme razoável. Talvez se eu o tivesse visto na época em que todo mundo falava dele – chegou a ser indicado para quatro Oscars, inclusive o de melhor filme – eu teria sido mais receptivo. Mas visto com essa, hum "distância histórica", me pareceu, apesar do tema inovador, mais um filme de Hollywood. Com interpretações absurdamente fantásticas – você já vou Julianne Moore errar? –, é verdade. Mas bem normal – e até bem previsível (até na sedução de uma das mães pelo doador de esperma que ajudou a gerar as crianças do casal de lésbicas). Só que teria ficado feliz se esta tivesse sido minha única decepção.

Veja por exemplo "Cold weather" (2010), de Aaron Katz. Quando acabei de vê-lo eu simplesmente não entendia a razão de eu ter comprado um filme tão ruim – onde não acontece quase nada, apesar de um suposto mistério de uma mulher desaparecida e de uma maleta com milhares de dólares. Tive de ir à internet, procurar o que haviam escrito sobre "Cold weather" para procurar pistas – e se encontrei alguma coisa, foram comentários de que esse era a "melhor" de um um subgênero do início desta década, chamado "mumblecore" – algo que define um roteiro sem muito diálogo, onde os personagens ficam murmurando uns para os outros. Ou seja, um pesadelo.

Só comparável, entre estes que vi, a "The trip" (também de 2010 - ô ano ruim!), de Michael Winterbottom. Sabe aquele ator inglês, Steve Coogan? Pois é, o filme é ele e outro amigo ator, Rob Brydon, numa viagem pelo interior da Inglaterra, a convite de um jornal inglês, para experimentar a comida de templos modernos da gastronomia local. Só isso. Ah, e entre uma refeição e outra, eles ficam disputando quem imita melhor Michael Cane! Que tal? Como uma ideia dessas sequer chega às telas? Quem para para produzir (e para ver) um trabalho assim? E, novamente... por que eu comprei este DVD????

Acabo de resolver que não vou falar de um por um aqui -– seria pedir demais de sua atenção. Vou só dar uma passada geral para você ver como a lista é eclética. Tem filme de terror ("O segredo da cabana", quase bom). Tem filme de adolescente e bullying ("Terri", uma bobagem). Tem filme chinês ("Último trem para casa", forte, mas mal amarrado). Tem adaptação de bons livros ("Desonra", tirado de um dos melhores trabalhos do escritor sul-africano J.M. Coetzee, com John Malkovich no elenco, mas com resultados apenas regulares). E tem também documentários – duas relativas boas surpresas quando penso no conjunto: "Interrompendo a violência", sobre um grupo de trabalhadores sociais em Chicago que tenta impedir a escalada de crimes nos guetos da cidade; e "O pesadelo de Darwin" – este sim, muito intrigante, sobre o desastre humano e ecológico que a introdução da gigantesca perca do Nilo teve no lago Vitória, na Tanzânia, embora também mal amarrado.

Foi depois desse "round" de filmes, digamos, insatisfatórios que resolvi pegar um livro para ler...

Livro 'Como ficar podre de rico na Ásia emergente'E diante da pilha de volumes recém-comprados, escolhi aquele de um autor que está vindo para a Flip deste ano – que começa esta semana em Paraty: "Como ficar podre de rico na Ásia emergente", de Mohsin Hamid (Companhia das Letras). Este é um escritor, nascido no Paquistão, que admiro desde que li, ainda em 2007, o seu livro anterior: "O fundamentalista relutante" (publicado no Brasil pela Alfaguara). Neste trabalho, seu segundo livro, ele já mostra que é um mestre em provocação – mas um assunto polêmico, como sabemos, não basta para se firmar como uma nova voz na literatura mundial. Hamid tem um estilo muito particular, que mistura finíssima ironia com um realismo descarado – e o resultado é uma leitura totalmente cativante e divertida.

"Na aldeia, a cópula só é um ato privado quando praticada nos campos. Dentro de casa, nenhum casal tem um quarto só para si. Seus pais dividem o deles com todos os filhos, os três que sobreviveram. Mas como é um quarto escuro, pouco se vê. Além disso, sua mãe e seu pai permanecem quase inteiramente vestidos. Nunca na vida tiraram a roupa para copular".

Este é um parágrafo típico de Hamid. Em curtas frases ele consegue ao mesmo tempo misturar humor e tragédia ("com os filhos, os três que sobreviveram"), observação aguçada e crítica social ("Nunca na vida tiraram a roupa para copular"). Se você reparou, o livro é escrito na segunda pessoa - ou seja, Hamid fala "com você", com o leitor. Afinal, este é um livro de... autoajuda! Disfarçado, claro. Hamid usa o truque do filão popular para contar a vida de um herói duvidoso, de sua infância até o enriquecimento na vida adulta – e a inevitável decadência. É seguindo os conselhos do livro que você também pode... chegar lá! Só que não...

Você não vai aprender nada com "Como ficar rico". Mas vai se divertir muito – e pensar bastante no próprio ato de leitura. Afinal, como o próprio autor escreve: "Como todos os livros, este livro de autoajuda é um trabalho de criação conjunta". E segue:

"Quando lê um livro, o que você vê são rabiscos pretos numa superfície de pasta de madeira ou, cada vez mais, pixels escuros sobre uma tela clara. Para transformar esses símbolos em personagens e acontecimentos, você precisa imaginar. E quando imagina, você cria. É ao ser lido que um livro se torna um livro, e em cada uma das milhões de leituras diferentes, um livro se torna um entre milhões de livros diferentes".

Bem... lembra dos filmes ruins que contei há pouco que eu vi semana passada? Pois é, ali, nada era possível de ser inventado. Eu tinha que simplesmente digerir o que estava vendo... Já no livro de Hamid, a história é outra. Ou, como ele sugere, a história é sempre outra. Seus personagens não têm nome e mesmo os cenários das narrativas são vagos (possivelmente Índia ou Paquistão, mas...). As situações são ora familiares, universais, ora estranhas, estrangeiras. Mas são todas deliciosas, descritas em passagens assim:

"Percebe, sim, que você está desconfortável na sua roupa recém-comprada e absurda, mas percebe também, por outro lado, que você não está mais desconfortável consigo mesmo".

"Você é o tipo de homem que descobre o amor através do pênis. Acha que a primeira mulher com quem fez amor deve ser também a última. Felizmente para você, para suas perspectivas financeiras, a menina bonita pensa no segundo homem como aquele que veio entre o primeiro e o terceiro".

"Sua mãe e sua avó disputam um jogo de esperar. A mulher mais velha está esperando que a mais nova envelheça, enquanto a mais nova espera que a mais velha morra. É um jogo que ambas irão inevitavelmente ganhar".

É por momentos assim que eu mesmo vou tentar passar na Flip para ouvir e conhecer Hamid. Mas se não conseguir, já fico feliz de ter sido brindado com o lançamento de "Como ficar podre de rico" por aqui. Nem que seja para provar que um livro muito bom vale mais que dez filmes "mais ou menos"...

O refrão nosso de cada dia: "Turn down for what", DJ Snake & Lil Jon – excepcionalmente a música que indico hoje aqui não vale a pena pela, bem, pela própria música, mas pelo clipe. Como sugeriu um amigo que me mandou o link, é o melhor do ano por enquanto. E eu iria além: é o melhor do ano – ponto. E talvez também o melhor da década. Eu diria para você esquecer a música e ver só as imagens, uma vez que, como canção, "Turn down for what" não é grande coisa – e eu duvido até que funcione numa posta. Mas ela é fundamental para criar o clima do clipe. Que é, arrisco, uma pequena obra-prima.

*Fotos: Zeca Camargo/Arquivo Pessoal e Divulgação