Uma rápida olhada nas programações da TV aberta - e sobretudo nas atrações dos canais a cabo - nos faz crer que estamos na "era de ouro" da comédia televisiva no Brasil, tamanha a oferta de novos programas e novos talentos do riso que os estrelam. Mas será que estamos rindo disso tudo?
 
Estamos certamente precisando de mais humor nas nossas vidas - especialmente quando olhamos em volta e encontramos uma realidade que nos convida a chorar... Essa profusão de novos programas, que tenho conferido com regularidade, é bem-vinda - e tem um timing perfeito. A pergunta importante a ser feita, porém, é se essa farta seleção está indo de encontro às expectativas de quem precisa urgentemente de alívio para um cotidiano pesado...
 
Nós brasileiros, que sempre nos orgulhamos de viver num país tão bem-humorado, que adora estampar um sorriso no rosto, muitas vezes temos dificuldades em traduzir isso na arte de fazer humor - especialmente na comunicação de massa. Não é tarefa simples. Uma piada que você conta na mesa de um bar, entre amigos, nem sempre funciona quando você fala com o grande público. Mesmo aquilo que é testado e aprovado em um palco - e nossos teatros andam animados com tantos artistas de "stand up" pipocando por todo o Brasil - nem sempre sobrevivem a transição para a televisão. Qual o segredo de fazer rir na telinha?
 
As primeiras pessoas para quem eu faria essa pergunta são, claro, Marcelo Adnet e Marcius Mehlem - responsáveis pela maior revolução recente no humor televisivo, com seu "Tá no ar" (que mexeu positivamente até com o novo "Zorra", que leva também a assinatura de Mehlem). As respostas que eles dariam estão nos próprios programas que fazem, nos esquetes que gravam, nas piadas que contam.
 
O "pulo do gato" desse novo humor que eles inauguraram foi ter apontado o humor para a própria TV, além de terem se livrado de um surrado tripé que sustentou por décadas o humor que ela exibia: piadas com 1) mulheres burras; 2) homens "cornos"; 3) estereótipos homossexuais - quando não a combinação de mais de um deles, ou mesmo os três juntos. Resquícios disso existem até hoje - e são, lamentavelmente, o maior obstáculo de boa parte das novas atrações que ironicamente pretendem "renovar" o humor na TV. Mas o sucesso de "Tá no ar" aponta para uma alternativa, quem sabe, mais interessante.
Marcelo Adnet e Marcius Melhem em esquete de 'Tá no Ar'

Como já foi, por exemplo, o escárnio de celebridades e pessoas que estão na mídia - hoje um conceito tão velho e desgastado que sequer alavancar uma audiência. Essa estratégia - que, desde o início tinha vida curta (quantas vezes você pode pintar alguém famoso de idiota e ainda parecer que está apresentando algo diferente?) - reinou no início deste século, mas já deixa gosto de comida vencida, com o público respondendo a isso com a indiferença de quem ouve uma piada cujo final é conhecido. A tendência é, como é possível notar, perder cada vez mais espectadores.
 
Por onde ir então nessa árdua tarefa de fazer um telespectador rir?
 
Não são poucos os programas e artistas que olham para a TV americana como inspiração. O sucesso de apresentadores como Jimmy Fallon (gênio) ou Jimmy Kimmel (um gênio menor) - para citar duas fontes nem sempre disfarçadas de vários modelos de apresentadores no Brasil - é uma ótima referência, não fosse por um detalhe: a simples reprodução do modelo de alguém que abre um talk show contando piadas esconde as verdadeiras razões do sucesso de Fallon & Kimmel (entre outros) - que são 1) a inteligência dos apresentadores (nem sempre presente em quem simplesmente reproduz a fórmula); 2) mais importante ainda, uma equipe de redatores excelente, não só afiada na ironia, mas também antenada com o que está acontecendo no mundo a sua volta, e com uma inteligência capaz de desafiar a da própria estrela para quem escreve. Ah! Vale a pena falar também que essa equipe de redação sabe ouvir críticas e tem a sabedoria de voltar para a página em branco quando o resto do grupo não acha a menor graça no que um deles escreveu.
 
O que nos leva ao ponto crucial pra gente tentar responder à pergunta que fiz no título do post de hoje: tudo começa num bom texto.
 
A maioria dos programas de humor que fracassam parecem desconhecer a importância dessa "matéria-prima". Em mais de um exemplo que pode ser garimpado hoje em dia numa zapeada casual, parece que o ponto de partida para um programa de humor é a capacidade do ator ou atriz principal fazer uma careta. A gente gosta muito disso sim - de Mazzaropi a Lady Kate, aprendemos muito a rir com essas caricaturas. Mas ter isso como ponto de partida é receita de fracasso: vamos rir no primeiro episódio - ou talvez no primeiro bloco do primeiro episódio. Mas e depois?
 
Depois, é melhor você ter um bom texto. Não exatamente boas piadas - elas funcionam também "até a página 15", mas quando você está desenvolvendo um roteiro de meia-hora (ou, para ser preciso, de 23 minutos, que é tempo de produção padrão de um sitcom), é preciso mais do que um punhado de gracinhas para tudo fazer sentido. É preciso texto, ideias, argumentos - enfim, é preciso inteligência.
 
Para reforçar minha defesa do bom texto, trago aqui uma prova irrefutável de que, quando tudo isso que citei na última frase está jogo e bem azeitado, a coisa funciona: "Connection lost", o décimo-sexto episódio da sexta temporada de "Modern family". No que diz respeito a escrever comédia para TV, isso para mim é uma obra-prima - você consegue encontrar isso sem dificuldade na internet.
 
Claro que só parei para elaborar isso depois que vi o episódio pela terceira vez. Na primeira - assisti na casa de uma amiga minha quando estava hospedado com ela em Miami - mal consegui ver tudo: fiquei provavelmente metade do episódio de olhos fechados, rindo - e não apenas da piada, mas da sequência absurda dos eventos que iam se desenrolando. A segunda vez que vi "Connection lost" - logo depois da primeira - foi para ver a outra metade que eu não tinha conseguido prestar atenção enquanto eu estava rindo. Semanas depois, em visita ao Brasil, esta minha amiga - que trabalha com TV aqui e lá nos Estados Unidos - trouxe-me um DVD promocional que eles distribuíram, e que eu assisti novamente... e cheguei à conclusão de que é sim um trabalho de gênio!
 
Resumindo muito brevemente o que acontece no episódio, Claire (a premiada Julie Bowen) está "presa" no aeroporto de Chicago - e resolve chamar o marido Phil (o também premiado Ty Burrel) para saber como estão as coisas em casa. As confusões começam quando ela percebe que sua filha mais velha não está por ali e, para piorar um pouco as coisas, ela (a filha) mudou o status do seu Facebook de "solteira" para "casada". Detalhe: todo o episódio se passa na tela do laptop de Claire!
 
Isso mesmo: a história toda é contada nas janelas - de redes sociais, de ferramentas de buscas, de lojas virtuais, de aplicativos de localização, de balões de conversa - que se abrem no computador de Claire enquanto ela está em O'Hare. Se a premissa parece ser bem aborrecida - geralmente, quando uma tela de computador ou mesmo de smartphone aparece na televisão nossa tendência é rejeitar a informação que ela traz -, "Connection lost" parece ter conseguido o impossível: trazer a dinâmica da vida real para uma tela de cristal líquido.
 
No lugar de repetir a mesma piada - Claire está conversando no FaceTime -, os roteiristas extrapolaram sua criatividade e usaram todas as ferramentas mais conhecidas da internet (de Wikipédia aos sites conhecidos de compra) para buscar, no próprio imaginário popular, elementos de identificação que pudessem provocar o riso.
 
Por exemplo, quando Claire fala com seu irmão Mitchell (Jesse Taylor Ferguson) para ter notícias de sua filha e ele pergunta se ela está ligando porque tinha lembrado esquecido do seu aniversário, Claire nega o esquecimento - e diz que já mandou um presente, ao mesmo tempo em que escolhe alguma coisa para ele no site de uma loja de roupas. Ou ainda, quando sua filha Haley (Sarah Hyland) aparece e pergunta como a mãe dela entrou no seu Face (já que ela a havia recusado como amiga virtual), Claire responde que usou um nome falso - e a filha desabafa horrorizada: "Meu Deus, eu ando jogando Candy Crush com minha mãe!". E toda vez que Claire conecta com seu pai, Jay (Ed O'Neil), ele, como o membro mais velho da família, nunca sabe direito "mexer com aquilo" - aparece sempre fora de foco, fora da tela, fora de si!
 
Tudo é brilhante - e brilhantemente escrito. "Connection lost" - que recebeu no Imdb a maior pontuação da história do sitcom (9,3) - é a prova de que é possível sim fazer humor de novas maneiras. O fato de um episódio original como esse ser o destaque da sexta temporada do programa, quando a maioria desses sitcoms começam a dar sinais de cansaço, só reforça seu mérito. Que é, desculpe, insistir, mais uma vez o mérito do texto. Ou ainda do texto inteligente - de uma equipe que senta numa sala e só sai não quando tem piadas suficientes para preencher vinte e poucos minutos de show, mas quando tem piadas engraçadas para preencher esse tempo, e ainda jogar algumas fora porque não estão cabendo naquele episódio.
 
E esse é um processo que só se faz com tentativa e erro, com humildade de perceber que nem tudo que você fala é "super divertido", que nem a careta mais engraçada do mundo salva uma piada previsível.
 
E quem diz isso não sou só eu não. Posso talvez ter elaborado um pouco demais aqui sobre algo que deve ser tão intuitivo quanto a arte de contar piadas. Mas no final, o veredicto é sempre dele - do público que queremos fazer rir. São eles que dão o retorno maior sobre esse trabalho difícil - que no final, sempre se traduz em números de aprovação.
 
Pensando justamente neles, pergunto para terminar: tem alguém aí rindo?

(FOTO: Marcelo Adnet e Marcius Melhem em esquete de 'Tá no Ar'. CRÉDITO: Arquivo/Globo/Alex Carvalho)