Rose (Jéssica Ellen), Vicente (Jesuíta Barbosa), Fátima (Adriana Esteves) e Maurício (Cauã Reymond) em 'Justiça'
Há quanto tempo você não assiste a uma coisa na TV e fica realmente interessado em saber o que vai acontecer com aquelas personagens? Abro este texto com esta pergunta porque, preparando-me para encarar mais uma fase de “Justiça” - que estreou na segunda-feira passada e já havia me conquistado antes de a semana terminar -, depois de ter passado o sábado e o domingo discutindo mais ou menos o mesmo assunto com as pessoas que encontrava, senti necessidade de celebrar esse momento hoje raro de comunhão entre a TV e o telespectador. Aliás, senti uma nostalgia de “Avenida Brasil” no ar… Mas vamos desenvolver melhor.

Parece que todo mundo já entendeu que estamos sempre contando as mesmas histórias. “Não há nada de novo sob o sol”, reza o velho ditado - e isso vale mais ainda para o universo da ficção. Mas felizmente há sempre uma maneira de renovar aquilo que se conta. O melhor livro que li este ano - ainda sem tradução no Brasil - é “What belongs to you”, do americano Garth Greenwell. Tem coisa mais batida do que se apaixonar por alguém para quem você está pagando para fazer um programa? Pois Greenweel transporta essa relação surrada para um outro patamar - e ainda te leva junto para uma das reflexões mais profundas e lindas com a qual me deparei ultimamente da (também surrada) relação entre pais e filhos. Sua divagação sobre o que acontece com a capacidade de nos tocarmos é tão cativante que se começar a falar sobre ela agora, divagarei eu mesmo - e não quero repetir erros passados eheh.

Ainda nos livros, foi com alegria que vi (finalmente) nas prateleiras brasileiras a tradução da obra máxima de David Mitchell, “Atlas de nuvens” (Companhia das Letras) - mais uma prova de que contar as mesmas histórias vale a pena se você inventar uma maneira nova de apresentá-las. No caso, a própria “fórmula” de Mitchell em “Atlas” é conhecida - aquela de “um livro dentro do outro” -, mas o contraste entre os estilos, a curiosa escolha de períodos da história para centrar suas seis narrativas, e mais o retorno a cada uma das “pontas soltas” da primeira metade do livro, não são nada menos que um brilhante convite à leitura. Você sente no seu corpo que precisa ir adiante porque o autor conseguiu criar em você a necessidade de retornar sempre a esses personagens.

Que é exatamente o que nos leva então a “Justiça”. Depois de ver os quatro primeiros episódios - confissão: o terceiro e o quarto, não aguentei esperar para ver na TV aberta e assista a eles antes da exibição, no GloboPlay - eu fiquei totalmente obcecado pelo destino daqueles personagens. O que, repito, tem siso um acontecimento raro - mesmo no universo da TV.

Justamente pela profusão de séries - que a abertura do cabo e do “streaming” trouxe nos últimos anos -, acabando nos “acostumando mal” a querer sempre histórias cada vez com mais qualidade - e nível sempre alto de atenção e envolvimento. “Aprendemos” o que é uma narrativa de qualidade, o que significa “desenvolvimento de personagens”, a importância de um bom gancho - e mais: repetindo… o poder de uma história bem contada. Evoluímos muito! Eu sou do tempo em que uma audiência desesperada só tinha uma pergunta na cabeça: “Quem matou Salomão Ayalah?’. Eheh! Hoje… sorte do telespectador que tiver só uma dúvida depois de acompanhar vários capítulos de uma novela - ou mesmo um punhado de episódios de uma série. É com isso que os bons autores estão preocupados agora: com essas várias conexões possíveis de serem feitas - e que, claro, funcionam sempre no nível pessoal.

Para citar exemplos recentes de tramas que “não me pegaram”, só fui adiante de “Breaking bad” - que assisti com um certo sacrifício até o fim - por insistência de amigos, que sempre vinham com aquele velho conselho: “depois da segunda temporada melhora” (o mesmo que ouvi, por exemplo quando comecei a acompanhar, com relativo atraso, “Game of thrones”). De certa maneira desta vez 0 arquétipo do “homem derrotado que aposta tudo ou nada” - tão discutido recentemente em dramaturgia televisiva (especialmente a americana) e que funcionou tão bem pra mim em “Mad men” - não me encantou. Para um personagem tantas vezes chamado de “shakespeariano”, Walter White me pareceu bastante linear. Seu “parceiro” Jesse, apesara de mais interessante e mais bem interpretado, idem. Mas criticar “Breaking bad” - que tem ótimas qualidades, sobretudo de direção - é mexer em vespeiro… Vamos deixar por aqui, dizendo simplesmente que não me “hipnotizou”.

O mesmo vale para outra série - esta, original da Netflix: “Jessica Jones”. Mesmo no universo dos estranhos heróis da Marvel (que geralmente eu gosto), a “menina misteriosa” não falou comigo. Depois do quarto episódio, desliguei a TV sem a menor preocupação do que iria acontecer com ela - e olha que foi bem aí que o “manipulador” da sua mente começou a ficar mais presente…

Por outro lado, cruzei com séries no último ano que não foi preciso nem eu chegar ao fim do episódio para estar totalmente seduzido pelos seus personagens principais - e em alguns casos já até pelos secundários. Se você está pensando em “Mr. Robot”, acertou - a TV raras vezes conheceu alguém tão carismático quando Rami Malek no papel do hacker revolucionário. (Vale notar que a princípio poucas coisas me parecem menos interessantes do que uma série sobre um hacker - o que só torna o mérito de “Mr. Robot” ainda maior). E aí tem “The night of”.

the night of - blog legendadoTalvez esta série - que é “das antigas”, ou seja, daquelas que a gente tem que esperar uma infindável semana para ver o capítulo seguinte… - ainda não tenha passado pelo seu radar pop. O que pode ser bom se você estiver com seus dias muito ocupados, uma vez que “The night of” é uma daquelas histórias que te consomem tanto a ponto de fazer você esquecer de caçar pokemóns!

É mais uma história de crime hediondo onde o suspeito é um rapaz com cara de inocente sem antecedentes criminais, vítima de uma noite em que ele simplesmente ia pra uma festa. Só que não… Tudo - absolutamente tudo - dá errado naquela madrugada para Naz (Nasir - o ótimo Riz Ahmed). E para complicar tudo, especialmente numa Nova York pós 11 de setembro, sua família é paquistanesa (ele mesmo é nascido em solo americano). Quem se interessa pelo seu caso é o advogado de defesa Jack Stone (John Torturro no que o clichê da crítica adora chamar de “o papel da sua vida”, que, diga-se, na origem do projeto era pra ser de James Gandolfini) - um “coitado”, que quando consegue tirar alguém da porta da cadeia por 250 dólares tá no lucro.

É desesperador assistir à trama se desenrolando, ou melhor, se complicando cada vez mais - e não vou dizer mais sobre “The night of” (que até o momento em que escrevo isso só tem sete episódios disponíveis na HBO do Brasil). Citei a série aqui não apenas por ser fã, mas porque ela é mais um argumento na minha linha de raciocínio do início deste post de hoje: quando você conta uma história - seja num livro, na TV, num podcast - a única coisa que realmente importa é… eu quero realmente saber o que vai acontecer com esses personagens?

Voltemos para “Justiça”, que entra hoje na sua segunda semana. Eu quero saber quem é aquela menina que grita “papai” quando Vicente (Jesuíta Barbosa) sai da prisão por ter matado a filha de Elisa (Debora Bloch) num crime passional? Sim. Quero saber onde foram parar os filhos de Fátima (Adriana Esteves), que volta pra sua própria casa só que abandonada? Claro! Quero também saber que futuro terá a amizade de Rose (Jéssica Ellen) e Débora (Luisa Arraes) depois que a primeira foi presa com drogas numa festa na praia que estavam juntas - especialmente depois de perceber que o companheiro de Elisa, Marcelo (Igor Angelkorte), condena essa relação. Óbvio! E quero saber como Maurício (Cauã Reymond) pensa em se vingar de Antenor (Antonio Calloni), que atropelou sua mulher, que ficou tetraplégica no acidente e pediu para o próprio marido matá-la no hospital? Precisa perguntar?

E veja que eu estou falando apenas dos personagens ditos principais. Também estou interessado na degradação do “sargento” Douglas (Enrique Diaz), que prendeu Rose e colocou droga na casa de Fátima pra incriminar a vizinha que matou seu cachorro. E no esquema criminoso cujo chefão parece ser Celso (Vladimir Brichta). E no destino do marido de Fátima - o motorista de ônibus Waldir (Ângelo Antonio). E não é possível que Vânia (Drica Moraes) não tenha um papel mais importante na vida de seu marido Antenor, que agora é um político em campanha…

Eu mencionei que todas essas histórias estão interligadas? Que Fátima trabalha na casa de Elisa? Celso tinha um caso com Rose? Waldir era motorista de ônibus na empresa do pai de Vicente, que levou um golpe do seu sócio, Antenor? Que Maurício era advogado dos mesmos empresários? Eu fico só entusiasmado só imaginando as outras conexões que ainda vão aparecer…

Vou segurar os elogios aqui - ou melhor, vou resumir numa só palavra o que cabe a cada um desse elenco, mas também à direção geral (José Luiz Villamarim, e toda sua equipe) e ao texto de Manuela Dias, que é a prova final que queria apresentar sobre a questão de contar a mesma história de maneiras diferentes para surpreender e encantar: são todos geniais.

A primeira referência que me vem à cabeça é a suprema contista canadense (ganhadora de um Nobel), que nunca apresenta uma coisa só. Nos seus - por vezes curtíssimos - contos, Munro parece sempre ter escolhido uma narrativa linear. Mas de repente a personagem que já te seduziu tem um segredo, que te remete a um caso do passado, que devolve para uma figura secundária do presente - e que altera toda a nossa expectativa de desfecho.

“Justiça” parece ter bebido nessa fonte saudável - uma cartilha de que fato ensina, acima de tudo, a respeitar o leitor; ou, no caso da série, o telespectador. E que talvez recorra a malabarismos - estéticos e narrativos (todos justificados) -, mas com um único (e honesto) objetivo: olharmos para nós mesmo e nos colocarmos na situação daquelas pessoas cujas histórias agora fazem parte da nossa própria vida.

Todos merecem “Justiça” - ninguém mais que aquele telespectador que quase (eu disse “quase”) se acostumou a ser chamado de ingênuo e ouvir de produções quiçá preguiçosas de que: 1) ele sempre quer ouvir a mesma história (correto); 2) ele quer ouvir essa mesma história contada sempre do mesmo jeito (errado). Essa nova série está aí para demonstrar que essa é a verdade.

E caso encerrado.