Uma breve história do tempo
“I got away for a little while”
(Ghost Ship, Blur)
Tenho viajado. Você talvez tenha percebido. Normal. É isso que faço - é isso que gosto de fazer. Porém, nos últimos seis meses, dediquei-me a isso com especial fervor. Uma série de coincidências colaboraram para isso: trabalho, lazer, compromissos profissionais, necessidades de renovação - tudo junto fez com que, de novembro até agora, eu passasse cerca de 20% desse tempo só no Brasil. O resto? Bem, o resto…
Estive lá e cá. Primeiro, uma volta ao mundo: México, Estados Unidos, Coreia do Sul, Tailândia, Índia, Turquia, Israel, Holanda, Dinamarca e Portugal. Básico. Era trabalho, tudo estava planejado. E depois disso, o acaso se ocupou de me surpreender. Levou-me ele duas vezes a Madri, novamente a Portugal, três a Paris - uma delas, rumo a Avignon, outra ao Vale do Loire. Foi o acaso também que me permitiu voltar a Bangcoc mês passado, apenas alguns meses depois de ter estado por lá em dezembro. E por falar em Sudeste Asiático, some à lista: Laos (como não celebrar a chance de poder ir pela terceira vez a um lugar como Luang Prabang); Camboja (onde não ia desde 2004); e Myanmar - finalmente um país que eu não conhecia! Inclua também Miami e Nova York - duas vezes. Já falei Buenos Aires? E mesmo no Brasil, tive a chance de conhecer a Chapada dos Veadeiros e lembrar como é lindo Búzios - onde não ia há umas três décadas.
Alguns podem achar que estou apenas contando vantagem - o que é bom, pois esses não vão desistir de me acompanhar nessa leitura a partir deste ponto. O que é ótimo, pois a essa altura da vida, não tenho mais paciência de convencer ninguém de que aqui escrevo o que me dá vontade - não por narcisismo, nas pela necessidade de trocar com quem realmente está interessado em ideias. Essas viagens, essas distâncias percorridas, esses lugares visitados - não servem apenas para tirar fotos bonitas, como as que ilustram a abertura do post de hoje. Todo esse deslocamento - e a solitude que me acompanhou por bons trechos desses trajetos - trouxe não só uma sensação frenética, mas, paradoxalmente, uma tranquilidade inusitada. Junto com uma certeza de que estava fazendo a coisa certa.
Mas coisa era essa? Uma resposta a minha curiosidade infinita - que é, afinal, o principal motivo pelo qual a gente viaja (ou deveria viajar). E justamente porque ela é infinita, meus achados em cada um desses lugares também são infinitos - logo, impossível de caber numa folha de papel, ainda que virtual. O que não significa que não vale a pena tentar. Por isso, convido você agora, que já me segue aqui há tempos (já são quase nove anos!) ou não, mas que tem o mesmo espírito deste espaço: o entusiasmo com as descobertas e as inesgotáveis possibilidades da criação humana - a me seguir nesta breve história do tempo. Ou pelo menos desse tempo tão particular, meus últimos seis meses.
Vi templos em Siam Reap e a praça dos Papas em Avignon - onde dancei na ponte da cidade, imitando Tintim ao lado de Milu naquele notório traço de Hergé. Falando nisso, pedi para as bailarinas de plantão ali em Erawan fazerem uma dancinha para mim - não custa nem caro, menos de R$ 100,00. Passei por assistente de artista plástico para conseguir visitar o novo Whitney Museum, em Nova York, antes que ele fosse aberto oficialmente para o público. E, de balão, passei por cima de Chenanceau. Naveguei o Rio da Prata e uma parte (bem pequena) do Mekong. Fiz um ziguezague no lago Inle, Myanmar, e passei um fim de tarde inteirinho vendo o sol ir embora levando seu reflexo do Tejo, em Lisboa.
Testemunhei o amanhecer de Bagan, senti o calor cruel do meio-dia em Bayon (Angkor), percebi as sombras ficando longas no fim da tarde de inverno em Uzés, saí de bicicleta para explorar a noite de Amsterdam. Deixei cachoeiras caírem nas minhas costas no Vale da Lua (Goiás) e senti maresia do Pacífico em Santa Mônica. Descobri o bairro “art deco” de Tel Aviv e pude compará-lo com o de Miami. Derreti com a tórrida noite em Silom e congelei com a manhã de Copenhague. Noites, dias, horas - impressionante como tudo é relativo quando a gente junta essas lembranças.
Vi Basquiat no Brooklyn nova-iorquino e Marlene Dumas em Amsterdã. Morandi novamente me hipnotizou no fim de um passeio em Roma - especialmente com suas flores que eu nem sabia que existiam - e reencontrei meu ídolo, Michaël Borremans, no museu de arte contemporânea da capital israelense. Velázquez me tirou (mais uma vez) do sério no Grand Palais. Janet Cardiff mexeu com os meus sonhos no espaço que o Museu Reina Sofia, em Madri, tem no Palácio de Cristal. Tapiés em Miami, Sonia Delaunay na Tate, 100 anos de cinema turco no Istanbul Modern. Não consigo esquecer as imagens em branco e preto de lésbicas que foram vítimas de homofobia registradas pelas lentes da sul-africana Zanele Muhole, na Photographer’s Gallery, em Londres. Tive o privilégio de conhecer o ateliê de um ídolo meu nas artes plásticas, Francesco Clemente, na parte baixa da Broadway de Nova York, e conversei com uma artista (Rose-lynn Fischer) que fotografa as lágrimas das pessoas no microscópio - no Palais de Tokyo.
Vi “Whiplash” no moderno complexo cultural em De Hallen, Amsterdã, e “Vingadores” em Yangoon - onde os filmes passam sem legenda em birmanês (ou em qualquer língua: se não entender, boa sorte!). Em horas de avião, chorei com “Selma” e “Pride” - vítima do velho truque de emocionar alguém mostrando gente que vai em frente quando alguém diz não. Meu cinema favorito em Nova York, Angelika Film Center, passava o último trabalho de um dos meus diretores preferidos - “While we’re young”, de Noah Baumbach.
Como resistir? E em Los Angeles assisti ao filme mais aterrorizantes dos últimos tempos (“Força maior”) - que, aliás, não é de terror. Terminei a temporada de “Unbreakable Kimmy Schmidt” no meu iPad (os melhores episódios vi enquanto estava em Mumbai), e em Miami, a abertura da última temporada de “Veep” - com aquele roteiro genial do TP que apaga bem no discurso de posse de Selena como presidente dos Estados Unidos. E, também em Miami, gargalhei ininterruptamente com “Connection lost”, um episódio de “Modern Family” todo feito em telas de computadores, tablets e smartphones - um dos momentos mais originais da TV neste século!
Fiquei amigo de um baterista em Myanmar - que ouvia The Cure nos anos 90 em fitas cassete contrabandeadas da Tailândia. Em Bancoc, descobri uma loja de discos em Sukhumvit (1979 Vynil) que vende compactos de “pop thai” dos anos 60 junto com "singles" do Supergrass - e onde acontecem “pocket shows” de folk local no fim da tarde. Ouvi Gil em Nova York, Florence Welch em Seoul, Blur em Bagan. Finalmente cedi aos encantos do hip-hop latino na Cidade do México, fui a um karaokê em Mumbai, escutei nova bossa nova sair dos portões das casas de jazz na rua Rosa, Lisboa. Comprei o CD de Fatima na Sounds of the Universe - no Soho Londrino - e, numa loja do aeroporto em Tel Aviv, levei o que o vendedor me garantiu ser o melhor da jovem música acústica israelense (ainda por conferir).
Li Miranda July às margens do lago Inle, e me emocionei com “O homem que amava os cachorros” - do cubano Leonardo Padura enquanto cruzava a linha do tempo. Reli Hilton Als (”White girls”) indo para o interior da Turquia, vibrei com o romance mais surreal dos últimos tempos (“The sellout”, Paul Beatty) em Siam Reap, e matei minhas saudades de Edward St. Aubyn lendo seu “Lost for words” nos bancos do Miradouro do Torel em Lisboa. Mantive-me entretido com o último número da “Pitchfork Review” - com um texto brilhante sobre os B-52’s - enquanto esperava amanhecer na beira no Mekong e experimentei Björk não com os ouvidos, mas com os olhos - no MoMA. E elegi “John Doe”, do Young Fathers, a trilha sonora oficial de todas essas viagens. Em tempo: resgatei “The first time ever I saw your face”, com Roberta Flack, como trilha sonora da minha vida.
Provei do melhor curry (e do melhor carneiro) em Mumbai, a alheira preciosa da Garrafeira Alfaia, em Lisboa - onde o bom amigo Pedro sempre tem uma garrafa do Douro que “ninguém ainda conhece” e que é sensacional. Perdi a conta de quantas variações sobre o tema “sopa thom yum” encarei na Tailândia, mas me lembro bem do restaurante no Camboja onde me serviram um “laap” de porco inacreditável. Não resisti ao kebabs do Hamdi em Istambul - mesmo sabendo que ia enfrentar hordas de turistas, e tive pelo menos um jantar memorável em Seoul, com um tradicional (e farto) churrasco coreano.
Aprendi no Laos como finalmente preparar um capim-limão para comer (e não só para perfumar a comida) - o truque é desfiá-lo o jogar no óleo bem quente. E graças à generosidade de um amigo sommelier em Paris, mas que é dinamarquês (de família taiwanesa!), tive o melhor banquete de toda a temporada no Kødbyens Fiskebar, em Copenhague. Costelas defumadas à moda texana em Buenos Aires, sashimi de atum “semi-gordo” em Bancoc, pintxos modernos em Madri, galinhada na Vila de São Jorge (Chapada dos Veadeiros), espaguete com “botarga” numa cantina romana (extra)ordinária chamada Il Vascello, chocolate com lavanda na mesa do melhor chef parisiense do momento - que, na verdade, é japonês. E, por falar em conexões inesperadas, foi no Mercado da Ribeira que conheci o excelente chef catarinense Iuri. Onde ele prepara suas delícias? Na Cozinha da Felicidade…
E gente. Gente linda que conheci, com quem me emocionei sem querer. Gente que eu provavelmente nunca mais vou ver, mas que pelos minutos das trocas que tivemos, me fez sentir como se eu fosse parte da vida delas: meu guia em Myanmar; nossa produtora em Bancoc; o ator aspirante na Cidade do México; a menina que faz o papel da jornalista na série dinamarquesa “Borgen”; as mulheres cantando dentro da caverna de Budas em Pindaya; o animador de plateia do “The Voice Holanda”; o motorista de tuktuk de Siam Reap que foi até o sacerdote da sua vila pedir que ele fizesse uma bandeira abençoada para minha casa; a italianíssima dona do Il Vascello (que ama o Rio de Janeiro); a mulher que faz a segurança preguiçosa da ala de marionetes de teatros de sombra no Museu do Oriente em Lisboa; os meninos monges jogando futebol no lago Inle; uma pessoa cujo rosto nunca conheci e que fica atrás de uma fantasia misteriosa de uma criatura que pode ou não ser uma cabra e que está sempre na Plaza Mayor madrilena.
Eu tentei colocar tudo aqui, nas a tarefa é inglória. Eu mesmo não me lembro de tudo que vivi e experimentei nesses últimos seis meses. Mas sei bem como tudo isso mexeu comigo. Sobretudo como isso me fortaleceu. Lá em cima brinquei que as pessoas que não têm a sensibilidade para entender coisas assim jamais chegariam a essa altura deste longo texto de hoje. Espero realmente que elas tenham me abandonado parágrafos atrás. E celebro quem veio comigo. Porque se você chegou até aqui é porque tem o potencial de entender o poder dessas coisas que a gente experimenta pelo mundo. E sabe como isso transforma.
Voltar para a rotina, para a minha realidade aqui é um processo cruel, mas que encaro agora sem medo. Voltei com uma coragem e, sobretudo, com uma certeza do que eu quero da vida, como nunca havia conquistado nesses 52 anos. E tudo isso me deixa, repito, mais forte. E, consequentemente, mais feliz. E se escrevi tudo isso até aqui foi para poder dividir isso tudo com você.
Numa dessas conversas que a gente tem em viagem, uma amigo recente insistia que para muitas pessoas, a própria experiência de viajar era um insulto. Deslocar-se pelo mundo, segundo ele, ocupa um lugar perigoso no imaginário de algumas mentes que, ao contrário de sonhar com as possibilidades que quem viaja abre para a gente - a possibilidade de sonhar, de descobrir, de simplesmente sair por aí -, vê isso como uma provocação. E, como um tiro que sai pela culatra, responde aos viajantes com raiva e desdém. Não tenho certeza de que já fui vítima de pessoas assim, como meu amigo descrevia, mas consigo compreender que isso existe, e lamentar que essas pessoas não sejam capazes de processar esse contato com experiências de outros viajantes como uma coisa positiva.
Como pessoa pública, sou esporadicamente atacado pelo simples fato de desempenhar esse papel - julgamentos que muito pouco tem a ver com a minha pessoa, mas que são lançados no território livre da internet como torpedos inconsequentes. Que, aliás, são também inócuos. Nas próprias viagens, li com surpresas comentários que são não apenas brutais, mas vazios, como se o único fato de eu ter escolhido me deslocar por esse nosso lindo planeta fosse algo a ser condenado.
Eu certamente nunca encarei assim nenhuma experiência de nenhum viajante. De Julio Verne a Pico Iyar, todos que um dia escreveram sobre a fascinante vivência de provar de outras culturas foram para mim exemplos preciosos de uma pessoa que eu mesmo queria ser um dia. E que acho que sou hoje. Acho não. Se essa última viagem de seis meses (quase ininterruptos) me ensinou alguma coisa, foi a de que eu ganhei essa experiência sim. Cresci ainda mais com ela. E seria injusto guardá-la só para mim.
Eu gosto de pensar em um mundo onde as coisas, os desejos, as pessoas, as aspirações sejam maiores do que um tweet rancoroso. Por isso, faço o que sei melhor: escrevo. E escrevo sobre isso que vivi. E ganho em troca o privilégio de ter você aqui me lendo.
Se isso não é felicidade…
O refrão nosso de cada dia: “Shame”, The Young Fathers - hum, só no caso de você ser uma daqueles que vão contra tudo que eu escrevi aqui hoje e, mesmo assim, chegou até aqui no texto, aqui vai, cortesia (mais uma vez) dos Young Fathers, uma música (e um vídeo) sob medida para você. A gente por aqui segue sendo feliz…
Fotos: Zeca Camargo