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  • How does it feel?

    O músico americano Bob Dylan em foto de abril de 1965, em LondresPodemos ir além da discussão menor sobre se está certo ou não o prêmio Nobel de literatura ter laureado este ano um músico, poeta e compositor – no caso, um certo Bob Dylan? Como disse bem Jon Pareles no seu comentário no “The New York Times”, a única pergunta que cabe ser feita ao comitê que decidiu isso em Estocolmo é: por que demorou tanto?
     
    Mas mesmo esta questão, agora que já digerimos e comemoramos o Nobel de Dylan, me parece secundária. Talvez os suecos já quisessem dar esse prêmio há alguns anos – muitos levantaram a questão que não há nada recente escrito (ou cantado) por ele que justifique uma premiação “quente”. Mas as coisas acontecem na hora que têm de acontecer – e ele, o prêmio veio enfim. E eu queria que o teletransporte já fosse uma realidade para eu poder ver de perto o que ele vai falar quando subir ao palco esta noite no seu show em Las Vegas.
     
    É provável – mestre do “nos sequitur” que é – que ele não fale nada. Não é de hoje que Dylan “decepciona” nos seus shows ao vivo. As aspas no verbo estão lá, que fique bem claro, para ressaltar que ele não faz ou deixa de fazer alguma coisa no palco porque o público quer que ele aja assim ou assado. Quem conferiu sua passagem pelo Brasil em 2012 sabe bem do que eu estou falando... Mas, como todo bom artista, ele faz o que acha melhor. E quem quiser que o acompanhe.
     
    Não faltam seguidores – aliás, nunca faltaram. Mesmo naquele ponto seminal da sua carreira, em meados dos anos 60, no auge da sua popularidade, quando ele resolveu contrariar os fãs e tocar do jeito que ele bem entendesse – mesmo depois de algumas vaias, lá estava todo mundo acompanhando ele de novo. Estou me referindo, claro, ao show seminal que ele deu em Newcastle, na Inglaterra, em 1966 – e que foi resgatado pelo brilhante documentário de Martin Scorcese sobre o artista: “No direction home”.
     
    Sou tão apaixonado por este filme que, nos primórdios deste blog, nos idos de 2007, dediquei nada menos do que três posts a ele – de certa maneira juntando Dylan e Racionais MC (você tem que ler para entender direito Parte 1 / Parte 2 / Parte 3). E uma das cenas que mais me fascinaram foi um registro feito depois deste show, onde um casal de fãs pede um autógrafo pela janela da limusine onde ele está e, depois de Dylan recusar a gentileza, eles perguntam como que esbravejando: “What’s your problem Bob?”. Uma pergunta que, aliás, pode ser feita até hoje – mesmo depois de tanto reconhecimento e diante de tanta inquietude que ele ainda demonstra aos 75 anos, a gente sente vontade de perguntar: “Qual seu problema Bob?”.
     
    Capa de 'Highway 61 revisited'Bem, digamos que o problema não é Bob, mas as coisas que Bob vê – e que não param de lhe incomodar, machucar, e fazer ele refletir. Os fãs mais moderados talvez só se lembrem dos clássicos. Mas quem se dispuser a ouvir suas composições mais recentes – por exemplo, “Long and wasted years”, de “Tempest” (2012), vai ouvir alguns de seus mais belos lamentos, como:
     
    “We cried on a cold and frosty morn,
    We cried because our souls were torn
    So much for tears
    So much for these long and wasted years”
     
    Este é um disco curioso, onde, numa primeira audição, o que a gente parece que ouve são lamentos de amor. Uma alma cansada, sem dúvida, mas que não se entregou nem às decepções que uma vida de paixões acumula. Mas ouvidas repetidas vezes, as canções se revelam mais profundas. Ainda a essa altura da sua carreira, ele não desiste de nos mostrar como podemos ser únicos e miseráveis – infelizes talvez, mas nunca conformados. Quase derrotados, mas inexplicavelmente altivos. Ou pelo menos tentamos ser assim.
     
    Citei há pouco os clássicos de Dylan com um tom que pode parecer de um certo desdém – algo que apenas os fãs mais “superficiais” lembram numa hora de homenagem como essa de agora. Mas se passei essa impressão, quero me corrigir rapidamente. Ali estão algumas das letras – e, consequentemente, das poesias – mais poderosas que a música pop já ofereceu ao mundo. Versos que inspiraram gerações – e não só nos Estados Unidos.
     
    Ouvindo o que as rádios desesperadas por audiência tocam hoje em dia é difícil acreditar que um dia o brasileiro não foi obrigado a engolir versos que não cabem na música, rimas que só acontecem porque o cantor troca a sílaba tônica de uma palavra, e concordâncias verbais que nunca se ensinaram na escola. Sim, houve um tempo em que o melhor do nosso pop podia se orgulhar de vir de uma linhagem direta de inspiração “dylanesca” – aliás, quantos compositores podem se orgulhar de terem virado um objetivo? (Mas eu divago...).
     
    Nesse tempo – que não faz tanto tempo assim – ouvíamos Gilberto Gil traduzindo Bob Marley numa sutil referência a Dylan. Música em questão: “Não chores mais” – ou vai dizer que “ob-observando estrelas” não é uma declinação inspirada de “knock-knock-knocking on heaven’s door”? Você pode até dizer que eu estou por fora ou então que estou inventando – para citar outra letra de um ícone musical brasileiro que talvez não existisse: “Como nossos pais”, de Belchior, imortalizado por Elis Regina. Mas pense em Caetano. Pense em Rita Lee. Pense em Renato Russo – de quem sentimos saudades já há 20 anos...
     
    Foi lendo o já citado artigo de Jon Pareles que me dei conta de que há uma estranha conexão entre “Isis” – uma música de Dylan de 1976, que tem um diálogo no meio de seus versos – e o estilo solto de “Eduardo e Mônica” de Renato com o Legião Urbana. Mas ao mesmo tempo em que junto esses pontos, estou ciente que estamos num tempo onde a palavra vale muito pouco na música – quando a maioria dos refrões que nos cercam só não incomodam mais porque são virtualmente idênticos uns aos outros, feitos para os meninos poderem ser perdoados das suas traições pelas meninas... meninas essas que estão bem menos interessadas nessa pobre poesia do que na possibilidade de uma selfie de uma distância razoável do palco para provar pro seu grupo de whatsapp que aquele que está ali com um microfone na mão estava cantando só para ela...
     
    Dylan também passavam essa sensação – mas num contexto ligeiramente diferente. Quando a cantora maior do gospel americano pergunta para a câmera de Scorcese, em “No direction home”, como um “branco” pode escrever uma letra que diz “quantas estradas um homem tem que percorrer até que ele possa ser chamado de homem?” – isso significa uma conexão absoluta entre a mensagem e quem a escuta. Nos turbulentos anos 60, quando os Estados Unidos passavam por revoluções sociais que mudaram todo o mundo, ele estava falando diretamente com um monte de gente na plateia. Mas digamos que com uma mensagem ligeiramente mais interessante do que as peripécias do amor que ecoam infinitamente nas nossas ondas sonoras de hoje...
     
    Com poucas chances de um dia serem lembradas por uma consagração tão importante quanto o Nobel, é verdade. E por isso mesmo o prêmio anunciado hoje nos dá esperança. De que a arte sempre vai ser reconhecida. De que a palavra sempre vai significar uma coisa maior. E de que por isso mesmo, se você as junta numa pergunta realmente importante elas podem um dia voltar para você. E é nesse espírito que, se eu estivesse hoje no camarim com Bob Dylan, lá em Las Vegas, mesmo que ele se mostrasse relutante em comentar a honra de ter levado no Nobel de literatura de 2016, eu não resistiria e perguntaria na cara dura: “So Bob, how does it feel?”...

  • Pare o que estiver fazendo e vá ler o novo livro de Marcelo Rubens Paiva

    Passamos por um longo hiato - e, de repente, tanta coisa boa para escrever. Ontem fui à pré-estreia do novo filme de Woody Allen, "Homem irracional" (uma espécie de biografia alternativa de todos nós), que é tão genial que eu queria ter escrito sobre ele ontem mesmo, tarde na noite quando cheguei em casa. Na música, uma estranha coincidência fez com que eu ouvisse, na mesma semana, os novos álbuns de Emicida e de Dr. Dre - e meus dedos já começaram a tamborilar... Na TV, entusiasmei-me com "O Hipnotizador" e estou começando a gostar de "Show me a hero". Mas mesmo diante de assuntos tão suculentos, acho que temos que estabelecer prioridades - e a minha agora é te convencer a ler "Ainda estou aqui", o livro mais recente de Marcelo Rubens Paiva.O pai de Marcelo, Rubens Paiva foi morto durante a ditadura

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    Não será uma tarefa árdua, uma vez que o trabalho já é elogiado por todo mundo que cruza com ele. Raras vezes vi um "boca a boca" tão forte - e, como sabemos bem, essa é a melhor "rede social" quando queremos divulgar algum produto cultural. Tal fenômeno aliás nem deveria ser recebido com tanto espanto. Ao longo de mais de três décadas, Marcelo colecionou um público cativo, fruto de um romance de estreia estupendo que praticamente marcou uma geração - se não duas (ou três).
     
    Falo, claro, de "Feliz ano velho", livro de 1982 - uma brutal biografia relâmpago, de uma juventude interrompida por um acidente que, em 1979, que deixaria Marcelo tetraplégico. Curiosamente, porém, essa tragédia pessoal, que sempre emociona, não é o único elemento de sucesso do livro. Com uma franqueza às vezes chocante, ele nos leva à cena universitária daquele período, ao seu envolvimento com movimentos políticos estudantis - um talvez inevitável desdobramento da história de seu pai, preso e assassinado pela ditadura militar em 1971 (outro enredo paralelo bem explorado nas suas páginas) -, e sobretudo é um guia emocional para uma geração que estava saindo de uma repressão política e substituindo modelos de família que não cabiam mais no Brasil.
     
    Tudo isso ressoou forte com a moçada dos anos 80. Fenômeno de vendas, "Feliz ano velho" catapultou Paiva para um patamar de autor admirado. O livro foi adaptado espertamente para o cinema, sob a direção de Roberto Gervitz, e ainda ganhou uma aclamada montagem teatral "histórica", com Lilia Cabral, Paulo Betti e Marcos Frota no elenco. Eu mesmo fui conferir mais de uma vez...
     
    A onda "Feliz ano velho" foi tão forte que criou uma enorme expectativa: a de que Marcelo continuasse sua saga no livro seguinte. Saudavelmente teimoso, ele veio, muitos anos depois, com uma ficção chamada "Blecaute". Os fãs estranharam - muitos elogiaram. Mas Marcelo foi em frente, na sua missão velada de provocar com as letras - algo raro naquela década, ainda mais raro hoje em dia. Seguiu na sua missão de escrever segundo apenas seu próprio instinto. Até que...
     
    Eu ia escrever "até que finalmente ele achou que seria hora de publicar uma continuação do seu livro de estreia" - mas se fizesse isso, estaria cometendo uma injustiça. "Ainda estou aqui", o volume que acaba de sair pela Alfaguara, é menos um "Feliz ano velho - parte 2" do que um revigorante olhar sobre a mesma geração com quem ele havia estabelecido diálogo mais de trinta anos atrás, com uma nova variável: sua mãe, de quem ele empresta a frase para o título da obra, está com Alzheimer.
     
    Assim como seu acidente de 1979, a doença da mãe é um evento trágico de onde Marcelo parte para fazer inúmeras observações sobre sua vida - e sobre nossa vida. Além disso, munido de bem mais informações sobre a atrocidade que a repressão do nossos governantes de então impôs sobre seu pai - e sobre toda sua família - somos expostos a bastidores ainda mais constrangedores e sórdidos do nosso cenário político dos anos 70.
     
    O toque de mestre de Marcelo, no entanto, é transformar esses momentos grotescos em uma narrativa não apenas lúcida como acessível. Com uma fluência invejável, o escritor divide seus problemas pessoas com o leitor, jamais para se colocar como vítima, mas para convidar para uma reflexão sobre a vida, o amor, a família - e essa praga que se abateu tanto tempo sobre nosso país: a ditadura militar. Seu tom nunca é de rancor. Talvez de leve indignação. Mas a ideia não é chocar - é dialogar. Uma sábia proposta de quem aprendeu com a paciência dos anos que olhar para a vida com revolta só gera mais ignorância - e que o melhor caminho para tudo é sempre o da investigação (seja pessoal ou universal), o da pergunta e o da resposta.
     
    Escrevendo assim, talvez eu passe a impressão de que "Ainda estou aqui" não é um livro emocionante. Se fiz você achar isso, aqui vai um trecho para derrubar essa ideia, um parágrafo já quase no final, quando o Alzheimer da sua mãe já está em estágio bem avançado:

    "No entanto, enquanto seu raciocínio está confuso, ela pega minha mão esquerda, mais fechada que a direita, e abre com carinho, dedo a dedo, para alongá-la. Como faz há trinta e cinco anos, desde os primeiros dias em que viu numa UTI paralisado. Seguindo uma recomendação da fisioterapeuta: alongar sempre que der a mão do filho tetraplégico, para não atrofiá-la. Um instinto materno poderoso atravessa o choque e o caos em que vive, e ela faz aquilo que rotineiramente foi parte da vida, cuida do filho."
     
    O tempo em "Ainda estou aqui" é elástico. Marcelo abre com o relato (quase cômico) do dia em que legalmente passou a ser responsável por sua mãe - já que a doença estava interferindo demais no seu poder de decisão. Vem para o presente em emocionantes registros de sua relativamente recente paternidade. Volta ao Rio de Janeiro da sua infância privilegiada. Passeia pelas incertezas e descobertas dessa fase da vida. Apresenta o pai primeiro como tal - o homem que é tudo na vida de uma criança - e depois como figura política. Avança para seu acidente quase casualmente (raras são as vezes onde sua paralisia é mencionada nas mais de 250 páginas), mas tudo é sempre para fazer um pano de fundo para a trajetória fulgurante de sua mãe.
     
    Eunice Paiva não é um exemplo de relação afetiva "mãe e filho". Num divertido capítulo, "Mãe-protocolo", Marcelo define com poesia dura o relacionamento entre eles:
     
    "Minha mãe era assim: não me deu uma dura por engravidar a namorada, me deu uma força para resolver o problema. Minha mãe não era minha amiga. Não saíamos juntos. Não bebíamos ou fumávamos juntos. Eu não falava pra ela do que eu vi e vivi. Era minha mãe."
     
    No entanto, é essa mãe que sai adorada de todas as histórias que Marcelo conta no livro. E como não admirá-la? Criou o autor e suas quatro irmãs enfrentando dificuldades - principalmente emocionais - inimagináveis para o brasileiro comum de hoje (suas dificuldades legais, bem descritas por Marcelo, por não ter um marido "oficialmente morto" são surreais!). Reinventou-se como profissional, como mulher - até como mãe. E, acima de tudo, serviu de inspiração para um livro maravilhoso.
     
    Aos poucos, lendo "Ainda estou aqui", fui percebendo como estamos longe do Brasil que Marcelo descreve no livro. Não apenas na política - vivemos um momento de crise ideológica, mas nada que se compare às trevas daquela época. O Brasil do qual Marcelo nos faz sentir saudades é aquele que tem, em seus jovens, alguma coisa para dizer.
     
    Quatro anos nos separam - Marcelo é de 1959, eu sou de 1963 - mas acho que posso falar em nome da "nossa" geração. Vivemos, nesses nossos cinquenta e poucos anos, uma abundância de referências culturais, de vozes criativas que mexiam com nossa cabeça e nossos corações. E, mais importante que isso, essas eram as mensagens que dominavam nossa vida, nossa comunicação - rádios, programas de TV, cinema, jornais e revistas.
     
    Não havia internet na nossa juventude, claro, mas não faltavam ideias e provocações. E como gostávamos de ser provocados e de provocar! Aliás, ainda gostamos - é por isso que fico tão maluco quando vejo-me diante de tantas coisas legais para escrever, como citei logo no primeiro parágrafo do texto de hoje. E é só por isso que nos decepcionamos diante de uma geração que insiste em gostar da mesma coisa, de músicas que não dizem nada, de modelos culturais que só reforçam os limites de sua fragilidade.
     
    "Ainda estou aqui" é oposto de tudo isso. É pura inteligência, sensibilidade e provocação. É também um livro - um artefato meio fora de moda, e imensamente menos popular do que twitter, que com seus 140 caracteres (se é que tem gente que usa "tudo isso" para expressar sua infelicidade e projetar sua bile hoje em dia). Mas é exatamente um livro como esse que faz a diferença.
     
    É um livro como esse que alguém lê aqui, recomenda para uma amiga ali, que passa para um colega lá, que discute com sua classe mais adiante, que leva para suas casas novas ideias. E de repente, quando a gente nem percebe, estamos todos pensando de um jeito diferente.
     
    Se hoje tudo parece muito medíocre, basta lembrar que o mundo muda sempre. E muda por causa de coisas como as que Marcelo Rubens Paiva escreve.Ainda estou aqui, de Marcelo Rubens Paiva

     

    (FOTO: Marcelo Rubens Paiva CRÉDITO: FLÁVIO MORAES/G1)

  • Como se comportar diante de um ídolo

    Como se comportar diante de um ídolo

    Tenho que começar dizendo que o título acima é uma propaganda enganosa. Leitores e leitoras regulares deste espaço conhecem bem a história de decepção e constrangimento que foi meu encontro com Thom Yorke, do Radiohead, numa loja em Paris. Mais recentemente, contei mais um punhado de contatos fristrados - um deles com ninguém menos que minha musa Patti Smith! E em mais de uma conversa que tive com estudantes de jornalismo de todo Brasil, contei a história de que perdi a atenção de Michael Stipe (R.E.M.) quando, durante uma entrevista com ele, comecei a surtar com o fato de que estava diante de alguém que admirava tanto - ele percebeu que eu não prestava atenção ao que ouvia e encerrou a conversa na mesma hora...

    A verdade é que não sou um exemplo de "frieza" diante de um ídolo - e tive mais uma prova disso agora, na última edição da Flip, a Feira Literária de Internacional de Paraty, que terminou domingo passado. Diante de mim, nada de astros do rock (e muito menos do cinema), mas boa parte do melhor da produção literária - nacional e do mundo. Que foi possível trazer, claro - crise etc.

    Como sempre gosto de um suspense, vamos "jogar" um pouco. Apesar de ser fã incondicional de Arnaldo Antunes e Karina Buhr (agora autora, do "Desperdiçando rima", Rocco) - que fizeram uma mesa animada no sábado à noite - não é desses ídolos que estou falando. Também não fui para ver David Hare - que muitos já falaram que foi talvez a melhor participação de todas as Flips! Eu até adoraria ouvi-lo, pois tive a chance de ver uma remontagem de sua peça "Skylight" recentemente em Nova York (sim, essa com Carey Mulligan - sensacional!), mas cheguei em Paraty bem na hora em que sua mesa estava acabando. Gostaria muitíssimo de ver - e teria feito o esforço para tal - o italiano Roberto Saviano, um dos mais admirados jornalistas e escritores da atualidade, que deveria ter vindo lançar seu mais novo livro "Zero Zero Zero" (Companhia das Letras), sobre o mercado da cocaína. Mas ele teve problemas de segurança e não pode comparecer - aliás, difícil mesmo imaginar um esquema que protegesse ele ali naquele frágil sítio histórico. Ainda: eu poderia ter ido só para conferir o cubano Leonardo Padura, autor do elogiadíssimo "O homem que amava os cachorros" (Companhia das Letras) - um trabalho "sui generis" desse escritor policial.

    Zeca Camargo na Flip

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    Mas não - eu estava lá para ver um cara chamado Riad Sattouf. Ele é um cartunista francês, já queridíssimo da França, que agora começa a ser conhecido internacionalmente por conta do sucesso de seu sensacional livro "O árabe do futuro" - aqui, recém-lançado pela Intrínseca. Talvez esse rosto aí, do cara ao meu lado na foto, não queira dizer nada para você. Até ver uma entrevista sua na "Inrockuptibles" de algumas semanas atrás, ela também não me dizia nada. Afinal, sempre que pensava em Riad - que é também o principal personagem dessa sua história em quadrinhos - a imagem que eu tinha era de um garoto (criança mesmo) com lindos cabelos loiros cacheados. O que não podia ser mais diferente do que o próprio Riad...

    Enfim, era na frente desse cara que eu me encontrei na Flip - e literalmente não sabia o que fazer. Eu fui completamente "fisgado" pelo "Árabe do futuro" - a ponto de já ter comprado (e lido) o segundo volume, em francês mesmo, que acaba de sair na França. E quando eu gosto muito de uma coisa - pode ser uma música, um livro, um filme, eu fico apavorado de encontrar quem criou aquilo. Vai entender... Mas antes de contar este momento, deixe-me tentar te convencer do meu entusiasmo por Riad.

    Não sou um grande conhecedor de quadrinhos. Nos (quase) oito anos deste blog, raras foram as vezes que eles me pautaram - mais raras ainda se você descontar as sempre bizarras adaptações para o cinema. Quadrinhos "puros" são algo que passa pelo meu radar ou quando eles nos ajudam a visitar outras culturas - como "Persépolis", da iraniana Marjane Satrapi, ou "O fotógrafo", do francês Emmanuel Guibert. Ou quando são tão preciosos que acabam canonizados como arte - pense em Chris Ware. "O árabe do futuro" cai certamente na primeira categoria - aliás, com um equilíbrio perfeito entre o humor de Satrapi e a observação de Guibert.

    Autobiográfico, o livro conta a infância de Guibert - que é filho de uma francesa e um sírio que ganhou uma bolsa nos anos 70 para estudar na conceituada universidade Sorbonne, em Paris. Um casal improvável, talvez não nos dias de hoje, mas certamente 40 anos atrás. E com uma trajetória ainda mais inesperada: na tenra infância de Riad, o pai resolve mudar a família para... A Líbia de Gaddafi!

    Na época, claro, ainda não era o país sanguinolento que o mundo parece que descobriu só recentemente, quando uma verdadeira caçada humana acabou com a morte do ditador (2011). Mas já era um país bem estranho onde as pessoas, por exemplo, não podiam deixar a casa sem ninguém, senão outra família tomava posse dela - estava escrito no "livrinho verde" de Gaddafi! E os noticiários das rádios tinham textos aprovados pelo governo, só que com tantas mentiras que - num dos episódios mais hilários do "Árabe do futuro" -, quando a mãe de Riad consegue um emprego de locutora, ela tem um ataque de riso com as bobagens que tem que ler, e é presa "ao vivo" por "subversão"...

    E isso é só uma parte desse primeiro volume. Riad, que segue sendo desenhado com seus incríveis cachinhos dourados, muda-se então para a Síria (que também não era o país violento que vemos hoje no noticiário, mas era bastante conservador nas suas tradições) - e lá ele é atacado constantemente nas ruas, e por seus próprios primos, todos muçulmanos, porque ele "parecia judeu". Essa "confusão" que orbita a cabeça do pequeno Riad é o conflito principal que move a narrativa. (No segundo volume, sobre o qual espero escrever aqui quando for traduzido, ele sofre ainda mais com isso, uma vez que vai à escola na Síria).

    "Riad criança" venera o seu pai e não entende muitas bem suas decisões. Mas o "Riad adulto" conduz a história não com sarcasmo, mas com inocente distância, ajudando o leitor a enxergar tudo com a mesma curiosidade que o "Riad criança" - mesmo em momentos mais absurdos onde ele ilustra, por exemplo, a discriminação contra as mulheres. O resultado é uma obra leve no traço e profunda no questionamento das coisas. Que, como você pode imaginar, faz paralelos imediatos com muita coisa que está acontecendo hoje à nossa volta...

    Li esse primeiro "Árabe do futuro" numa tarde - e ainda me sobrou tempo para revisitar algumas páginas favoritas. E fiquei babando de admiração por Riad. Por isso que, quando pensei em pedir seu autografo, imediatamente me questionei se teria coragem de chegar lá e não me desfazer como um tolo fã diante do ídolo. Cheguei a desistir. Mas aí, ele, na sua apresentação na Flip, mostrou um outro personagem que tinha criado, o engraçadíssimo "Pascal Brutal" - além do "Árabe do futuro", ele já fez vários quadrinhos, colaborou anos com o "Charie Hebdo", e atualmente tem uma página semanal na revista francesa "L'Obs". Aí estava um bom motivo, ou melhor, um motivo "original" para pedir um autógrafo, já que o meu medo é sempre passar por "mais um na fila", só incomodando ele com uma assinatura... Além disso, eu tinha trazido de Paris a "Inrock" com seu desenho na capa. Pronto! Já tinha duas desculpas!

    Capa assinada para Zeca Camargo

    Então eu fui. Escorei numa amiga, que tem o francês bem melhor que o meu, e puxei conversa. Para minha surpresa, o contato foi mais que feliz. Bem-humorado e curioso, ele nos recebeu como amigos, e "quebrou" qualquer timidez que eu pudesse ter. Rolou até a foto que você viu acima! E mais a lembrança na "Inrock" que está aqui também. No total, não ficamos mais do que dez minutos juntos, mas o relógio para um fã nunca é justo com seus ponteiros...

    Saí feliz com meus autógrafos, minhas fotos, meus livros - e sem nada a acrescentar na arte de "como se comportar na frente de um ídolo". E é por isso que eu acho que você deve processar o cara que escreveu isso aqui!

Autores

  • Zeca Camargo

    Mineiro de Uberaba, o apresentador do ‘Fantástico’ começou a carreira no jornal ‘Folha de S. Paulo’, participou da primeira turma da MTV no Brasil e foi editor da revista “Capricho”.

Sobre a página

Em seu blog, Zeca Camargo transita pelo universo da cultura e discute músicas, filmes e exposições.