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  • A noite em que o Oscar parecia o Grammy

    Leonardo DiCaprio foi o melhor ator e o diretor Alejandro Gonzáles Iñárritu o melhor diretor, ambos por 'O regresso'
     

     

    O título acima, antes que você me interprete mal, é um elogio. Afinal, injetando muita música na cerimônia de premiação que é uma das mais importantes do show business - e também, quase sempre uma das mais chatas -, os organizadores da festa do Oscar conseguiram oferecer uma noite realmente divertida. E digo isso sem um pingo de ironia.

    Claro que um dos fatores que muito ajudou nisso foi o excelente humor de Chris Rock - que não perdeu sequer uma oportunidade de ironizar a própria Academia de Artes e Ciências de Hollywood pela sua falta de diversidade na premiação (você que gosta de cinema certamente acompanhou a polêmica sobre a ausência de indicados negros nas principais categorias). Mas para uma noite com (relativamente) poucas estrelas do time A do cinema americano - alguns apresentadores e apresentadoras eu tive de dar um Google pra ter certeza de quem eram - astros da música pop preencheram essa vaga com louvor.

    Lady Gaga corre pelo palco após apresentação no Oscar 2016De Pharrell Williams a Lady Gaga, de Dave Grohl a Jared Ledo (tudo bem, ele circula nos dois universos, mas mesmo assim…), a música estava muito bem representada. E eu diria que até salvou a noite. Mas enfim, vamos a um resumo “em tempo real” do que eu registrei nesta madrugada durante o Oscar - que assisti, é bom lembrar, direto da fonte, no original, infelizmente (ou felizmente?) passando ao largo das várias possibilidades de comentários em português. Nada contra, mas eu desafio qualquer tradutor - inclusive este que vos escreve - a preservar, no nosso português, a acidez, a inteligência, a sagacidade, a malícia, e até o contexto dos discursos nunca menos que brilhantes de Chris Rock. Que começou, diga-se, mandando muito bem…

    (Para mais comentários, ainda “mais em tempo real”, convido você a visitar minha página oficial no Facebook: https://www.facebook.com/ozecacamargo - onde gravei alguns vídeos rápidos durante a cerimônia de ontem).

    22h44
    Depois da sempre boa montagem com cenas dos filmes do ano anterior - e que, para a minha surpresa usou pelo menos uma imagem de “Feras de lugar nenhum”, o primeiro longa-metragem produzido pela Netflix, que a Academia, teoricamente estaria esnobando -, vemos então Chris Rock, vestido num smoking imaculadamente branco, que talvez fosse a primeira ironia da noite. Se esse foi mesmo o caso, era só o começo… Já nos primeiros segundos ele começa a disparar piadas que, à primeira vista pareciam elas mesmas racistas para falar do “problema” de o Oscar ser “tão branco” - como protestava o famoso #OscarsSoWhite. Elas eram tão fortes - e estranhamente tão voltadas para os próprios talentos negros (ele já começou dizendo que só recebeu conselhos para desistir de ser o mestre de cerimônias da festa de colegas que estavam sem trabalho…) -, que o tiro parecia ter saído pela culatra. Mas claro que Rock é bem mais inteligente que isso: ele estava brilhantemente revertendo - e da maneira mais ácida possível - todo o preconceito da Academia. E ali mesmo tive a certeza de que a noite, no que dependesse dele, seria histórica…

    22h46
    Primeira mudança no formato clássico da festa: o prêmio que abriu a noite não foi o de melhor atriz coadjuvante, mas o de melhor roteiro original. A “desculpa” - bastante esperta - foi a de que eles queriam começar pelo início de tudo, que é justamente o texto que dá origem a toda uma produção. Ok, compre a ideia. Ainda mais porque quem levou foi “Spotlight” - e a gente sempre comemora um prêmio para uma história de jornalista eheh…

    22h49
    Ryan Gosling e Russell Crowe - que mostraram, quem diria, um ótimo “timing” para o humor (de fato, mal pareciam que estavam lendo seus textos no teleprompter) - anunciam o Oscar de melhor roteiro adaptado. E eu acerto meu primeiro palpite: foi para “A grande aposta” - que “mastiga” numa comédia inteligente uma das histórias contemporâneas mais complicadas: a crise financeira americana dos últimos anos. Gosling, lá atrás, fazia cara de orgulhoso (já que é um dos protagonistas do filme). Em tempo: aqui ficou clara mais uma novidade da noite: os agradecimentos dos vencedores, aquela lista infindável de nomes que ninguém conhece, foram parar como caracteres embaixo da tela, como aquelas informações dos canais de notícia. Boa ideia - que ainda por cima deixa mais tempo para os contemplados falarem sobre outras coisas mais interessantes. Vamos torcer para que eles usem bem isso…

    23h00
    Na volta do primeiro intervalo comercial, outro “soco de esquerda” na falta de diversidade da Academia: versões dos filmes candidatos ao grande prêmio da noite com atores negros. Hilários - especialmente o “Perdido em marte” alternativo, onde a Nasa decide não resgatar do planeta vermelho o astronauta negro (interpretado por Tracy Morgan)… E Whoopi Goldberg, como uma faxineira na sala de controle, só acrescenta: “Falei que eles não iam te trazer de volta…”. Muito, mas muito bom!

    Sam Smith canta na cerimônia do Oscar 201623h02
    Sarah Silverman entra no palco e todo mundo prende a respiração - especialmente os organizadores do Oscar. Pouco conhecida fora dos EUA, ela é uma das comediantes mais desbocadas do “showbizz” americano - e depois de insinuar várias coisas sobre a performance sexual de James Bond (ela estava lá para anunciar a música de “Spectre”, que estava no páreo), ela manda: “Que bom estar aqui na TV aberta ao vivo e pensar que eu posso falar qualquer coisa”. Ri alto… Foi tenso… Mas a única escorregada mesmo foi a performance de Sam Smith. Veja bem, sou fã dele - mas vamos combinar que essa está longe de ser a melhor música de seu repertório… Teve gente que disse até que é o pior tema de Bond de todos os tempos - algo que a primeira performance musical da noite quase me fez acreditar…

    Alicia Vikander recebe o Oscar de melhor atriz coadjuvante por 'A garota dinamarquesa'23h08
    Agora sim, vamos ao prêmio de melhor atriz coadjuvante - e ganhou a grande aposta. Não, quero dizer, não o filme com esse título, mas o nome em que todo mundo estava apostando: Alicia Vikander, por “A garota dinamarquesa” (que, para quem ainda não viu, não traz exatamente ela no papel do título…). Ela é muito boa - e muito linda. E acho até que deveria ter sido indicada também como melhor atriz por “Ex-Machina” - um filme que inexplicavelmente nem fez marola aqui no Brasil…

    23h18
    Só pra celebrar aqui rapidamente, em menos de dois segundos, Chris Rock consegue fazer outra piada boa com a falta de diversidade na Academia. “We’re black”, anuncia ele no retorno do intervalo comercial - um tolo e esperto trocadilho, substituindo “Estamos de volta” (“We’re back”), por “Somos negros”. Mais um ponto pra ele…

    23h19
    Cate Blanchett, tipo deslumbrante (quando ela não está?), chama - num cenário inspirado, que a acompanha nos movimentos pelo palco, o Oscar para melhor figurino. Que, claro, vai pra “Mad Max: estrada da fúria”. A surpresa não foi bem a escolha, mas o choque de ver a vencedora, Jenny Beavan, subir ao palco vestindo! Deve ter sido a primeira mulher de jaqueta de couro na história da premiação! Que figura - um contraste quase que chocante com as borboletas azuis de Blanchett! Tinha que ganhar mesmo…

    23h23
    Na sequência - o palco mudando de elementos, conforme as categorias se sucediam -, mais duas estatuetas para “Mad Max”. Uma de direção de arte, anunciada por Steve Carrell e Tina Fey (numa ótima performance de “bêbada”, trocando as sílabas de “nominees” em mais um daqueles momentos intraduzíveis!). E outra pela melhor maquiagem, entregue por Margot Robbin e Jared Ledo. Isso aí… Viva “Mad Max”! (Mas não posso deixar de pensar que estão meio que esnobando “Guerra nas estrelas”… coisa de fã…).

    23h28
    Até as piadas sem graça da noite são pelo menos bonitinhas… Logo depois de Benicio del Toro e Jennifer Gardner apresentarem um clipe de mais um indicado ao grande prêmio da noite, “O regresso”, a câmera corta para um urso (obviamente “fake”) sentado num dos camarotes do teatro… Fofo…

    23h35
    Outra piada pesada - e inteligente de Chris Rock: citando a presença de algumas pessoas da vida real que inspiraram filmes indicados este ano - o jornalista de “Spolight”, a empresária de “Joy” - ele mostra que a Academia não se esqueceu de um personagem negro de “Straight outta Compton”, que aparece então amarrado e amordaçado acompanhado de dois policiais, numa óbvia referência ao tratamento dos negros pela polícia americana… Sou fã desse Chris Rock…


    Emmanuel Lubezki ganha Oscar de melhor fotografia por 'O regresso', seu terceiro prêmio seguido23h36
    Sai o primeiro Oscar para “O regresso”. Michael B. Jordan - com uma cara ligeiramente emburrada (seria protesto?) e Rachel McAdams (ao contrário de Jordan, radiante, de verde), anunciam o prêmio de melhor fotografia para Emmanuel Lubezki, a terceira estatueta seguida do cara… Mas merecida! Não vou reclamar - a fotografia é mesmo uma das qualidades de “Regresso”. Já o roteiro… - mas eu divago…

    23h39
    E por falar em diversidade, entra no palco uma deslumbrante atriz indiana: Priynaka Chopra (que alguns conhecem no Brasil pela série “Quantico”, exibida aqui pelo AXN - sem circunflexo…). Ela vem com Liev Schreiber para dar - wow - mais um Oscar para “Mad Max”: o de melhor edição! Fora a surpresa, gostei de como eles mostraram os indicados, imitando uma tela de computador, que é onde virtualmente todas as edições acontecem hoje. Ah… e a moviola? Aposto que tem gente lendo aqui quem nem sabe o que é isso… Google já - tô meio sem tempo de explicar eheh!

    23h42
    Primeira piada fraca sobre a falta de diversidade na Academia: um vídeo com Angela Basset exaltando… Jack Black (um ator caucasiano…). Não sei se foi o Chris Rock que escreveu essa, mas… não rolou…

    23h48
    E está aberta a temporada de premiação de “Mad Max” - agora é oficial: um Oscar para a edição de som, e mais outro logo em seguida para mixagem de som. Total até agora… Seis! Será que a Academia vai dar um susto em todo mundo e seguir premiando o filme até as categorias principais em que está indicado - melhor diretor e filme? Secretamente, eu bem que gostaria que isso acontecesse…

    23h54
    Andy Serkis - que é aquele cara genial atrás de “personagens virtuais” (pense nos recentes “Planeta dos macacos” e em “Senhor dos anéis”), chama o Oscar para efeitos especiais. Seria este o sétimo de “Mad Max”? Deu zebra - e uma ótima zebra: “Ex-Machina” - eba!! Um excelente filme que foi esnobado pelas distribuidoras de cinema no Brasil - você já pode ver essa pequena obra-prima nos canais a cabo ou por “streaming”… Eu mesmo vi num avião! Não deixe passar em branco - é incrível. E não estou nem falando dos premiados efeitos visuais…

     BB-8, R2-D2 e C-3PO, personagens de 'Star Wars', no palco do Oscar 201600h00
    Quase pulei da cadeira de alegria: C3PO, R2D2 e o adorável BB-8!! Era só uma ponta (não chamaram prêmio nenhum) - e C3PO e R2D2 já passaram pela festa no passado. Mas não importa, por pouco mais de um minuto, eu era uma criança assistindo à cerimônia…

    00h05
    A madrugada chegando no Brasil, e Chris Rock simplesmente não deixa você dormir: em mais um “truque que tirou da cartola”, ele chama colegas das suas filhas para vender biscoitos (de verdade) para as celebridades na plateia. Primeiro você acha que é uma piada, mas aí os famosos começaram a levantar notas de dólares, querendo comprar os biscoitos… Quem diria que essa gente leva dinheiro vivo pra festa eheh… Enquanto as meninas vendem, a gente vê os prêmios de filme de animação. O curta - anunciado pelos Minions (que eu nunca acho tão engraçados assim…), foi para “Bear story” - que é chileno (olha a diversidade aê gente!). E o longa, com Woddy e Buzz nos fazendo lembrar que o primeiro “Toy story” já tem.. hum… VINTE anos! - enfim, são eles que chamam o (óbvio) vencedor: o inigualável “Divertida Mente”. Eu até tentei torcer para o brasileiro que competia nessa categoria, mas é covardia… Além do que, foi bom ouvir de seus criadores o velho lembrete (que serve para roteiristas do mundo inteiro, e especialmente aos brasileiros…) de que tudo começa com uma boa história e um bom texto…

    00h13
    Kevin Hart, um comediante negro, ultra popular agora nos EUA, finalmente encara a sério a questão da falta da diversidade na premiação deste ano, e pede aplausos para os talentosos artistas negros que deveriam ter sido nomeados e não foram… Depois de dar o recado, Hart não aguenta e faz… piada: num ano como esse, ela chegou a sonhar que a Academia o colocaria na primeira fila, pra compensar a gafe de deixar os artistas negros em segundo plano… Só que não! Em seguida, ele chamou o genial The Weeknd, para cantar a música dele para “50 tons de cinza” - provavelmente a única coisa memorável do filme… O cenário então - lindíssimo em todos os aspectos até lá - escorrega para a cafonice de “50 tons”… Uma pena…

    00h22
    Adoro mulheres de óculos numa noite de Oscar - e Kate Winslet (num poderoso vertido preto, e ao lado de Reese Witherspoon) saciou esse meu fetiche… (Elas estavam lá para chamar mais dois candidatos ao grande prêmio: “Ponte de espiões” e “Spotlight”).

    00h24
    Duvido que vai ter algum momento mais forte, interessante e inteligente do que esse. Acho que já usei esses adjetivos hoje para descrever o humor de Chris Rock, mas… “whatever”! Ele foi para a porta de um cinema e entrevistou pessoas negras sobre os filmes que elas mais gostam de ver. Era constrangedor perceber que as produções mais celebradas da noite mal registravam com esse público. Mas é justamente nesse constrangimento que estava a genialidade da reportagem. Como que dizendo: “Hollywood, você não liga para os negros? Bem, eles também não ligam para você”! Genial, genial, genial! Melhor coisa da noite - que ainda está na metade (imagino…).

    Mark Rylance recebe Oscar de melhor ator coadjuvante por 'Ponte dos espiões'00h28
    Patricia Arquette - usando o segundo par de óculos da noite (e também de preto) - chama o prêmio para melhor ator coadjuvante. E quem apostou no azarão se deu bem: quem levou foi Mark Rylance! E todo mundo achando que iria pra Sylvester Stallone… Secretamente (de novo), murmurei um “bem feito”… Apesar de o filme que lhe deu o prêmio ser fraco (mesmo dirigido por Spielberg), ele está brilhante no papel do espião. E me fez ter vontade de rever ele de novo na série “Wolf Hall”, da BBC. Mas eu divago… e pela segunda vez!

    00h38
    Não sou fã de Louis C.K. - que nem é um cara muito de cinema. Ele é mais conhecido pela sua série de comédia (ou quase isso), “Louie”. Digamos que não nos conectamos ainda eheh! Mas sua piada sobre a categoria que ia apresentar -“melhor documentário curta” - foi esperta: esses vencedores, ao contrário dos outros, que ganham a estatueta e veem seus cofres engordarem, voltam pra casa e… vão fazer outros documentários em curta-metragem, sem nenhum glamour. Muito bom! Ironicamente, a paquistanesa Sharmeen Obaid-Chinoy, subiu ao palco pra ganhar na categoria pela segunda vez - e foi aplaudida de pé, quando disse que o governo paquistanês viu o filme e vai mudar algumas leis por causa dele. Bravo - ainda mais porque, ainda que indiretamente, este é mais um prêmio para o jornalismo!

    00h41
    E mais diversidade, digo, mais um indiano apresentando o Oscar: Dev Patel, (“Quem quer ser um milionário?”) que ao lado de Daisy Ridley (do último “Guerra nas estrelas” - difícil até de reconhecer…), dão o prêmio de melhor documentário (longa) para… “Amy”!!!!!!!!!!!!!!!!!! E acho que usei poucos pontos de exclamação, tá? O diretor, Asif Kapadia, dividiu tão emocionadamente a glória com os fãs da cantora (sim, eu, você…), que quase esqueci que estava torcendo também para o documentário da Netflix sobre Nina Simone (“What happened, Miss Simone?”), já comentado neste espaço… Eu estava realmente dividido. Mas saí feliz de qualquer jeito.

    00h52
    Depois de uma certa enrolação com prêmios “honorários”, concedidos em uma cerimônia à parte, a presidente da Academia entra e faz um discurso comportado, uma espécie de “mea culpa” pela falta de diversidade no prêmio deste ano. Citou até Martin Luther King Jr. - e assinou: “precisamos agir”… Vamos ver…

    Dave Grohl canta 'Blackbird', dos Beatles, no Oscar, em homenagem a artistas falecidos00h56
    Se algum dia alguém tivesse me dito que veria Dave Grohl tocando “Blackbird”, dos Beatles, num palco de Oscar, eu teria rido até cair no chão. Mas ali estava ele, fazendo exatamente isso, para acompanhar o vídeo em homenagem aos que se foram em 2015. Uma lista que, claro, incluía David Bowie. Por alguns segundos me lembrei de Projota cantado “ela é um disco do Nirvana de 20 anos atrás”… Um dos meus amigos do grupo que está vendo tudo comigo disse que a Academia pediu para a plateia não bater mais palmas quando alguém mais querido aparecia, para não parecer que uns eram mais aclamados que outros. Achei justo. O momento foi lindo - e para este fã de Nirvana (e de Foo Fighters) aqui, surreal também…

    01h04
    Duas crianças entram para anunciar o prêmio de melhor curta de ficção: Abraham Attah (segunda concessão a “Feras de lugar nenhum”, da “inimiga” Netflix), com seu maravilhoso sotaque (de Gana!), e o garoto de “O quarto de Jack”, Jacob Tremblay - que tinha mais ou menos a metade da altura de Attah. Chris Rock não resistiu à piada e trouxe caixotes para deixá-los mais no mesmo nível. Fiquei curioso para ver o vencedor, “Stutterer”.

    01h07
    Para o Oscar de melhor filme em língua estrangeira, nada mais natural do que chamar um coreano e uma latina como apresentadores: respectivamente Byung-hun Lee e Sofia Vergara - ou, como ela é mais conhecida… a mulher mais linda do mundo! O vencedor era barbada - o filme húngaro sobre o qual eu ainda quero falar aqui. Mas o charme mesmo foi ver Vergara dizendo o nome dele com seu sotaque inconfundível: “Son of Sauuuuuuullleee” - que, coincidentemente é também o nome do meu pai… Mas não é por isso que ainda quero escrever sobre “O filho de Saul” - mas sim porque depois de assisti-lo você se pergunta: “Pra que os outros Oscars?”. Mas eu divago (terceira vez, estou contando…).

    01h10
    Outra surpresa: o vice-presidente americano Joe Biden entra no palco e agradece modestamente os aplausos com uma piada: “eu sou o cara menos qualificado para estar aqui esta noite…”. Mandou bem. Mas mandou melhor ainda ao lançar a campanha para que ninguém mais se cale quando for vítima, ou mesmo testemunha, de um abuso sexual (ItsOnUs.org). Isso tudo, claro, um gancho para Lady Gaga, maravilhosa, entrar e cantar a música que estava concorrendo na noite, um documentário sobre o assunto chamado “The hunting ground”. Tudo muito simples, ela e um piano branco, já bastante emocionante. E aí o palco se abre e vítimas “de carne e osso” de abuso sexual entram no palco e… Bom, não consegui ver direito porque já estava chorando a essa altura. Só me lembro que vi a plateia aplaudindo de pé…

    01h20
    Em mais uma prova de que o Oscar deste ano estava com cara de Grammy… Pharrell Williams e Quincy Jones entram para premiar a melhor trilha original. E quem ganha é o octagenário Ennio Morricone (que, numa nota pessoal, eu já tive o prazer de entrevistar no Brasil…), por “ Os oito odiados”. Merecidíssimo - aliás, um prêmio que já deveria ter saído há tempos! Nem que fosse para ouvir ele falar italiano naquele palco… Em algum lugar de Los Angeles, Quentin Tarantino estava rindo satisfeito…

    Sam Smith e Jmmy Napes recebem oscar por 'Writing's on the wall', do filme '007 contra Spectre'01h25
    Common e John Legend - olha mais Grammy aê minha gente! - chegam para anunciar a melhor canção de filmes do ano, que, claro, vai ser pra “Til it happens to you”, de Lady Gaga, claro. Só que… Não! Nossa!! Foi para Sam Smith. Que é um cara de quem, repito, sou fã! Mas com esse tema “meia boca” de James Bond? Sério? Fiquei meio - meio não, bastante! - decepcionado. Só gostei que Gaga estava lá, fina e educada, aplaudindo na plateia… alguns aplausos, certamente, para o fato de Smith ter dedicado o prêmio para a comunidade GLBT do mundo todo. Tudo, parece, termina bem - mas eu posso imaginar alguns “little monsters” bem indignados…

    01h29
    Para apresentar os últimos candidatos a melhor filme, Sacha Baron Cohen vem encarnado no seu personagem Ali G - ou, como ele gosta de se apresentar, “só mais um apresentador negro”… Segundo ele, sua presença representava todos os artistas negros ausentes - inclusive “aquele cara do último ‘Guerra nas estrelas’, John Boyega"… Muito bom. Ao seu lado, Olivia Wilde, com um decote que superou até o de Sofia Vergara (como se isso fosse possível!)

    Alejandro Gonzáles Iñárritu recebe o Oscar de melhor diretor por 'O regresso'01h36
    Eu tinha a impressão de que o prêmio de direção era logo antes do de melhor filme - afinal, a essa altura, melhor ator e atriz ainda não haviam sido anunciados. Mas ali estava J.J. Abrams para anunciar que… tudo voltava ao normal: Alejandro G. Iñárritu levava a estatueta por “O retorno”. Será que vai dar ele também no grande prêmio? Vejamos… Curiosidade: com esses tempos mais curtos para os agradecimentos, não deram mole nem para ele - a música subiu quando Iñárritu estava no meio de seu discurso político. Ou teria sido por causa disso…?

    01h44
    Eddie Redmayne ganhou o Oscar de melhor homem vestido de smoking! Eheh! Ninguém usou esse traje “difícil” tão bem quando ele hoje. Mas todo seu charme ficou em segundo plano quando Brie Larson subiu ao palco para receber o Oscar de melhor atriz que ele anunciou, por “O quarto de Jack”. Secretamente - foram muitos momentos assim, confesso - eu estava torcendo por Charlotte Rampling (vai ser bonita assim lá em… sei lá onde!) - que me fez chorar em “45 anos”. Mas foi legal ver Larson totalmente chocada com sua premiação. E o menino, “seu filho” Jacob Tremblay, na plateia, estava tão feliz como se ele tivesse sido o homenageado. Mais fofura para o fim da festa!

    Leonardo DiCaprio recebe Oscar de melhor ator por 'O regresso''01h52
    E agora o momento mais previsível da noite… Título de melhor ator vai para… Leonardo DiCaprio! Nem Julianne Moore, elegantíssima de preto (e brilho), conseguiu disfarçar sua falta de surpresa. Aplaudido de pé - todo mundo ali queria que ele ganhasse. Como “dono da noite”, DiCaprio aproveitou para fazer o discurso mais político da festa - começando pelo aquecimento global e terminando pelo “respeito universal”… Eheh. Tudo parece terminar bem nesse Oscar - que é um dos menos chatos e mais divertidos que eu consigo lembrar em anos!

    01h58
    Aliás, o Oscar 2016 estava tão bom que deixou até uma reviravolta para o final. Morgan Freeman declara - ele mesmo com uma expressão estupefata - que a estatueta de melhor filme não vai para “O regresso”, mas para “Spolight”!

    Equipe de 'Spotlight' recebe Oscar de melhor filme em Los Angeles. À frente, Michael Keaton abraça o diretor Tom McCarthyGenial! Uma história sobre jornalismo sendo reconhecida no maior prêmio da indústria cinematográfica americana? Acho que é manchete de “primeira página” - eheh! Minha torcida era por “A grande aposta” - e em seguida para “Spotlight”. Mas não estou reclamando. É muito legal ver, só pra variar, a atenção ser voltada para uma história real que teve, de fato, um grande impacto na vida das pessoas - falo, claro, da investigação sobre os padres pedófilos, incentivada por uma série de reportagens do jornal “Boston Globe”. Muito bom. Premiação no geral equilibrada, um excelente mestre de cerimônias, doses certas de humor, seriedade e emoção… Vou dar um like nesse Oscar 2016… Nem reparei que já passam das 2h da manhã…

  • Os sons (e imagens) ao (meu) redor

    Três bons filmes brasileiros em quatro dias? Quando foi a última vez que eu escrevi uma frase como essa? Ou melhor: quando foi a última vez que você escreveu uma frase dessas? Ou sequer pensou nisso?

    Claro que estou falando de uma situação especial: tenho tido a sorte de estar com tempo disponível num dos melhores festivais de cinema do Brasil - o do Rio de Janeiro. E por uma estranha confluência (“astral”, para os que acreditam nisso), várias pessoas próximas (e queridas) estão com trabalhos nesta mostra. Fui assistir ao primeiro deles na sexta passada. Depois vi um outro ótimo no sábado. E ontem “fechei” o ciclo com um filme que, além de ter inúmeras razões pessoais para gostar - já falo sobre isso com mais transparência daqui a pouco -, é um dos mais legais que vi nos últimos tempos.

    Cada um deles, pelos parâmetros deste espaço (você que me acompanha há muito tempo sabe do que eu estou falando), mereceria um post separado. Mas vou cometer a “injustiça” de falar de todos eles num texto só - e apostar que isso já será suficiente para despertar sua curiosidade quando eles entrarem em cartaz. Isto sendo o cinema brasileiro, como você pode imaginar, vai demorar um pouco para acontecer. Isto, porém, é um detalhe.

    O que vale a pena a gente celebrar aqui hoje é esse vigor de uma criação nacional, que finalmente deixou de ser monotemática (ou só regional ou só “ urbana problemática”) e revela, finalmente, aquilo que a gente que é fã de novela sabe há tempos: que o brasileiro tem sim muito talento para contar histórias.

    Parte dessa tendência tem a ver com a percepção de que o cinema brasileiro é um formato criativo sim - e não apenas no “pedestal da grande arte”. Quando nossa produção era pequena, a vertente para este universo ao mesmo tempo protegia e enobrecia nosso magro acervo de títulos. No entanto, agora com uma explosão de títulos - facilitada pela facilidade cada vez maior de fazer um filme - temos, ao que parece, a oportunidade de ver surgir trabalhos ainda mais incríveis e criativos.

    Não sou “teórico” de cinema - nem aspiro ser um. Observo tudo isso com a minha contumaz curiosidade de espectador - e celebro essa “temporada fértil” do nosso cinema com a alegria de quem, algumas décadas atrás, ia na venerada Mostra de Cinema de São Paulo (e aqui pago mais respeito a seu criador, Leon Cakoff - sobre quem já escrevi aqui mesmo), e sonhava em ver aquela exuberância cinematográfica que ela trazia do mundo todo um dia sendo feita no seu próprio país. Mas estou falando muito de teoria - vamos à prática.

    Cartaz de 'Zoom'O filme que abriu esta minha temporada nacional foi “Zoom”, de Pedro Morelli. O motivo principal que me levou à pré-estreia foi a proximidade com a protagonista do filme, Mariana Ximenes - uma companheira de TV, de vida, de arte, alguém cuja minha admiração que dedico a ela é sempre recompensada com inteligência, sensibilidade e… uma energia que mal consigo descrever.

    Quando a gente entra para ver o trabalho de alguém tão próximo, é sempre uma situação esquisita. Eu tento já não “chegar gostando só porque sou amigo” - eheh. Tento ser neutro - talvez até pendendo para o lado oposto, como quem entra já esperando que não vai gostar do que vê. E no caso de “ Zoom” isso é fácil: o filme tem um começo que é difícil de engolir. Só depois de mais ou menos meia hora de filme você começa a entender que tudo que ele está te “vendendo” é exatamente para criar o universo narrativo extremamente sofisticado que o diretor quer te apresentar.

    Uma vez que você percebe que não se trata de apenas uma história, mas de três - que estão conectadas da maneira mais surpreendente que você pode (ou não) imaginar -, “Zoom” vira uma imensa fonte de diversão. Confusa às vezes, mas adoravelmente confusa. Eu diria até que essa confusão é parte da intenção do diretor… mas vamos ver o que posso contar do filme sem estragar suas ótimas surpresas.

    Começando por Mariana! Sua personagem é uma modelo brasileira - deslumbrante, óbvio -, que mora no Canadá com seu namorado (interpretado pelo ídolo da antiga série “Barrados no baile”, Jason Pristley). Ela quer escrever um livro, mas ninguém (nem seu namorado dá esse crédito a ela). Seu livro, porém, tem uma história muito parecida com a de uma menina que trabalha numa bizarra fábrica de bonecas eróticas, tem uma vida sexual longe de ser ideal, envolve-se em uma confusão por causa do silicone que implantou nos seios, e ainda tem um inesperado talento para imaginar (e desenhar) incríveis histórias em quadrinhos. Que por sua vez contam a história de um diretor de cinema, ultra bem-sucedido financeiramente (só sucessos de bilheteria) mas que resolve fazer um “filme de arte”, contando a história de uma modelo brasileira que mora no Canadá e quer escrever um livro…

    Sim, é de dar nó - mas o filme é bem construído o suficiente para, quando você percebe que está no meio de uma trama complicadíssima, já é tarde demais: quer ir até o final. A recompensa por emprestar sua atenção à história de Morelli é grande, já aviso. E o trabalho de Mariana - que tem boa parte das suas falas em inglês - empresta não só sua beleza e a delicadeza (com o perdão da rima) a sua personagem, como também uma leveza (outra rima!) para a personagem que tem a difícil missão de nos desorientar entre o plausível e o improvável da história.

    Falei que parte do charme de “Zoom” é que um terço da sua história é na linguagem de quadrinhos? Gael Garcia Bernal, por exemplo, que faz o papel do diretor de cinema, só aparece na tela como um cartoon - jamais em “pele e osso”… E o cuidado gráfico vai além dessa parte do filme, oferecendo “Zoom” não só como um trabalho esperto, mas também lúdico e estético.

    Cartaz do filme 'Jonas'Agora, “Jonas”. Sempre em nome da transparência, minha conexão com este filme também é pessoal. Sou amigo, há décadas, da diretora Lô Politi - amigo, se não de adolescência, da melhor parte da juventude. Lô é uma daquelas amigas com quem nos conectamos não só pelas pessoas e conexões que nos colocam juntos, mas por uma estupenda afinidade de humor, que costura nossa relação há anos. Digo tudo isso para explicar que, como no caso do filme de Mariana, cheguei à sessão de “Jonas” com cuidado. Não queria gostar logo de cara do filme. Mas aí…

    Aí Lô nos oferece logo nos primeiros minutos um Jesuíta Barbosa (Jonas) apaixonado - pela filha do patrão da casa onde sua mãe é doméstica; Criolo no papel de um traficante; e uma promessa de triângulo amoroso que… Bem, melhor eu parar por aqui: você já entendeu que “Jonas” tem muita coisa para prender sua atenção logo de cara.

    Este é um filme estranho: usa o Carnaval como pano de fundo, mas o cenário é a festa paulista, não a carioca; traz o melhor cantor e compositor atual do Brasil (Criolo) e nos convence de que ele é também um ator com potencial; fala sobre a sempre complicada relação entre patrões e empregados, mas vai além dos clichês da “boa vizinhança” e pega fundo nas consequências do que pode acontecer quando esses dois universos se misturam. Enfim, vários aspectos que poderiam funcionar contra a história acabam se somando num trabalho que, acima de tudo, tem um cuidado visual que vai até além das expectativas de quem conhece o trabalho de Lô como diretora de filmes publicitários (esta é sua estreia na ficção).

    Como todo bom Jonas, este do filme também tem sua baleia - no caso, um carro alegórico de escola de samba, que funciona como um cativeiro não apenas de reféns, mas também dos sonhos de um “filho de empregada” que de repente se vê diante de situações que ele nunca foi preparado para enfrentar - dilemas éticos e emocionais que, pela complexidade que adquiriram, só poderiam terminar em chamas. Amor demais dá nisso. Ou dá em “California”.

    Vamos ao “caso” Marina Person - uma estagiária que, lá pelo começo dos anos 90, veio se juntar à fauna exuberante que fazia a MTV “dos velhos tempos”. Fui eu, ao lado da minha colega Jacqueline Cantore, que contratei Marina para cuidar de um programa que se chamava “Cine MTV” - suas credenciais não mais sólidas do que o fato de ela trazer cinema no DNA (Marina é filha do venerado diretor Luis Sergio Person, de “São Paulo, Sociedade Anônima”). Acho que eu e Jacqueline estávamos bem de intuição…

    De lá para cá, Marina cresceu não só como apresentadora de TV (algo que se tornou um tempo depois de ter assumido o “Cine MTV”), mas também como diretora. Ah! Cresceu também como minha amiga: já são duas décadas e meia de convívio intenso - nas cozinhas de nossas casas (há uma velada competição entre a gente para ver quem surpreende mais o outro com seus dotes culinários), no nosso ócio pelo mundo, por aí. Mas focando na carreira, Marina evoluiu de um simples (e divertido) curta-metragem, “Almoço executivo” - que conta com minha “nobre” participação (!) - para um filme completo de maneira brilhante. (Passou também pelo batismo no formato longo com o emocionante documentário “Person”, um retrato mega pessoal e tocante do diretor que também era um pai - um filme tão forte que merece ser discutido com mais espaço uma outra hora).

    Cartaz de 'Califórnia'Num daqueles resumos cruéis de site de venda de ingressos (ou de roteiro de jornal), “Califórnia” fala de uma adolescente que descobre o tortuoso caminho do amor quase ao mesmo tempo que se vê obrigada a abraçar o sentido da morte - e sai desse processo como uma menina não exatamente adulta, mas interessante, preparada, aberta, com menos medo do que geralmente essa fase da vida nos assola.

    Se nos filmes que citei anteriormente minha intimidade com as pessoas envolvidas me protegeu de certa maneira do processo de criação deles - senti saudades de Mariana quando ela foi filmar no Canadá, e tinha notícias apenas distantes sobre o trabalho da Lô -, meu contato com Marina é tão intenso que não tinha como eu escapar dos seus bastidores. Dei conta dos primeiros esboços do roteiro, das seleções de elenco, das filmagens, da montagem - e das dificuldades de todas essas etapas.

    E ainda tive o prazer de poder palpitar na trilha sonora que é não só a espinha dorsal de “Califórnia”  como também uma referência forte para nós, que fizemos parte do início da MTV - sem falar que, uma vez que a história se passa em meados dos anos 80, quando eu tive boa parte de minha educação musical, os temas que estão no filme me são especialmente caros… A música principal, no entanto, já estava definida desde o começo: “The caterpillar”, do The Cure - uma feliz metáfora do reinos dos insetos para falar de uma menina que se transforma num ciclo de vida, como uma lagarta (“caterpillar”). A referência vale até na descrição física da personagem principal do filme, Estela - vivida de maneira natural e emocionante por Clara Gallo: ela tem sobrancelhas escuras, fortes, marcadas, e acaba se tornando ela mesma a “garota taturana” cantada por Robert Smith.

    Mas a história que “Califórnia” conta é bem menos superficial do que a descrição de uma linha que fiz acima - e mais interessante até do que um mero paralelo musical. Apesar de todas as referências temporais - e para alguém da minha geração, as músicas, gírias, modas e os trejeitos dos anos 80, fielmente reproduzidos no filme, são quase uma distração, de tão interessantes -, o que Marina mostra é uma história que deve emocionar qualquer adolescente. De qualquer idade.

    Toda menina é ou já foi Estela - assim como todo menino já foi ou desejou ser JM (Caio Horowicz), o “curioso e problemático” menino que entra no colégio no meio do ano, e é imediatamente assunto em todas as classes. Estela e JM não são um par romântico óbvio. Quando a conhecemos ela tem uma paixão bem careta pelo menino mais convencional da turma: um loirinho que acha que é surfista, e que, bem interpretado por Giovanni Gallo, é protagonista de um dos raros casos de “assassinato” de uma música de Lulu Santos (aquela que com o mesmo título do filme). Leva um tempo para Estela se desiludir com esse garoto - e mais um tempo ainda para ela perceber que o “cara da sua vida” é JM.

    Assim como sua personagem encontrou a atriz perfeita em Clara, Marina teve também a felicidade de encontrar seu JM perfeito. Os dois atores recheiam seus pares fictícios com a dose necessária de paixão, dúvida e desprendimento que faz com que qualquer pessoa que já teve 17 anos se identificar imediatamente com eles - e com a história de (quase) amor que eles vivem.

    Sim, mais uma história de amor adolescente - mas dessa vez pontuada por uma trágica narrativa de morte. O tio de Estela, interpretador por Caio Blat, é adorado por ela. O sonho da menina é ir para Califórnia e passar uma temporada com ele. Os planos, infelizmente, são interrompidos bruscamente quando sua mãe (Virginia Cavendish) anuncia que seu irmão está voltando por tempo indeterminado para o Brasil.

    Nós, espectadores, já sabemos que a notícia é ruim: ele é uma das primeiras vítimas da Aids - ainda pouco entendida nos anos 80. Mas Estela demora para sacar o que está acontecendo, sobretudo porque no seu retorno, numa cena que é uma espécie de “master class” (mesmo para um ator já tão reconhecido como Blat) ele disfarça muito bem o que está passando por sua cabeça: assediado pela sobrinha e suas amigas, ele tem que esconder a tragédia da sua volta com a excitação do reencontro. É um exemplo de atuação, que Blat só faz crescer à medida que a saúde de seu personagem deteriora. Para salvá-lo do embaraço nesse retorno, o tio traz para a sobrinha o presente da música - Bowie sobretudo, mas também uma banda “diferentona” que arranca até um elogio do calado JM: uma tal de New Order…

    A esta altura, estou aqui me segurando para não falar mais de “Califórnia”. Quero guardar alguma coisa para dezembro - quando o filme deve estrear em circuito nacional. Mas para me despedir - e fechar essa trilogia de filmes nacionais bons que o Festival do Rio me proporcionou este ano - vou só resumir dizendo que ele é muito maior que qualquer fragmento da sua trama que eu resolver comentar aqui.

    Porque “Califórnia” não é um filme sobre amor. Não é um filme sobre adolescência. Não é um filme sobre a estranheza da alma nem sobre todas as dúvidas que a gente tem sobre o que a gente espera da vida. Nem sobre o que a vida espera da gente. Não é tampouco um filme sobre nossa incapacidade de entender nosso desejo. É tão simplesmente um filme sobre música. E, sendo assim, é um filme sobre tudo isso…

  • Será o pai de Amy o único vilão?

    Pôster do filme 'Amy'Uma vez durante uma aula de filosofia, o professor fez uma referência curiosa. Nem sei se vou citá-la da maneira correta – mesmo tendo cursado essa faculdade por dois anos, não é meu forte (muito menos o filósofo que figura essa passagem). Mas ela é uma ilustração curiosa para uma provocação que me ocorreu enquanto assistia ao documentário "Amy", de Asif Kapadia, que já está em pré-estreia no Brasil.

    A aula que presenciava nem era sobre Nietzsche – aliás, já nem me lembro mais do que era. Mas, ao comentar o fato de uma aluna ter chegado atrasadíssima, e se desculpado jogando a responsabilidade no trânsito, o professor brincou que ela fazia como o "homem de Nietzsche" que percebe a História (com "H" maiúsculo mesmo) como algo que ele esquece de que faz parte, não apenas como espectador, mas também como agente. A aluna, frisava ele, reclama do trânsito como se ela, ao pegar o carro para ir para a aula, não contribuísse ela mesma com o congestionamento.

    Por que eu lembrei disso ao ver "Amy"? Já chegamos lá.

    Tive a felicidade de assistir a "Amy" há algumas semanas, fora do Brasil – quando estava numa passagem rápida por Paris. Esta é, talvez, a cidade que mais têm opções de cinema no mundo – e do mundo! Então, tive de colocar prioridades nas minhas escolhas. Antes de tudo, queria assistir à trilogia "As mil e uma noites", do diretor português Miguel Gomes – o mesmo que fez um dos filmes da minha vida, "Tabu", já comentado aqui. Por ser uma obra de mais de seis horas de duração – isso mesmo, mais de seis horas! –, e com um ritmo que, se eu chamasse de lento estaria sendo modesto, as chances de um trabalho assim passar no Brasil são pouquíssimas. Então, primeiro eu fui encarar os três volumes dessa saga de Portugal nos tempos de crise – o filme não é baseado no clássico do mesmo nome nem serve como uma adaptação de algumas histórias: usa apenas a estrutura dos contos de Sherazade, que eventualmente é também uma personagem (mas eu aqui divago, vamos deixar as "Mil e uma noites" para uma outra hora...).

    Em segundo lugar na lista de prioridades estava então o documentário "Amy" – que eu sabia que tinha grandes chances de estrear no Brasil (o lançamento está previsto para esta semana!), mas que mesmo assim... É Amy né minha gente! Qual é o fã que não estaria comigo nessa decisão?

    Fui com tanto afã ao cinema que nem me dei conta de que estava indo assistir ao trabalho de um diretor que já admirava: Asif Kapadia. Ele é o responsável pelo brilhante documentário "Senna", nosso piloto maior (um trabalho que também já comentei aqui). Só isso já seria motivo para eu gostar do filme, mas como entrei na sala sem me dar conta deste "detalhe" (que só percebi na hora os créditos – eu sei, falha minha...), a surpresa de encontrar um filme tão bem feito foi ainda maior.

    A primeira coisa que me ocorreu, já na primeira meia hora, é que ele fugia da armadilha básica que assola toda a nova onda de documentários, sobretudo quando fala de  de uma figura musical querida, como tantos que vêm sendo produzidos no Brasil (e por aí afora): "Amy" não tem a estrutura preguiçosa de colocar um depoimento de uma pessoa próxima ao artista e intercalar a sonora seguinte (também com outra pessoa próxima, num enquadramento muito parecido com o anterior) com um número musical. Já viu alguma produção assim recentemente? Então você sabe do que eu estou falando...

    "Amy" começa com uma imagem inédita até bem pouco tempo – e que foi, numa brilhante estratégia de marketing, viralizada há algumas semanas: Amy Whinehouse, com cara ainda de adolescente, cantado "Happy birthday to you" para um amigo, numa festa bem informal. Esse achado – que é uma benção para qualquer diretor que decide escolher como assunto um artista que já cresceu na era das imagens, selfies, Periscopes – é uma espécie de cápsula do tempo, onde é possível quase imaginar tudo que está para acontecer com ela: da mesma maneira que ali ouvimos naquelas imagens, num simples "Parabéns a você",  todo potencial do vozeirão que o mundo conheceria – e idolatraria –, um olhar mais observador pode perceber também a tragédia que estaria para se desenrolar...

    O clima é de festa, mas seu olhar é triste. Ela está "produzida", mas alguma coisa nos indica que ela não está feliz naquele corpo. E, mais grave de tudo, apesar de estar cercada de amigos queridos, que deveriam ser seu suporte para tempos mais turbulentos, sente-se, naquela jovem Amy Winehouse, uma necessidade de ser amada que jamais será preenchida.

    A narrativa do filme é cronológica – e até, sob um ponto de vista, bem careta. Mas o que é brilhante ali é escolha do que mostrar – e isso, sem dúvidas, é a mão do diretor que nos traz. Para uma figura pop que teve sua imagem superexposta durante toda sua carreira – e mesmo depois de sua morte – mostrar algo novo para os fãs era sim um desafio, que Kapadia cumpre com louvor. Para isso ele parece ter mergulhado não apenas nos arquivos pessoais e profissionais de Amy – foram inúmeros "making offs" de várias aparições e trabalhos que Amy fez na sua trajetória artística –, mas também num material que, muitas vezes, parecia ter saído de baús de fãs que seguiam a cantora.

    A fonte, no entanto, é menos importante do que o retrato que essas imagens nos ajudam a pintar. E que é, na primeira parte do filme, bem "cor-de-rosa". Aliás, como deve ser. Apesar de vir de um cenário familiar turbulento, Amy parece aceitar naturalmente todas as dificuldades da sua vida, inclusive aquelas que diziam respeito a sua arte. É emocionante ver como sua carreira – que, uma vez que a conhecemos já como artista consagrada, parece que foi construída facilmente – tropeçou em vários momentos, e quase não aconteceu. Por pouco ela não era mais um caso de talento desperdiçado – como, tenho certeza, vários que existem por aí. (Você tem a mesma sensação, do efeito da combinação necessária de sorte e talento para o sucesso artístico ao ler o livro "Apenas garotos", de Patty Smith, outro assunto sobre o qual já me debrucei aqui com entusiasmo, mas cá estou eu novamente a divagar...).

    Amy Winehouse e Blake Fielder-Civil em foto de 2007, quando ainda eram casadosMas num certo momento tudo deu certo – e a estrela de Amy começou realmente a brilhar. Esta etapa, o filme retrata com um ritmo diferente, quase eufórico – e você tem a incômoda sensação de que vai ser uma biografia "bonitinha" e que não vai a fundo nos problemas que ela tinha pela frente. Aí entra em cena Blake Fielder-Civil (foto) – a paixão da vida dela, ou, conforme você quiser interpretar, o cara que arruinaria sua vida.

    Há divergências. Muitas coisas que já li sobre "Amy" apontam o pai dela, Mitchell Winehouse, como "o grande culpado" da tragédia da filha – mais sobre Mitchell, culpa e Nietzsche, daqui a pouco. Mas eu ainda acho que Blake foi a pedra de toque da desgraça de Amy. E não só apenas porque foi ele – como o próprio Blake conta no seu depoimento em off (nenhuma pessoa entrevistada para o documentário aparece falando para as câmeras – quando isso acontece, é com material de arquivo) – que apresentou cocaína e heroína para sua namorada. O que vemos, ao longo do filme, é um cara totalmente manipulador, egoísta e, em última análise, bastante burro.

    A relação de Amy com Blake é meio que o pivô da sua degradação – pessoal e artística. E é a brutalidade dessa fase da vida da cantora que torna "Amy" uma obra ainda mais interessante. Jamais vi um painel tão honesto quanto este sobre como a mídia, a voracidade mórbida dos fãs, a manipulação de imagens, a estrutura corrosiva do show business, e a fragilidade de um artista podem se unir para destruir uma pessoa. Ah! Ia quase esquecendo de falar que ter um pai como Mitchell também ajuda bastante nessa decadência...

    Por mais que Amy o amasse – algo que fica claro em vários momentos do filme –, seu pai era sim uma figura destrutiva. Kapadia não chega ao ponto de acusar Mitchell de se aproveitar do sucesso da filha para ganhar dinheiro, mas nem precisa. As próprias imagens nos deixam concluir que ele era sim um aproveitador, colocando interesses próprios (e uma boa dose de ganância) na frente da saúde da filha.

    Sim, foi ele que, aos primeiros sinais de que Amy precisava de internação para tratar dos seus problemas com drogas, disse que a filha estava bem e que poderia continuar a cantar (lembra daquele verso de "Rehab", "And if my daddy thinks I'm fine", ou, "Se meu pai acha que eu estou bem"... Pois é... É autobiográfico!). Sim, foi ele que fechou shows e até turnês quando ela não tinha condições de subir ao palco. E sim, foi ele que, num raro momento em que Amy estava bem, limpa – numa temporada que passou na ilha de Santa Lucia, no Caribe –, chegou com uma equipe de TV de um reality que estava fazendo sobre ele mesmo (!), sobre ser pai de Amy Winehouse, e forçou a filha a aparecer na frente das câmeras. (A imagem dela pedindo para eles não filmarem e o pai sugerindo com gestos para a equipe algo como, "pode vir, eu conheço ela", é uma das mais chocantes do documentário).

    Mas a atitude predatória de Mitchell, ainda que inconcebivelmente exagerada, não é exatamente singular. Todos em torno de Amy – até mesmo seu segurança, que por vezes mostra uma certa candura e piedade com relação à patroa – estão lá para tirar um pedaço dela. Inclusive você – fã incontestável, ou mero observador da tragédia alheia. E aqui chegamos finalmente à referência de Nietzsche, que aquele professor de filosofia fez numa certa aula a que eu assisti.

    Como o homem que observa a História sem se dar conta de que ele também faz parte dela - e como a aluna que chegou atrasada reclamando do trânsito sem perceber que ela mesma, ao vir de carro, contribuía para o engarrafamento –, nós saímos da sessão de "Amy" horrorizados com o que "a mídia" fez com a cantora. Mais de uma vez, vemos ela tentando se locomover de um lugar para outro, apenas para ser violentada com uma explosão de flashes de papparazzi – que, claro, iriam vender suas imagens para sites e revistas sensacionalistas (ou talvez até para uma imprensa mais "respeitada"). E que, claro, você iria consumir quase sem pensar, com a mesma curiosidade mórbida que normalmente você condena nos outros. Mas se esquece de que também faz parte desse grupo de pessoas tão peculiares: os humanos.

    Quando digo nós, coloco-me também nessa turma. Como fã e até como jornalista (fui a Londres dias após sua morte, até a porta de sua casa, fazer uma reportagem), fiz parte desse massacre  – quase sem pensar. Mas aí vem um filme como esse de Asif Kapadia e nos faz lembrar, de maneira sutil e inteligente, que somos hoje uma sociedade estúpida, sem assunto, e que, mais que nunca, dependemos do sangue de pessoas brilhantes como Amy Winehouse para emprestar algum sentido para nossas vidas.

  • A morte de Spock, a ascensão de Chacrinha e o fim do tempos

    Leonard Nimoy como Dr. Spock em 'Jornada das Estrelas'
    Não há morte que chegue em hora boa – que dirá em hora certa. Mas a despedida de Leonard Nimoy deste mundo (quem garante que ele não sobrevive em outra galáxia?) teve, no mínimo, um timing interessante. Nimoy, como qualquer terráqueo com uma queda básica por viagens espaciais – ou séries surreais de TV – sabe, interpretou o inesquecível Dr. Spock de "Jornada nas estrelas", aquela viagem por onde nenhum homem jamais ousou ir antes (ou algo assim). Entre tantas qualidades que Spock tinha, ele era acima de tudo um "vulcano mestiço", que, apesar do seu sangue misturado, primava por agir como todas as pessoas do seu planeta: movido pela razão. Spock, como você pode imaginar, se sentiria um pouco deslocado num mundo como o de hoje, em que a razão parece ter definitivamente nos abandonado.

    Talvez você não tenha se dado conta que Nimoy/Spock tenha morrido – afinal, esse triste acontecimento teve a infelicidade de chegar num dia onde o mundo descobria algo muito mais importante: um vestido que muda de cor. O próprio Spock talvez encarasse essa loucura de informação que estamos vivendo com a naturalidade de sempre: "Humanos", desabafaria. Mas nem o ser mais racional é capaz de explicar o que está acontecendo...

    Como você talvez tenha acompanhado no meu Instagram (este sim assinado por mim: @zecacamargomundo), estive viajando por uns 4 meses longe do Brasil. Tentava me manter relativamente informado sobre o que acontecia no país, mas as notícias que garimpava ora me faziam sentir feliz de estar longe, ora me recordavam daquele velho bordão de Jô Soares e seu personagem que era um exilado político indeciso sobre se devia ou não abraçar a nossa então "abertura política": "Não querem que eu volte", dizia ao saber de cada barbaridade que lhe contavam sobre sua terra natal.

    Vou poupar você com exemplos – resumindo, apenas no mais recente, o absurdo que virou a nossa cultura e nosso caráter: sabe a história do médico que entregou a paciente que foi pedir ajuda a ele por conta de um aborto mal sucedido? Pois é... Mas hoje não escrevo sobre esse caso especificamente. Aliás, não escrevo sobre caso nenhum especificamente.

    Não quero me alongar. Estou voltando aos poucos para este espaço e estou tentando ser mais conciso (ahahahhahahahaah). Se citei essa aberração é apenas para reforçar que nosso vulcano mais querido – e eu sei diálogos daquele primeiro "Jornada nas estrelas" de cor até hoje – nos deixou no exato momento em que a lógica, a razão, o bom senso – enfim, nossa capacidade de exercitar o cérebro com um mínimo de sabedoria – parece nos abandonar de vez.

    Cena original de Abelardo Barbosa no programa da TV Globo 'Cassino do Chacrinha'Passei o fim de semana todo pensando nisso, até que ontem à noite fui convidado para ver a última apresentação no Rio de "Chacrinha, o musical". O espetáculo encerrava uma temporada de enorme sucesso, consagrando não só Stepan Nercessian como o Velho Guerreiro – um caso não só de excelente interpretação, mas de "reencarnação"! – como Leo Bahia, fazendo o "jovem Abelardo". (Vai para São Paulo agora e tomara que viaje por todo o Brasil!). Muita gente já tinha me recomendado o musical, mas só tive tempo de ver agora – e novamente acho que o timing foi perfeito: justamente quando eu ruminava sobre o cotidiano de maluco que estamos vivendo, eu vejo num palco uma lição de sanidade de um animador relativamente são que era chamado de louco...

    Sim, ele que apresentava "o programa que acaba quando termina"!

    O sucesso da montagem também diz muito sobre esses nossos dias. Afinal, Chacrinha era um oásis de insanidade com a qual nossa TV hoje só pode sonhar. Talvez as pessoas estão precisando um pouco mais disso. A explosão criativa – e de brasilidade – do Velho Guerreiro faz sombra não só aos comportados formatos de hoje (entre os quais alguns que eu mesmo participei e participo) como aos supostos transgressores e transgressoras que confundem liberdade com ignorância.

    Ao longo das quase três horas de musical, peguei-me não apenas cantando todas – todas! – as músicas que desfilavam pelo palco daquele Cassino, como sentindo uma enorme saudade de alguém que de fato provocava não só nosso decoro como nossa cultura. Se hoje os programas sobrevivem com um cardápio de artistas de pagode comportados, derramando seus versos que não cabem em frases musicais, cantando sobre tudo menos o que está acontecendo à nossa volta (e não vamos nem falar de outros gêneros musicais), "Chacrinha" nos lembra que houve um tempo onde um certo Odair José pedia para a mulher parar de tomar a pílula e um certo Ultraje a Rigor nos lembrava de nossa característica maior como brasileiros – de que "a gente somos inútil"! Para todo o Brasil...

    Alô! Atenção!

    Tinha Magal, Pedro de Lara também e outros personagens que, como salienta muito bem o texto (assinado por Pedro Bial e Rodrigo Nogueira), nós mentíamos que conhecíamos porque víamos "sem querer" quando passávamos em frente à TV que a empregada assistia. Baixos e altos – ou altos e baixos – de um programa realmente anárquico. Mas que tinha vida. Aliás, vida na loucura. Uma loucura que já não cabe mais hoje, onde a realidade supera qualquer ficção que a TV queira botar no ar.

    O fim dos tempos? Como otimista inveterado, prefiro sempre achar que estamos nos preparando para algo melhor. Mas para isso precisamos que esses dois ícones da cultura pop ressuscitem de alguma forma, reencarnem em algumas pessoas – e tragam de volta a razão e a loucura andando juntas e em harmonia. Longa vida Spock, longa vida Chacrinha!

    O refrão nosso de cada dia: "La charrette", Florent Marchet – no meu passeio pelo Instagram, passo agora por Paris, e portanto vem de lá a inspiração para a indicação de hoje. Um bom clima, aliás, para começar a semana...

    Fotos: Leonard Nimoy como Dr. Spock (Divulgação); cena original de Abelardo Barbosa no programa da Globo 'Cassino do Chacrinha' (Site Memória Globo / Divulgação)

  • Feliz ano da cabra, Birdman!

    Tentei acordar para ver o Oscar, mas fracassei. Também não consegui ver o filme premiado na festa desta madrugada, pois aqui de onde escrevo ele ainda não está em cartaz - só estreia na quarta-feira. Falando assim, parece que tenho motivos para reclamar de estar em Paris - onde encerro minhas férias. Mas este não é o caso, claro. Sobretudo porque opções de filmes bons para assistir não faltam por aqui (esses dias, por exemplo, vi um dos melhores de 2014 que foi completamente esnobado pelo Oscar: "O ano mais violento", de J.C. Chandor).

    E não tem como se sentir alienado culturalmente numa cidade em que você pode, num dia apenas, passear entre obras de Klimt (Pinacothèque) a Jeff Koons (Beaubourg) - fechando com a exposição mais interessante que já vi nos últimos anos, "Le bord du monde" (Palais de Tokyo), só com artistas que justamente não cabem na definição de artista.

    Não, este não é um daqueles posts tipo diário de viagem que você - caro leitor, cara leitora - estava talvez acostumado a encontrar neste espaço. Este é um breve registro para dizer que este blog está sim vivo - talvez não chutando, mas se preparando para tal. Você pode imaginar os assuntos que tenho acumulado nessas últimas semanas, quando estive ausente. Já quis escrever sobre tanta coisa - de "Ida" (que merecidamente levou o Oscar de melhor filme estrangeiro) a "Felizes para sempre?" (cheguei a esboçar um texto que não citava sequer uma vez a derrière de Paola Oliveira, acredita?); de Edward St. Aubyn (o que acontece quando um autor favorito escreve um livro "menor") a Björk (sou só eu que escuto "Vulnicura" em loop há duas semanas?). Mas tudo tem seu tempo.

    O tempo de falar dessas coisas talvez tenha passado - dificilmente eu as retomarei nos textos que virão daqui para frente. Mas outras coisas interessantes chegam com o porvir, tenho certeza. O ano novo chinês acaba de virar - e agora é o da cabra (às vezes interpretada como "carneiro"). Não sou dos mais supersticiosos, mas parece que, segundo a astrologia chinesa, 2015 promete ser uma ano de extrema criatividade - que, no entanto, tem que lutar contra uma extrema teimosia. Coisas de uma cabra que empaca... Estamos prontos para isso?

    Espero que sim. Vou ver "Birdman" assim que puder - e quem sabe podemos então discutir sobre este filme aqui. Do que vi da festa do Oscar - retalhos daqui da internet-, só posso dizer que o melhor momento foi mesmo Lady Gaga fazendo aquela homenagem a Julie Andrews no filme "A noviça rebelde" - ou, como o Google Tradutor diria, "The rebel novice"... "That's entertainment"! Será que vou me divertir tanto com as ruminações semi-honestas de Michael Keaton e Alejandro Iñárritu? A saber...

    Julie Andrews


    Que venham as cabras!

    O refrão nosso de cada dia: "The tide is high", The Paragons - Fica muito esquisito retomar este espaço com uma música de 1967? Bem, acho que você mesmo já vou coisas mais esquisitas por aqui, então vamos com essa versão original da música de Blondie - que todo mundo pensa que é original... Nas manhãs geladas que tenho encarado por aqui, enquanto corro pelas ruas ainda vazias de Paris, essa é a brisa tropical que me aquece. Uma obra-prima acidental. Aliás, como todas as obras-primas.

  • Tipo vida. Só que não

    Boyhood
    Quando começamos a acompanhar a história de Mason, ele tem sete anos de idade - e parece um garoto americano normal. Passados 12 anos, quando nos despedimos dele - depois de quase três horas de filme - Mason parece também um garoto americano normal, só que agora com 18 anos. O que acontece entre esses dois limites foi registrado pelo diretor Richard Linklater em "Boyhood: da infância à juventude" - que, com um pouco de sorte, ainda sobrevive em cartaz ao ataque dos "blockbusters" de fim de ano ("Interestelar", "Jogos vorazes" e quejandos).

    É um trabalho impressionante, captado ao longo de mais de uma década - uma prova de o cinema ainda se presta a projetos épicos que não envolvam animação digital. "Boyhood", que foi sendo visto (e aplaudido) em festivais ao longo do último ano, chega em cada país que está estreando cheio de elogios e com uma bela expectativa. Quem não ficaria curioso para ver um trabalho desses? Eu mesmo ensaiei de conferi-lo em várias cidades por onde passei em 2014 - mas devido a sua duração, nunca sobrou tempo para que eu pudesse me dedicar a ele. Até que na semana passada consegui vê-lo aqui mesmo no Brasil.

    Minha própria excitação era alta. Sobretudo porque o foco é o desenvolvimento de um menino - um processo com o qual eu poderia me identificar muito bem -, saí de casa já praticamente gostando de "Boyhood". Sou "presa fácil" para esse tipo de narrativa. Leitores mais assíduos certamente se lembram de um texto que escrevi aqui mesmo neste espaço - talvez um dos meus favoritos  - sobre o filme "A árvore da vida", de Terrence Malick: entre tantas coisas que mexeram comigo nesse trabalho exuberante, a relação entre o pai (Brad Pitt) e seus três filhos enquanto eles estão crescendo é um de seus aspectos mais fascinantes. Assim, pensando que no projeto hercúleo de Linklater achei que ia encontrar uma trajetória semelhante - que pudesse jogar uma luz na minha própria história (e na de tantos outros espectadores).

    Toda essa antecipação, porém, acabou me fazendo esquecer de que o que eu estava prestes a assistir não era um documentário. Apesar de seu caráter de "reality" - que capta os atores numa evolução cronológica natural -, "Boyhood" é um trabalho de ficção, com um roteiro que era escrito - ou reescrito - praticamente a cada ano em que era filmado. Havia sim, pelo que li sobre o filme, um "arco" geral que o diretor queria mostrar. Mas a passagem de tempo e todos os acontecimentos em volta fizeram com que, inevitavelmente, esse roteiro fosse sendo adaptado. O que talvez tenha tornado todo o projeto ainda mais rico - mas de qualquer maneira, nem assim era possível esquecer que aquilo era um trabalho de ficção.

    "Boyhood" não tem uma história incrível, daquelas de reviravoltas, que faz a gente ficar grudado na cadeira. Mason sofre sim com as mazelas do destino: seus pais se separam (logo de início já somos informados que o personagem de Ethan Hawke - que conhecemos apenas por "pai" - saiu de casa); o segundo marido de sua mãe (Patricia Arquette) é um bêbado agressivo; há uma sombra de bullying no colégio; o silêncio da adolescência; a sensação de não pertencer; o desafio sexual dos colegas mais velhos etc. Mas tudo muito dentro do esperado - não há surpresas.

    E é justamente esta ausência que me fez pensar: será que eu estava gostando do filme porque estava assistindo a uma história que já conhecia - a de todos nós?

    O mérito de Linklater vai muito além da bravura do projeto de filmar durante 12 anos. Com pouquíssimos elementos dramáticos, ele é capaz de nos conectar com um garoto que está "simplesmente" crescendo. Não tem gente que se projeta nos super-heróis que vê na grande tela? Qual o problema então de fazer essa conexão com um personagem comum?

    Claro que a história de Mason não é tão simples assim a ponto de tornar-se desinteressante. Há um fascínio extra em acompanharmos um garoto crescer "diante dos nossos olhos" - as passagens de ano são assinaladas discretamente por diferentes cortes de cabelo. É como se a cada visual, a expectativa de que tudo mude na vida de Mason aumentasse. Mas nem toda vida é tão fascinante como as coisas que a gente vê no cinema... Num requintado exercício de ironia, Linklater parece estar nos desafiando: Quer uma biografia fascinante? Que tal a sua?

    Essa sensação de que estamos vendo a própria vida se desenrolar à nossa frente é um blefe. Como já assinalei acima, eu era obrigado a me lembrar constantemente de que aquilo era uma história escrita - que tinha uma interferência autoral. Nem por isso, eu deixei de aproveitá-la como se fosse documental. E, por isso mesmo, saí do cinema pensando nesse nosso fascínio atual pela vida dos outros.

    Livro Minha Luta 2 - um outro amorPotencializada hoje pelas redes sociais, parece que estamos cada vez mais encantados em ver a vida se desenrolar diante de nós, sem muito drama - ou melhor, com o simples drama do cotidiano. "Boyhood" é um sofisticado exemplo disso, assim como um livro que estou lendo agora - a segunda parte de uma saga de seis volumes que é uma sensação literária: "Minha luta 2 - um outro amor", do norueguês Karl Ove Knausgård.

    comentei aqui sobre o primeiro volume dessa obra monumental (mais de 6 mil páginas no total!): "A morte do pai". Com um tom que não é nem confessional nem documental - apenas transparente - Knausgård nos acostuma logo de cara a ler longas descrições (ou mesmo longos diálogos) onde pouca coisa acontece "dramaticamente". Naquele primeiro volume, onde somos apresentados à família do narrador e personagem principal - chamado Karl Ove -, a intimidade com que entramos na sua vida é instantânea. Sua memória escorre como a mais natural das narrativas, como se muitas vezes, fosse nosso próprio pensamento que estivesse no comando.

    Agora, em "Um outro amor", algumas coisas mudaram na vida do Karl Ove personagem - exatamente como mudaram na vida do autor Knausgård: ele sai de Oslo e vai morar em Estocolmo; despede-se do primeiro casamento e vê numa antiga paixão a possibilidade de um novo recomeço; torna-se pai; mesmo distante, problemas antigos com sua família voltam a aparecer. Mas tudo isso, como espera quem já se apaixonou por seu estilo desde o primeiro livro (eu!), vem naquele ritmo natural, de vida que passa.

    Por exemplo, veja esse parágrafo sobre um episódio que acontece depois que Karl Ove chega a Estocolmo:

    "No dia seguinte todo mundo se reuniu para jogar futebol, Ingmar Lemhagen arranjou uma bola para nós, a partida durou uma hora, e depois, quando me senti na grama ao lado de Linda, com uma Coca-Cola na mão, ela disse que eu andava como um jogador de futebol. Ela tinha um irmão que jogava futebol e hóquei e disse que nós dois parávamos de pé e caminhávamos mais ou menos do mesmo jeito. Mas é Arve, perguntou ela, você já viu como ele anda? Não, eu disse. Ele ainda anda como um bailarino. Com passos leves e etéreos. Você não percebeu? Não, eu disse, abrindo um sorriso para ela. Ela sorriu de volta para mim, se levantou. Estendi todo o meu corpo na grama e fiquei olhando para as nuvens brancas que deslizavam lentamente nas profundezas do céu."

    Nada demais, não é? Só que quando você lê isso, já está totalmente absorvido pela trajetória de Karl Ove - e se a cena descrita tem muita ação ou não, pouco importa. Quem nunca ficou "olhando para as nuvens brancas que deslizavam lentamente nas profundezas do céu"? Tão banal que chega a ser patético. Mas felizmente Knausgård tem o dom de transcender o ordinário e transformar isso em literatura.

    Como a vida de qualquer um, a de Karl Ove tem pequenas surpresas, reviravoltas e incidentes inesperados. Mas mesmo em situações assim, Knausgård não perde seu tom. Como neste outro parágrafo, que vem logo após ele testemunhar uma cena constrangedora em que o pai de Linda, seu amor reencontrado, a convida para que ela - então com 32 anos - venha sentar-se no seu colo. Toda a situação é de um enorme constrangimento. Mas Knausgård segue impávido nos contando tudo:

    "Dei alguns passos para trás, evitando que a situação se complicasse ainda mais para ela como uma testemunha. Quando Linda apareceu no corredor eu estava olhando para os quadros pendurados ao longo da parede. Ela vestiu o casaco. O pai veio se despedir de nós, ele me deu um abraço como na vez anterior, ficou olhando para Vanja no carrinho de bebê, deu um abraço em Linda, ficou parado na soleira da porta e nos seguiu com o olhar quando entramos no elevador com o carrinho, ergueu a mão uma última vez e fechou a porta atrás de si ao mesmo tempo em que a porta do elevador se fechou e nós começamos a descer."

    Estou exatamente neste momento do livro - ainda quero terminá-lo antes da grande viagem na qual vou embarcar na próxima semana (detalhes aqui na sexta-feira, lembrando que excepcionalmente nesta semana, você encontra um texto aqui por dia). E o maior indício de que fui "fisgado" novamente por Knausgård é que, mesmo sendo esse "tijolão" de 592 páginas, eu o levo comigo para todo o lugar - sempre encontro uma brecha para ler mais um pouquinho...

    O autor americano Jeffrey Eugenides ("Middlesex", entre outros) chamou o estilo de Knausgård de "autoficção" - uma curiosa variação sobre o tema "biografia". Se essa definição te parece estranha, é porque ela é mesmo nova. Ou melhor, escrever sobre episódios pessoas transformando-os em literatura está longe de ser novidade - como um artigo que li recentemente numa ótima nova revista literária online, Public Books, Charles Dickens fez exatamente isso em "David Copperfield". Mas o que Knausgård traz é um certo frescor ao gênero, e com isso nos ajuda a redescobrir como a vida ordinária pode ser interessante.

    Desde que, claro, você tenha - como Richard Linklater e Karl Ove Knausgård  - o dom de interferir nesse cotidiano, para apresentá-lo como arte. Tipo vida. Só que não.

    O refrão nosso de cada dia: "Uva de caminhão", Wanderléa - como disse acima, basta olhar para a vida para transformá-la em arte. Mas é preciso ter o dom... Com era o caso de Assis Valente - meu homenageado nesta seção nos posts desta semana. Valente era um "sambista cronista": o que estava acontecendo a sua volta virava música. Um de seus sambas mais conhecidos é "E o mundo não se acabou" - sobre um boato, em 1938, de que cometas se chocariam com a Terra. Na música que indiquei ontem, "Recenseamento", o assunto era o censo que Getúlio Vargas havia encomendado em 1940. Na canção que você vai encontrar aqui amanhã ele brinca, veja só, com a "falta d'água"... "Uva de caminhão" é bem mais prosaica: comenta o antigo hábito de vender uva a preços baixos em caminhões no meio da rua - e para isso, mistura nomes de samba bem populares da época ("Flauta de bambu", "Pensão da dona Estela") com imagens cotidianas deliciosamente "no sense". Muita gente conhece a versão de Carmem Miranda, mas aqui, sugiro "Uva de caminhão" na voz de Wanderléa - para deixar as coisas ainda mais absurdas...

    Fotos: Divulgação

Autores

  • Zeca Camargo

    Mineiro de Uberaba, o apresentador do ‘Fantástico’ começou a carreira no jornal ‘Folha de S. Paulo’, participou da primeira turma da MTV no Brasil e foi editor da revista “Capricho”.

Sobre a página

Em seu blog, Zeca Camargo transita pelo universo da cultura e discute músicas, filmes e exposições.