• Por que eu viajo

    Às vésperas de sair para mais uma volta ao mundo, achei que deveria finalmente dividir com você, que me acompanha aqui há tanto tempo, esse segredo. Podia começar contando lá do início, quando meu pai e minha mãe juntou eu e meus irmãos para uma inesperada viagem a Buenos Aires – onde imediatamente ficamos conhecidos no hotel como "los diablitos"... Mas dessa primeira viagem até esta de agora – que vai permitir que eu visite meu centésimo país! – eu teria que te levar por muitos e muitos parágrafo, muitos deles escritos aqui mesmo neste espaço. Assim, achei melhor resumir tudo numa só frase.

    Antes dela, porém, pensei em preparar um terreno com algumas fotos – de viagens recentes, claro. Considere isso um aquecimento para meu instagram oficial – de verdade, não este que está aí enganando mais de cem mil pessoas. O "endereço" vou anunciar aqui em breve! Mas este é o clima que você vai encontrar se quiser viajar comigo! Aperte os cintos, e siga essas imagens até a frase no final...

    Viagens - Zeca Camargo

    Viagens - Zeca Camargo

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    Eu viajo porque a procura é infinita...

    Dou notícias – de onde quer que seja!

    O refrão nosso de cada dia: "... E o mundo não se acabou", Ademilde Fonseca, encerrando minha homenagem desta semana a Assis Valente, mais um pouco do seu humor genial, brincando desta vez com um boato antigo de que o mundo estava prestes a acabar... Já ouviu essa conversa antes? E essa música? Então vamos rir juntos, porque esse mundo não se acaba nunca...

  • Apresentando: o 'neomed'!

    Pare, olhe, escute, passeVocê também anda achando tudo meio sem graça, tudo meio parecido. Olha as prateleiras (virtuais ou físicas) e não tem vontade de ler nada? Consulta a lista de filmes em cartaz e não se anima com coisa alguma? Passeia pelas vitrines de shoppings e não encontra nada que tenha vontade de comprar? Ou ainda, anda meio cansado ou cansada da discussão de ideias que andam por aí – sobretudo nesta ressaca de eleição presidencial? Fique tranquilo – você não está só nessa sensação. E já inventaram até um nome para isso: é o "neo medíocre", que, para facilitar por aqui, eu rebatizei de "neomed".

    Deparei-me com ele num artigo recente do caderno de opiniões de domingo do jornal "The New York Times", de onde inclusive tirei alguns exemplos do parágrafo anterior. Num tom meio divertido e meio preocupado, Vanessa Friedman, a diretora de moda e principal crítica de estilo do jornal, brinca com a expressão que começou a pipocar recentemente na imprensa americana: "the new mediocre". A origem dele, segundo Friedman está num discurso da diretora do Fundo Monetário Internacional – e, no caso, ela se referia à economia mundial. Mas a jornalista achou que podia esticar a definição para usá-la em outros aspectos da cultura – especialmente da cultura pop. Foi um acerto.

    Tanto que resolvi também me apropriar da ideia e propor aqui que a gente faça o mesmo exercício que Friedman fez: o de reconhecer focos dessa nova mediocridade na nossa própria cultura pop. Fácil demais – eu sei que você já está pensando. Mas nem por isso não vale a pena tentar.

    Pegando ainda a carona no artigo de Vanessa, ela lamenta que as prateleiras das livrarias estão repletas de trilogias – de "pornô light" e "pseudo-aventuras adolescentes". Sabe mais ou menos do que ela está falando? Essa falta de assunto, você há de concordar, vaza sem pudor para as grandes telas...

    Estrangeiras e nacionais. Quando vamos finalmente encher de ver comédias que, como já disse uma vez o brilhante "Tá no ar", estrelam "um grande comediante no papel... dele mesmo"?

    Na telinha, estamos nos acostumando a ver sempre os mesmos artistas como convidados "exclusivos" de programas que, não fosse pela personalidade que um ou outro apresentador empresta à cena, seriam uma mera variação sobre o mesmo tema. E mesmo no formato consagrado dos sitcoms, quantas encarnações de "Friends" podemos aguentar? – sim, "Big Bang Theory", não ponha a mão na frente do rosto, pois estou falando de você também. Naquela tela ainda menor, a do seu celular, convenhamos: para cada novo (e brilhante) esquete do Porta dos Fundos, dezenas de clones inócuos se reproduzem como uma praga no mundo virtual – e, pior, sem virar viral... As graças são as mesmas – e quando ela não funciona (na maioria das vezes) basta fazer uma edição "caprichada", inserindo uma luva de box, um efeito sonoro, uma repetição de um flagrante (qualquer imagem repetida infinitamente é engraçada, certo?), ou o congelamento de um detalhe de uma expressão facial. Hilário...

    Na música, eu só precisaria citar um gênero para você imediatamente identificar o "neomed": sertanejo universitário. E se jogar pagode na mistura então, você vai encontrar uma categoria que eu nunca achei que pudesse existir: o genérico do genérico. (Outro dia peguei um táxi num trajeto que, com o trânsito, me custou quase duas horas, e fui brindado com um pendrive só de pagode – que era o fraco do meu motorista... e meu castigo). Existe pagode bom – não estou generalizando. Mas são poucos. Aliás, são eles – os artistas, produtores, empresários e as gravadoras – que estão generalizando. E com isso, fazendo desaparecer a beleza de todo um repertório.

    Ao falar da área em que é especialista (moda), Vanessa Friedman capricha (na minha tradução sempre apressada): "Fiquei ali assistindo a um desfile depois do outro das últimas coleções prêt-à-porter e vi mais 'reinvenções' e 'homenagens' aos vestidos rock-chique dos anos 60 e calças largas dos anos 70, blazeres poderosos dos anos 80 e melindrosas dos anos 20, e pensei 'Como explicar essa falta de novas ideias entre estilistas tão talentosos?'... O novo medíocre". Levante a mão quem não teve essa sensação ao passar os olhos nos desfiles das últimas Fashion Weeks!

    E o que passa por notícia então – tem coisa mais "neomed" do que falar das mesmas celebridades, inventar os mesmos "furos", e torcer para que eles sejam repetidos até um punhado de gente acreditar que é verdade? Toda vez que vejo uma "notícia bombástica" sobre alguém famoso acho graça da tentativa desses "repórteres" acharem que são bem informados – ou, pior, íntimos das pessoas sobre as quais elas escrevem. Como alguém que convive, ainda que perifericamente, neste universo, sei bem o quão longe esses blogueiros estão da realidade.

    (O "caso Adnet", sobre o qual escrevi aqui no começo da semana, mostrou ser um bom caso de estudo disso. "Horrorizados" com o "escândalo", internautas e blogueiros vestiram a carapuça vitoriana e apontaram seus dedos condensadores, só para, na última segunda-feira, verem a própria Dani Calabresa – que é parte interessada na história – rir dos "carolas" de plantão. O que, claro, provocou uma onda de defesa desses sabichões que se auto-vangloriam de saber o que se passa pela cabeça das pessoas famosas – adoro quando alguém escreve que "fulano está irritado" ou que "tal atriz ficou transtornada" com isso ou aquilo... Dizer que sabe do estado de espírito de alguém que você sequer encontrou pessoalmente na sua vida é, no mínimo, charlatanismo, mas quem disse que as pessoas não adoram ser enganadas?).

    Tudo anda muito igual e sem graça – e em tempos medrosos como os nossos, parece que essa tônica deve continuar. Veja por exemplo a notícia que circulou está semana, sobre a volta de um querido apresentador de TV, o Gugu. Uma "pesquisa" apontou que o quadro que as pessoas mais esperam ver no seu programa é o da banheira (um momento do qual eu quase não escapei na minha carreira de entretenimento, mas isso eu conto outra hora). A "Banheira do Gugu", gente! Fico meio surpreso e meio chocado não por puritanismo, mas pela recorrência da ideia. Quando você pergunta para as pessoas o que elas querem ver – ou ler ou ouvir ou assistir – elas sempre vão recorrer a coisas que já conhecem. (A própria lista de notícias mais lidas daqui do G1 e de todos os outros sites é um reforço disso: as pessoas querem saber daquilo que já foi aprovado por outras pessoas – mas eu divago).

    Mas o que esquecemos, quando lemos uma pesquisa assim e optamos por reciclar coisas do passado (e não só na TV: pense em Hollywood regurgitando – com sucesso – as Tartarugas Ninjas!), é que um dia alguém "inventou" a "Banheira do Gugu". Ou um super-herói de capa azul. Ou uma coisa chamada Bossa Nova. Ou um programa de um formato original. Infelizmente, o "neomed" impede no momento que a gente sequer arrisque uma coisa diferente. Não tá bom do jeito que tá? Então para que mexer!

    Difícil prever por quanto tempo ainda viveremos dessa dieta de mediocridade - só ressaltado, o que é medíocre não é exatamente ruim: é médio, mas não tem brilho nenhum... é só legalzinho. Como a neblina perene no céu de Pequim, ela ameaça pairar sobre nossas cabeças por mais algumas temporadas. Mas eu tenho fé de que a essa altura, enquanto o "neomed" engana um punhado de gente, fazendo o normal passar por moderno, já tem algum artista - um músico, uma cantora, uma cineasta, um escritor, uma atriz, um comediante, uma apresentadora, um roteirista - pensando em alguma coisa bem diferente. E que então vai nos fazer lembrar que a mediocridade, mesmo apelidada de "neomed", em si nunca tem nada de novo. É só a boa e velha preguiça de criar e de inventar se disfarçando com uma roupa nova...

    O refrão nosso de cada dia: "Um jarro d'água", Marlene – não se assuste com o link que indico aqui: um "long play" completo de Marlene – uma de nossas grandes cantoras do rádio. Na verdade, esse é o primeiro disco dela, como a própria Marlene conta numa adorável introdução que felizmente sobreviveu nesse registro. Eu queria mesmo é que você ouvisse "Um jarro d'água" – sim, mais uma música de Assis Valente, meu homenageado da semana –, que é um comentário tão bem-humorado (e mordaz) sobre a falta de água no Rio de Janiero, provavelmente em meados dos anos 30, que não sei como ninguém ainda pegou para usá-lo nessa crise atual em São Paulo (que ameaça se alastrar pelo país). Se quiser só ouvir este sambinha, pule direto para os 14 minutos e 46 segundos – e vibre com versos como: "Passei a noite olhando o bico da torneira, tirei a roupa, botei tudo pra lavar / E até hoje neres de tupiniquim, minha roupa deu cupim, cadê água pra limpar?"; ou "A prefeitura me mandou um jarro d'água, e de joelhos agradeço esse favor / Com essa água lavei roupa das crianças, tomei banho, fiz a bóia e café pro meu amor". Ainda, vibre de alegria com o refrão: "E não convém organizar a batucada. A gente dança a gente cheira, não é sopa não!". Ah Assis... Bem, mas se quiser também, ouça todo o disco de Marlene cantando Assis Valente – que é um "primorrrrr" (imitando a cantora...).

    *Foto: Arquivo pessoal

  • Tipo vida. Só que não

    Boyhood
    Quando começamos a acompanhar a história de Mason, ele tem sete anos de idade - e parece um garoto americano normal. Passados 12 anos, quando nos despedimos dele - depois de quase três horas de filme - Mason parece também um garoto americano normal, só que agora com 18 anos. O que acontece entre esses dois limites foi registrado pelo diretor Richard Linklater em "Boyhood: da infância à juventude" - que, com um pouco de sorte, ainda sobrevive em cartaz ao ataque dos "blockbusters" de fim de ano ("Interestelar", "Jogos vorazes" e quejandos).

    É um trabalho impressionante, captado ao longo de mais de uma década - uma prova de o cinema ainda se presta a projetos épicos que não envolvam animação digital. "Boyhood", que foi sendo visto (e aplaudido) em festivais ao longo do último ano, chega em cada país que está estreando cheio de elogios e com uma bela expectativa. Quem não ficaria curioso para ver um trabalho desses? Eu mesmo ensaiei de conferi-lo em várias cidades por onde passei em 2014 - mas devido a sua duração, nunca sobrou tempo para que eu pudesse me dedicar a ele. Até que na semana passada consegui vê-lo aqui mesmo no Brasil.

    Minha própria excitação era alta. Sobretudo porque o foco é o desenvolvimento de um menino - um processo com o qual eu poderia me identificar muito bem -, saí de casa já praticamente gostando de "Boyhood". Sou "presa fácil" para esse tipo de narrativa. Leitores mais assíduos certamente se lembram de um texto que escrevi aqui mesmo neste espaço - talvez um dos meus favoritos  - sobre o filme "A árvore da vida", de Terrence Malick: entre tantas coisas que mexeram comigo nesse trabalho exuberante, a relação entre o pai (Brad Pitt) e seus três filhos enquanto eles estão crescendo é um de seus aspectos mais fascinantes. Assim, pensando que no projeto hercúleo de Linklater achei que ia encontrar uma trajetória semelhante - que pudesse jogar uma luz na minha própria história (e na de tantos outros espectadores).

    Toda essa antecipação, porém, acabou me fazendo esquecer de que o que eu estava prestes a assistir não era um documentário. Apesar de seu caráter de "reality" - que capta os atores numa evolução cronológica natural -, "Boyhood" é um trabalho de ficção, com um roteiro que era escrito - ou reescrito - praticamente a cada ano em que era filmado. Havia sim, pelo que li sobre o filme, um "arco" geral que o diretor queria mostrar. Mas a passagem de tempo e todos os acontecimentos em volta fizeram com que, inevitavelmente, esse roteiro fosse sendo adaptado. O que talvez tenha tornado todo o projeto ainda mais rico - mas de qualquer maneira, nem assim era possível esquecer que aquilo era um trabalho de ficção.

    "Boyhood" não tem uma história incrível, daquelas de reviravoltas, que faz a gente ficar grudado na cadeira. Mason sofre sim com as mazelas do destino: seus pais se separam (logo de início já somos informados que o personagem de Ethan Hawke - que conhecemos apenas por "pai" - saiu de casa); o segundo marido de sua mãe (Patricia Arquette) é um bêbado agressivo; há uma sombra de bullying no colégio; o silêncio da adolescência; a sensação de não pertencer; o desafio sexual dos colegas mais velhos etc. Mas tudo muito dentro do esperado - não há surpresas.

    E é justamente esta ausência que me fez pensar: será que eu estava gostando do filme porque estava assistindo a uma história que já conhecia - a de todos nós?

    O mérito de Linklater vai muito além da bravura do projeto de filmar durante 12 anos. Com pouquíssimos elementos dramáticos, ele é capaz de nos conectar com um garoto que está "simplesmente" crescendo. Não tem gente que se projeta nos super-heróis que vê na grande tela? Qual o problema então de fazer essa conexão com um personagem comum?

    Claro que a história de Mason não é tão simples assim a ponto de tornar-se desinteressante. Há um fascínio extra em acompanharmos um garoto crescer "diante dos nossos olhos" - as passagens de ano são assinaladas discretamente por diferentes cortes de cabelo. É como se a cada visual, a expectativa de que tudo mude na vida de Mason aumentasse. Mas nem toda vida é tão fascinante como as coisas que a gente vê no cinema... Num requintado exercício de ironia, Linklater parece estar nos desafiando: Quer uma biografia fascinante? Que tal a sua?

    Essa sensação de que estamos vendo a própria vida se desenrolar à nossa frente é um blefe. Como já assinalei acima, eu era obrigado a me lembrar constantemente de que aquilo era uma história escrita - que tinha uma interferência autoral. Nem por isso, eu deixei de aproveitá-la como se fosse documental. E, por isso mesmo, saí do cinema pensando nesse nosso fascínio atual pela vida dos outros.

    Livro Minha Luta 2 - um outro amorPotencializada hoje pelas redes sociais, parece que estamos cada vez mais encantados em ver a vida se desenrolar diante de nós, sem muito drama - ou melhor, com o simples drama do cotidiano. "Boyhood" é um sofisticado exemplo disso, assim como um livro que estou lendo agora - a segunda parte de uma saga de seis volumes que é uma sensação literária: "Minha luta 2 - um outro amor", do norueguês Karl Ove Knausgård.

    comentei aqui sobre o primeiro volume dessa obra monumental (mais de 6 mil páginas no total!): "A morte do pai". Com um tom que não é nem confessional nem documental - apenas transparente - Knausgård nos acostuma logo de cara a ler longas descrições (ou mesmo longos diálogos) onde pouca coisa acontece "dramaticamente". Naquele primeiro volume, onde somos apresentados à família do narrador e personagem principal - chamado Karl Ove -, a intimidade com que entramos na sua vida é instantânea. Sua memória escorre como a mais natural das narrativas, como se muitas vezes, fosse nosso próprio pensamento que estivesse no comando.

    Agora, em "Um outro amor", algumas coisas mudaram na vida do Karl Ove personagem - exatamente como mudaram na vida do autor Knausgård: ele sai de Oslo e vai morar em Estocolmo; despede-se do primeiro casamento e vê numa antiga paixão a possibilidade de um novo recomeço; torna-se pai; mesmo distante, problemas antigos com sua família voltam a aparecer. Mas tudo isso, como espera quem já se apaixonou por seu estilo desde o primeiro livro (eu!), vem naquele ritmo natural, de vida que passa.

    Por exemplo, veja esse parágrafo sobre um episódio que acontece depois que Karl Ove chega a Estocolmo:

    "No dia seguinte todo mundo se reuniu para jogar futebol, Ingmar Lemhagen arranjou uma bola para nós, a partida durou uma hora, e depois, quando me senti na grama ao lado de Linda, com uma Coca-Cola na mão, ela disse que eu andava como um jogador de futebol. Ela tinha um irmão que jogava futebol e hóquei e disse que nós dois parávamos de pé e caminhávamos mais ou menos do mesmo jeito. Mas é Arve, perguntou ela, você já viu como ele anda? Não, eu disse. Ele ainda anda como um bailarino. Com passos leves e etéreos. Você não percebeu? Não, eu disse, abrindo um sorriso para ela. Ela sorriu de volta para mim, se levantou. Estendi todo o meu corpo na grama e fiquei olhando para as nuvens brancas que deslizavam lentamente nas profundezas do céu."

    Nada demais, não é? Só que quando você lê isso, já está totalmente absorvido pela trajetória de Karl Ove - e se a cena descrita tem muita ação ou não, pouco importa. Quem nunca ficou "olhando para as nuvens brancas que deslizavam lentamente nas profundezas do céu"? Tão banal que chega a ser patético. Mas felizmente Knausgård tem o dom de transcender o ordinário e transformar isso em literatura.

    Como a vida de qualquer um, a de Karl Ove tem pequenas surpresas, reviravoltas e incidentes inesperados. Mas mesmo em situações assim, Knausgård não perde seu tom. Como neste outro parágrafo, que vem logo após ele testemunhar uma cena constrangedora em que o pai de Linda, seu amor reencontrado, a convida para que ela - então com 32 anos - venha sentar-se no seu colo. Toda a situação é de um enorme constrangimento. Mas Knausgård segue impávido nos contando tudo:

    "Dei alguns passos para trás, evitando que a situação se complicasse ainda mais para ela como uma testemunha. Quando Linda apareceu no corredor eu estava olhando para os quadros pendurados ao longo da parede. Ela vestiu o casaco. O pai veio se despedir de nós, ele me deu um abraço como na vez anterior, ficou olhando para Vanja no carrinho de bebê, deu um abraço em Linda, ficou parado na soleira da porta e nos seguiu com o olhar quando entramos no elevador com o carrinho, ergueu a mão uma última vez e fechou a porta atrás de si ao mesmo tempo em que a porta do elevador se fechou e nós começamos a descer."

    Estou exatamente neste momento do livro - ainda quero terminá-lo antes da grande viagem na qual vou embarcar na próxima semana (detalhes aqui na sexta-feira, lembrando que excepcionalmente nesta semana, você encontra um texto aqui por dia). E o maior indício de que fui "fisgado" novamente por Knausgård é que, mesmo sendo esse "tijolão" de 592 páginas, eu o levo comigo para todo o lugar - sempre encontro uma brecha para ler mais um pouquinho...

    O autor americano Jeffrey Eugenides ("Middlesex", entre outros) chamou o estilo de Knausgård de "autoficção" - uma curiosa variação sobre o tema "biografia". Se essa definição te parece estranha, é porque ela é mesmo nova. Ou melhor, escrever sobre episódios pessoas transformando-os em literatura está longe de ser novidade - como um artigo que li recentemente numa ótima nova revista literária online, Public Books, Charles Dickens fez exatamente isso em "David Copperfield". Mas o que Knausgård traz é um certo frescor ao gênero, e com isso nos ajuda a redescobrir como a vida ordinária pode ser interessante.

    Desde que, claro, você tenha - como Richard Linklater e Karl Ove Knausgård  - o dom de interferir nesse cotidiano, para apresentá-lo como arte. Tipo vida. Só que não.

    O refrão nosso de cada dia: "Uva de caminhão", Wanderléa - como disse acima, basta olhar para a vida para transformá-la em arte. Mas é preciso ter o dom... Com era o caso de Assis Valente - meu homenageado nesta seção nos posts desta semana. Valente era um "sambista cronista": o que estava acontecendo a sua volta virava música. Um de seus sambas mais conhecidos é "E o mundo não se acabou" - sobre um boato, em 1938, de que cometas se chocariam com a Terra. Na música que indiquei ontem, "Recenseamento", o assunto era o censo que Getúlio Vargas havia encomendado em 1940. Na canção que você vai encontrar aqui amanhã ele brinca, veja só, com a "falta d'água"... "Uva de caminhão" é bem mais prosaica: comenta o antigo hábito de vender uva a preços baixos em caminhões no meio da rua - e para isso, mistura nomes de samba bem populares da época ("Flauta de bambu", "Pensão da dona Estela") com imagens cotidianas deliciosamente "no sense". Muita gente conhece a versão de Carmem Miranda, mas aqui, sugiro "Uva de caminhão" na voz de Wanderléa - para deixar as coisas ainda mais absurdas...

    Fotos: Divulgação

  • O último CD que comprei na minha vida

    EurythmicsO primeiro CD que comprei na minha vida foi "Be yourself tonight", do Eurythmics. Era o ano de 1985 e, embora eu já tivesse visto vários títulos à venda nas vitrines da extinta HMV da Oxford Street, em Londres (de onde eu tinha voltado numa viagem recente), a oferta no Brasil ainda era limitada. Tanto de discos como de aparelhos, ou seja, os "tocadores de CD". Desconfio até que comprei as duas coisas juntas: o aparelho e o CD. O que me lembro bem é de chegar excitado em casa; desembrulhar a embalagem de acrílico transparente, que vinha envolta em uma película fina; encontrar aquele círculo reluzente, com informações básicas do que eu estava prestes a ouvir (seriam anos até alguém ousar estampar algo diferente naquela superfície); abrir a "gaveta" do tocador de CDs; colocar com extremo cuidado aquele objeto prateado no espaço perfurado (que permitia que o raio laser lesse os "zeros e uns" impressos em uma de suas camadas compactas); apertar a tecla para que a gaveta se fechasse; ouvir o robótico barulhinho de reconhecimento do que ali estava gravado - um rápido "zzziiit!" finalizado com "pfiu" desacelerando; e, enfim, ouvir a introdução costurada na guitarra de David Stewart e enriquecida de metais pesados, seguida de um coro de "soul" puro entoando o título da primeira música ("Would I lie to you?") e a voz de de Annie Lennox rasgando um "ahhhh-yeah"...

    Puro êxtase.

    Algo talvez inimaginável para uma geração que se acostumou a ter a música que quer na hora que quer – algo a ser festejado! – só que com a qualidade de uma "caixa de som" de um smartphone – algo a ser condenado. Críticas à tecnologia à parte (eu mesmo já me acostumei a carregar meu poderoso fone de ouvido para todo lugar para driblar a baixa qualidade de reprodução, mesmo dos telefones mais modernos), a própria acessibilidade da música hoje não permite que aqueles que foram criados já com a noção de que as canções não precisam de um objeto (CD, cassete, vinil) para serem consumidas imaginem o prazer que era colocar um novo CD para ouvir.

    Foram vários momento assim – e não só nos anos 80. Ao longo desses quase 30 anos, eu desenvolvi um ritual – talvez não muito diferente do de milhares, milhões, de fãs de música no mundo todo. Eu ia até uma loja de discos com uma vaga ideia do que queria comprar: recomendações de publicações especializadas, um ou outro nome que eu já havia escutado numa rádio, um novo trabalho de um artista que eu já conhecia etc. Mas sempre deixava espaço também para descobertas inusitadas: artistas totalmente desconhecidos, uma dica de alguém que trabalhasse na loja de discos, uma capa bem feita que me chamasse a atenção, um relançamento em CD de um álbum que eu só tinha em vinil.

    Com tudo isso na cabeça, entrava na loja já sabendo que eu não tinha hora para sair. Durante viagens internacionais, então, era notório o mal-estar de quem me acompanhava quando eu passava por uma delas: ele ou ela já sabiam que poderiam tomar outro rumo, e que nós só nos encontraríamos de noite – com possibilidade de eu me atrasar para o jantar.

    Com os CDs que eu tinha comprado na mão, quase sempre carregados por horas até que eu chegasse perto de um aparelho de som, a ansiedade de ouvi-los ia crescendo. Se eu estivesse parado em algum lugar – um transporte, uma sala de espera –, abria os discos um por um, e mesmo ainda sem poder escutar as faixas, divertia-me em examinar os livretos, capa e contracapa, o próprio "compact disc" – e ficava furioso quando o "pacote" não trazia mais informações do que a lista básica das faixas (ou às vezes nem isso, provocando uma frustração ainda maior).

    Se estava fora do Brasil, ainda seriam dias até que eu pudesse de fato aproveitar a música que tinha acabado de adquirir. Mas, uma vez em casa, essa era a recompensa que eu buscava assim que entrava na minha sala. Hesitava um pouco na hora de decidir qual deles eu deveria ouvir primeiro, mas quando finalmente escolhia um, ficava hipnotizado pelo som que saía das caixas – fosse bom ou ruim, já que essas avaliações eram secundárias diante de um ato tão nobre como a compra de um CD.

    No final dos anos 80, quando comecei a trabalhar como jornalista e já escrevia sobre música, as gravadoras ainda mandavam amostras de seus lançamentos em vinil. A migração para o CD foi lenta e, na época, como eu tinha um salário básico de iniciante, e os discos eram caros (mesmo hoje, é difícil encarar o preço de um CD como "acessível"), minha coleção foi crescendo a passos lentos.

    Bem lentos: em 1989, quando morava em Nova York, com dinheiro contado, fazia o maior esforço para guardar pelo menos dez dólares por semana só para poder ir à Tower Records da Broadway com a rua 4 e poder sair de lá com um CD. Vagar pelos seus dois andares, fuçando nas porosas seções de suas prateleiras ("oldies", jazz, "world music", lançamentos, soul, clássico, hip-hop, "europeu"...), era meu passatempo favorito. Depois, quando descobri as lojas independentes, como a Rebel Rebel Records (que, ironicamente ao contrário da mega Tower, sobrevive até hoje ali na Bleecker Street), tinha ainda mais motivos para me perder entre capas misteriosas e novidades inesperadas.

    Depois, veio meu período de MTV, quando a coleção deu uma natural deslanchada. Ganhava muitos CDs das gravadoras, sempre prontas para promoverem seus artistas. E comprava outros tantos – por aqui e por viagens. Certa vez em 1992, em Nova York, onde tinha ido fazer entrevistas com artistas da época, voltei com a impressionante quantidade de 114 CDs, todos comprimidos no espaço de uma mala de mão, que eu carregava nos ombros disfarçando o seu peso. Tudo isso só para não "correr o risco" de despachar como bagagem normal e ver meus preciosos disquinhos extraviados sei lá para onde (será que eu era paranoico?).

    Com a frequência de viagens internacionais aumentando, diminuía a quantidade de CDs adquiridos em cada uma delas. O que não mudou, porém, era o compromisso de passar por lojas de músicas – sempre com uma lista já pré-organizada – e procurar por coisas que eu queria muito ouvir. E o tesão de, como "nos velhos tempos", chegar em casa e colocar aquilo para tocar.

    Nos últimos dez anos, com a facilidade da música virtual, passei a comprar cada vez menos CDs. Nunca, como já me defendi aqui mesmo neste espaço, mergulhei na pirataria pesada, mas diante da possibilidade de ouvir algo novo sem ter que depender de uma visita a uma loja de discos, confesso que às vezes caí em tentação. Além disso, as primeiras lojas virtuais – mesmo a primeira versão do iTunes – estavam longe de terem a oferta de álbuns e artistas que existe hoje. Ou, quando tinham alguma coisa que eu estava interessado, ela não podia ser vendida no "mercado brasileiro". Então era como se eu não tivesse opção...

    Mas elas foram melhorando e, digamos, de dois anos para cá, eu parei de fazer listas do que eu queria comprar quando visitasse uma loja no exterior – a Other Music, em Nova York; a Sister Ray, em Londres; ou mesmo a Fnac em Paris. Eu sempre deixava para passar nesses endereços na última hora, pegava as coisas mais óbvias e contava com a sorte e o acaso para descobrir preciosidades.

    Até que neste ano de 2014, eu comecei a levar a sério o que antes era uma brincadeira esporádica: comprar álbuns em lojas virtuais, que eram baixados diretamente no meu smartphone. Até abril deste ano, eu só tinha quatro artistas na minha "coleção digital": dois EPs do Beck; Arcade Fire; Belle and Sebastian; e (estranhamente) as quatro últimas canções de Strauss, na voz de Jessye Norman. Agora, já são 53 álbuns – todos baixados legalmente – e mais um punhado de singles. Como o de artistas que sequer chegaram a lançar um disco, mas já estão fazendo coisas interessantes o suficiente para despertar minha curiosidade – exemplo: Raury, com seu "God's whisper" (experimente!).

    Todo aquele ritual que descrevi acima – e com o qual que sobrevivi durante anos – de repente parou de fazer sentido. Dei-me conta de que entre eu receber uma "newsletter" de uma publicação musical me apresentando novos artistas e a possibilidade de eu escutá-los, a única coisa que eu precisava fazer era dar um par de cliques. Para que esperar uma viagem, "perder" tempo numa loja, ir até o caixa, carregar aqueles CDs até me casa, só para escutar um punhado de músicas novas, quando eu posso fazer isso da poltrona da minha casa?

    Na última viagem internacional que fiz, semanas atrás, para entrevistar o U2, aconteceu, então, o que eu jamais poderia esperar: voltei sem um CD na bagagem. E isso porque a entrevista tinha sido em Londres! Como era possível isso? Bem, não tive vontade de compra nada. Aliás, explico melhor: as bandas e os artistas sobre os quais tinha lido boas coisas durante a viagem – Teleman, Perfume Genius, Helado Negro, George Erza, Fredo Viola – eu "comprei" ali mesmo no hotel onde eu estava hospedado, usando o wi-fi que era cortesia da casa...

    Annie LennoxSó não consegui comprar, mesmo virtualmente, um disco que queria muito, pois ele estava em pré-venda. Assim, ansioso que estava para ouvi-lo, encomendei o álbum numa loja virtual, no formato CD mesmo – e ele chegou para mim na semana passada. E este foi o último CD que comprei na minha vida: "Nostalgia", de Annie Lennox. Uma escolha que, digamos, fecha um ciclo: se comecei minha coleção com Eurythmics, nada mais apropriado que fechá-la com o trabalho mais recente da cantora desta banda. E não estou nem levando em conta o título do trabalho...

    Como um requinte de crueldade, estou adiando a audição de "Nostalgia". Ele ainda está intacto na embalagem que veio, mas ainda quero escutá-lo antes da grande viagem na qual eu embarco a partir deste domingo – mais detalhes até o fim desta semana (só lembrando, você vai encontrar um post por dia aqui até esta sexta-feira). De qualquer maneira, sei que vai ser uma cerimônia simbólica que vou tentar fazer com a mesma pompa e circunstância que usei quando ouvi pela primeira vez aquela cópia de "Be yourself tonight".

    Porém, mesmo com todo esse discurso, não posso garantir que será de fato o último CD que comprarei. O acaso sempre pode me empurrar para dentro de uma loja tentadora em Bangcoc, em Istambul, sei lá onde. Não vou me privar de uma experiência dessas só porque já dei publicamente meu adeus ao formato. Mas se isso acontecer, estarei ciente de que encerrei uma era.

    O que nunca se acaba, no entanto, é a paixão pela música. E sobre essa, você vai sempre poder se atualizar aqui comigo.

    O refrão nosso de cada dia: "Recenseamento", Ademilde Fonseca, para esta semana especial, em que você vai encontrar um post aqui todo dia, preparei também um "evento" para esta seção. Como expliquei rapidamente ontem, encontrei um CD duplo de tributo a Assis Valente, um dos melhores e mais divertidos compositores que já tivemos. E resolvi indicar uma música dele por dia para você. Hoje vamos de "Recenseamento", que prova que Valente, além de outras coisas, era mestre da crônica social. Tem a ver, claro, com um recenseamento feito no Rio em 1940 – e em cima disso ele faz uma letra preciosa que, dentro do seu repertório, eu acho que só é superara por "Uva de caminhão". Não lembrava direito dessa canção, e quando ouvi seus versos caí na alegria. Dois exemplos: "E quando viu minha mão sem aliança encarou para a criança que no chão dormia / E perguntou se meu moreno era decente, e se era do batente ou era da folia"; "Fiquei pensando e comecei a descrever tudo tudo de valor que o Brasil me deu / Um céu azul, um Pão de Açúcar sem farelo, um pano verde e amarelo - tudo isso é meu". UM PÃO DE AÇÚCAR SEM FARELO!!!! Sensacional!!!! Espere pela faixa de amanhã...

    *Imagens: Reprodução

  • Adnet - uma vítima dos blogs agoniza em praça pública

    Marcelo Adnet"A história se repete, primeiro como tragédia, depois como farsa". Quando escreveu isso, Karl Marx referia-se à diferença entre dois "Bonapartes" – Napoleão e seu sobrinho Luís Napoleão (Napoleão III) –, num contexto tão sofisticado que eu precisaria de incontáveis parágrafos aqui para descrevê-lo propriamente. No entanto, a famosa frase de Marx provou-se uma daquelas sabedorias universais, possíveis de serem usadas em múltiplas situações, em eras diversas, em contextos dos mais variados. Por isso, foi exatamente esta frase que me veio à memória quando vi, recentemente, o "affair Adnet" se multiplicar como um fungo maldito na internet desde a última sexta-feira (7).

    Para a decepção de alguns leitores que talvez tenham parado aqui por conta de uma pesquisa menos apurada sobre o assunto, lamento informar que não vou aqui julgar o caso em si – e por vários motivos. Primeiro porque sou admirador do humorista Marcelo Adnet muito antes de nos tornarmos colegas na mesma emissora. (Os mais apressados imediatamente vão julgar que este é um post que escrevo com uma arma na minha cabeça, apontada pela direção da TV onde eu trabalho, para ajudar na "defesa" de Adnet – como ele precisasse disso... A esses eu recomendo que economizem sua bile na hora de escrever um comentário deslocado; e que, depois, leiam também outro post aqui mesmo neste blog, com o título "Sou obrigado, por contrato, a falar bem de 'Tá no ar'").

    Segundo, porque pelo contato profissional tornei-me um amigo casual, a quem respeito. Terceiro, porque qualquer especulação sobre os desdobramentos das fotos "comprometedoras" feitas na semana passada, além de ser estupidamente oportunista, não tem a menor consequência num problema que só pode ser resolvido na intimidade dos envolvidos. E quarto, porque eu simplesmente não tenho nada a ver com isso – aliás, nem você, mas eu divago...

    O episódio é "fascinante" para mim, como fenômeno de cultura pop. Ao escrever isso, não estou dizendo que as fotos que expuseram uma infidelidade de uma pessoa muito conhecida, e que atingiu níveis de indignação dignos da Inglaterra vitoriana (às vezes me pergunto se evoluímos mesmo como sociedade de lá para cá, mas eu divago de novo a menos de um parágrafo desde a última vez, e isso é grave!). Enfim, ao olhar para o que aconteceu como um "fenômeno pop" não estou levianamente abstraindo que isso não tem repercussões em (pelo menos) três vidas muito reais, que desde a semana passada foram devastadas de maneira também muito real. Mas é que esses detalhes realmente não me interessam – e uma discussão que vá por este caminho certamente não cabe neste espaço.

    Olhando então sob a ótica da cultura de massa – ah, a "loucura das massas", como diria Charles Mackay –, o que me chamou a atenção foi, mais uma vez, a banalização de um desfortúnio pessoal, sobretudo a maneira em que foi usada como combustível de um escárnio coletivo.

    Este não é um tema inédito, nem mesmo por aqui. Minha própria estreia no G1, oito anos atrás, foi sobre um vídeo "escandaloso" com Daniela Cicarelli. Em 2008, ainda na "infância" deste blog, escrevi sobre a confusão entre Ronaldo Fenômeno e alguém chamado Andréia Albertini, com o nada sutil título de "Admita: você também adora odiar uma celebridade". Alguns anos depois, em 2012, quando um oportunista (e aparentemente chantagista) vazou fotos íntimas de Carolina Dieckmann na internet, roubadas do arquivo pessoal da atriz, voltei a falar sobre a linha cada vez mais tênue entre vida privada e vida pública, num texto chamado"Rindo sozinho". Linha essa que pareceu-me então totalmente abolida quando, semanas atrás, Viviane Araújo teve de se defender publicamente de supostas imagens suas que "viraram viral" ("Envelheço na cidade"). Confesso que sou fascinado por essa discussão – e o que aconteceu com Adnet (e, por conseguinte, com sua mulher Dani Calabresa, uma comediante não menos sensacional do que ele) nos oferece outra oportunidade de falar sobre isso.

    Se você me acompanhou até aqui é porque talvez esteja ligado no que aconteceu com Adnet. Se esse não for o caso, aviso novamente que não serei o seu melhor "fofoqueiro" para te atualizar nos detalhes deste "episódio sórdido" (em tempo, as aspas indicam ironia). Para se informar sobre isso, qualquer pesquisa com o nome de Adnet nos últimos quatro dias vai te trazer uma primeira página repleta de links sobre a "transgressão" (aspas, lembra?). Vá, dê um Google. Eu mesmo fiz isso – não vou condenar ninguém.

    O ato em si – a própria curiosidade – não me incomoda. Como se diz lá "no Portugal", é da "p'soa"! Mas a voracidade com que as pessoas gravitam sobre o assunto, e em especial a maldade com que elas comentam sobre o ocorrido, me fez lembrar de uma antiga chamada de capa da revista "Veja", 25 anos atrás. Lia-se nela: "Cazuza - uma vítima de Aids agoniza em praça pública".

    Para quem não era nem nascido na época – boa parte dos leitores que passam por aqui (e maioria dos fãs de Adnet) – fica difícil explicar o impacto que tal manchete causou. No próprio site da revista, numa página dedicada a 40 anos de grandes reportagens, lê-se que "poucas capas de VEJA despertaram reações tão viscerais", e justifica que sua "crueza" ajudou para que "o país se conscientizasse da necessidade de discutir o problema da Aids sem rodeios". Cazuza, sua família, seus amigos e fãs ficaram revoltados e se manifestaram publicamente – num episódio que ecoa até hoje, como quem foi assistir ao musical sobre o ídolo, ainda em cartaz, pode conferir.

    Na época, 1989, a polêmica foi a pedra de toque para uma discussão séria e importante sobre os tais limites entre o público e o privado; sobre a relação entre jornalistas e seus entrevistados (um livro que eu havia lido recentemente, em Nova York, onde então morava, tinha me provocado exatamente nessa questão – "O jornalista e o assassino", de Janet Malcolm, publicado aqui pela Companhia das Letras); sobre a relação entre os ídolos e seus fãs; sobre as consequências que notícias fortes têm nas vidas das pessoas envolvidas (quase sempre desastrosas).

    Não havia internet ainda – pelo menos não como a conhecemos –, mas falava-se sobre isso com colegas e amigos por telefone, em eventuais conversas pessoais (morava em outro país, só lembrando), e até naquele meio que poucos lançam mão hoje em dia e que gerações inteiras talvez desconheçam: cartas! Minha lembrança é de debates "apaixonados", dedos na cara, conflitos "mortais" entre "o certo e o errado" e uma promessa de que isso tudo nos levaria a uma relação melhor, mais humana e mais saudável entre celebridades, notícias sobre elas, e o grande público. Preciso ressaltar que a promessa não se cumpriu?

    Pelo contrário, o que vemos hoje – e o "caso Adnet" nos dá mais uma prova disso – é uma preocupação minguante com as consequências da discussão da vida alheia. Os "dedos na cara" agora vêm embebidos em veneno, e a intenção nunca é elevar o patamar da discussão, mas afundar mais e mais na baixaria. Mais grave ainda, ninguém está exatamente preocupado em refletir sobre o que está acontecendo: o que todo mundo quer é rir do que estão comentando. Ou seja, se um dia essa dualidade serviu para expor uma questão trágica do nosso cotidiano contemporâneo, hoje ela só existe como função cômica.

    Se eu mesmo não tivesse imposto limites tão claros para o uso de palavrões neste blog, seria mais fácil – e "moderno" – descrever a atitude atual. Eu escreveria: "Foda-se a celebridade! Foda-se a vida pública! Foda-se a ideia de que o próprio ato que estou condenando poderia acontecer comigo também (se é que já não aconteceu)! Foda-se quem tá na boca do povo! Quer ser famoso, tem que se fuder! Foda-se todo mundo!". Mas eu não posso escrever isso...

    E tudo isso é "muito engraçado". Novamente, a tragédia virou farsa. Se, na época da manchete com Cazuza, a questão era forte, hoje é banal. E a banalidade não está só em quem comenta, mas também em quem divulga. Em tempos de Face & Twitter (reforçando, não uso nenhuma dessas redes sociais, nem Instagram; se você me segue em alguma delas, está sendo enganado por alguém), "fonte e mensageiro" se confundem, estou ciente disso. Mas ainda é possível saber quem escreve esta ou aquela "notinha" (hoje, sinônimo de notícia) – ele ou ela, pelo menos, sabem quem são. E tolamente se orgulham disso.

    Téo Pereira, o adoravelmente ridículo personagem saído do universo afiado (e afinado) de Agnaldo Silva para "Império", não ganhou um destaque ao longo da trama da novela à toa. Como um dos melhores observadores da vida cotidiana que temos hoje na nossa teledramaturgia, o autor captou a onipresença dessa nova encarnação do "jornalista" e colocou o seu papel em discussão. Téo busca inimigos por motivos ora frugais ora pessoais. Mas seu exercício da informação é movido apenas por vaidade. E, como todo vaidoso, ele não entende que, no fim do dia, é ele, e não suas vítimas, o motivo de riso.

    Sei que estou exagerando ao comparar esses blogs – e a maneira como a informação se espalha nesses nossos tempos – a uma "praga" como a Aids. O diagnóstico que, na alegoria daquela manchete, fazia um ídolo agonizar em praça pública, era (e ainda é) algo muito mais sério do que a esse nosso fenômeno de (des)comunicação – ninguém questiona isso. Mas só a possibilidade dessa analogia existir, já reforça a ideia de que, quando a história se repete, ela não vem como tragédia, mas como farsa.

    Como ando um pouco à margem das redes sociais, acompanho apenas perifericamente essas euforias histéricas sobre a vida dos outros – nossa herança vitoriana, como já assinalei. Mas soube, em conversa informal num almoço de domingo, que a atriz Letícia Sabatella respondeu com humor e inteligência no seu Facebook a uma campanha de difamação que tentaram fazer com ela. O "enquadrameto" que as notinhas que pipocaram depois que foram divulgadas fotos suas deitadas numa calçada depois de alguns copos a mais numa noite de diversão tomou um "passa fora" quando ela mesma garantiu o direito de rir de si mesma.

    Adnet não pode se dar a esse luxo. As fotos divulgadas da sua noitada o jogaram numa situação bem mais difícil, e trouxeram impasses bem mais sérios com os quais ele certamente está lidando esses dias. A farsa a que me refiro no início do texto de hoje não é a sua, mas a de todos que ficam sobrevoando a sua volta, tentando jogar sombra em alguém que sempre foi fonte de luz. Como no caso de Carolina Dieckmann, que muita gente já praticamente nem se lembra mais, depois de dois anos (o equivalente a dois séculos na velocidade da internet), suspeito de que aqueles que acham que estão se aproveitando disso vão acabar rindo sozinhos.

    Em breve, a banda vai escolher outra música para tocar. Outros ídolos vão agonizar em praça pública. E toda a gente segue conectada, achando que a vida dos outros é bem mais legal de viver do que a dela mesma...

    O refrão nosso de cada dia: "Deixa isso pra lá", canta Ciro Monteiro, como você vai entender ao longo da semana (isso mesmo, aguarde um novo post amanhã mesmo). Resolvi fazer uma homenagem a Assis Valente, de quem matei saudades este fim de semana ouvindo um CD duplo esquecido na minha estante. Vou falar de seus sucessos – "Camisa listrada", "Brasil pandeiro" –, mas também de composições bem menos conhecidas, como esta que destaco hoje. E não sem motivo. A letra, como sempre genial, é uma súplica para que a mulher amada (Guiomar) não preste atenção nas fofocas e volte para o homem que a ama. "Deixa isso pra lá, Guiomar / Que só querem fazer desunião / Essa gente gente só gosta de falar / Essa gente não tem coração", canta Ciro Monteiro logo na abertura. Ouvi isso e achei que tinha tudo a ver com o que convidei você para ler hoje aqui neste post. E vou seguir em frente com Assis, acreditando que a batalha contra a ignorância não está nem perto de terminar, mas como ele mesmo nos ensinou em sambas impecáveis (compostos há mais de sessenta, setenta anos!), esta é uma briga que vale a pena entrar. Se possível, com humor. "Quem tem boca fala o que quer, quem gosta de mexido é colher"...

    *Foto: Reprodução/GloboNews

  • Por que ler um livro de 719 páginas?

    O PintassilgoVamos começar com um argumento bem básico: porque você talvez nunca tenha lido um livro de 719 páginas. O volume, para uma geração que se comunica em emojis (outro dia, lendo sobre a participação de Bibi Ferreira - 92 anos e inspirada! - no programa "Roda Viva", fiquei imaginando como seria pedir para ela se expressar só com esses símbolos, mas sei que divago já no primeiro parágrafo, e isso depois de ficar quase duas semanas sem escrever nada aqui, o que é um evidente mau sinal...) - enfim, o ameaçador tijolo de 719 páginas é uma espécie de campanha do balde de gelo, sem a conscientização da doença que a provocou.

    Seria mais tentador, para essa mesma geração, se eu dissesse que o conteúdo do livro equivale a algo como 14.740 tweets? Considerando que um usuário devoto da rede social lê, digamos, uns 300 tweets por dia (como não usuário do Twitter - também não tenho Facebook nem Instagram oficial, é bom lembrar - posso estar exagerando na estimativa), ele "mataria" o volume em uns 50 dias, menos de dois meses! E as recompensas seriam enormes, garanto!

    Não falo, claro, da recompensa imediata - o duvidoso prazer de saber que alguém chamou outro alguém de vagabundo (estou, claro, amenizando a linguagem que geralmente é usada nessa rede social de mensagens de no máximo 140 toques), ou que a amiga da sua amiga faz o melhor cupcake do mundo. Mas tenho em mente o prazer de ver uma história se desenrolar na nossa imaginação, graças aos frutos inesgotáveis da criatividade humana.

    Não estou falando que não existem perfis criativos no Twitter - alguns que chegam até mim, por exemplo, via insistentes campanhas de amigos ou apenas conhecidos em grupos de WhatsApp são até espirituosos (ainda que, em termos de espertas associações de ideias, as piadas que recebia na época da Copa - lembra da Copa? - eram bem mais engraçadas). Mas eu tenho que acreditar que nossa capacidade intelectual - e aqui não uso a expressão como algo que define um pensamento excludente e elitizado, mas simplesmente uma capacidade do nosso cérebro - chegou até aqui para que trocássemos, entre nós, narrativas ligeiramente mais consistentes do que meros tuítes.

    As 719 páginas em questão compõem a edição brasileira de "O pintassilgo", de Donna Tartt (lançado aqui no Brasil pela Companhia das Letras). Para quem tem no mínimo uma queda por livros, sua chegada às nossas prateleiras, há algumas semanas, é um acontecimento. Afinal, Tartt é a autora que, no início dos anos 90, no trouxe uma obra definidora daquela época - seu excelente romance de estreia, "A história secreta" (também lançado aqui pela Companhia das Letras). Os fãs - que sobreviveram a seu (às vezes deslumbrante, às vezes enfadonho) segundo trabalho "O amigo de infância" (Companhia também) - já estavam impacientes de esperar mais de duas décadas pelo retorno da escritora à boa forma. E quando, em abril deste ano, "O pintassilgo" (que saiu nos Estados Unidos no final do ano passado) ganhou o prêmio Pulitzer 2014 como melhor trabalho de literatura, a coroação estava completa.

    Eu mesmo, em nome da transparência, devo me declarar um fã de seu trabalho. Ansioso que estava por sua chegada, fiquei tentando em ler este trabalho recente em inglês ("The goldfinch"), mas a exaustiva experiência de encarar seu trabalho anterior no original me afastou da ideia. Esperei pela tradução (assinada por Sara Grünhagen) e fico feliz em informar que, mesmo em português, a voz do protagonista adolescente (e depois jovem) Theo Decker não perde nada do seu frescor.

    Em "O pintassilgo", o leitor é levado tão prontamente pela história, que só centenas de páginas adiante é que percebe que parte dessa sedução deve-se à mundanidade poética da linguagem usada - como, por exemplo, a opção por usar sempre "pra" (e mesmo "pro") no lugar de "para" (e "para o") em todo o texto. Uma decisão no mínimo curiosa uma vez que, em inglês, não consigo imaginar como isso estaria sugerido, uma vez que as ocorrências da preposição no original ("to", "for" etc.) já são coloquiais o bastante - mas eu divago novamente, e mal consegui avançar nas razões que queria expor aqui hoje para se ler um livro de 719 páginas...

    Escrevi há pouco que o protagonista da história é Theo, mas eu talvez tenha cometido uma injustiça. Tartt, na sua engenhosa trama, talvez tenha usado o garoto apenas como desculpa alinhavar um arco maior em torno não de uma pessoa, mas de um quadro. É ele o "Pintassilgo", uma pequena pintura feita pelo holandês Carel Fabritius (aluno de Rembrandt, e provável influência de Vermeer) em meados do século 17, que, na ficção, está "visitando" o Metropolitan Museum de Nova York (na verdade, a tela reside no museu Mauritshuis, em Haia, na Holanda). Theo e sua mãe, fugindo da chuva, a caminho de uma reunião no colégio, estão admirando a exposição que tem o quadro como destaque, quando um ataque terrorista destrói várias galerias e parte das obras nelas penduradas. E também mata a mãe de Theo - então, com 13 anos.

    Tentando entender o que aconteceu, o menino vaga pelos escombros e conversa com um senhor prestes a morrer - que lhe dá um anel, o nome de uma loja para entregá-lo ("Toque a campainha verde"), e sugere que ele "salve" o "Pintassilgo". Theo, atordoado, obedece a tudo - e vai para casa com a obra de arte, esperar sua mãe chegar depois de toda a confusão. Só que sua mãe não chega - e assim começa a aventura mais "dickensiana" que você já leu nos últimos tempos.

    Custo a acreditar que levei tanto tempo para citar Dickens. Na maior parte das resenhas sobre "O pintassilgo", isso acontece logo nas primeiras linhas - e com razão. O venerado autor vitoriano ("Oliver Twist", "David Copperfield", "A pequena Dorrit", para citar apenas alguns de seus clássicos) é uma inspiração assumida de Tartt - e se a inteção era homenageá-lo, ou mesmo simplesmente provar que é possível escrever uma história "dickensiana" nos dias de hoje, eu diria que ela se superou nessa tarefa.

    Entre outras façanhas - o Pulitzer, mais de um milhão e meio de cópias vendidas no merdado americano -, Tartt dividiu a crítica literária nos Estados Unidos. Em meio a rasgados elogios, uma turma liderada por ninguém menos que James Wood (da "The New Yorker"), por quem tenho infinita admiração, acusa a autora de exagerar nas coincidências para escrever um livro banal, que beira o pastiche (nas palavras de Wood, Tartt tem o talento de quem escreve para crianças). Mesmo reconhecendo alguns desses exageros (as dificuldades de comunicação entre os personagens, por exemplos, num mundo tão conectado como o nosso, são bastante improváveis), acho um problema menor diante do vulto do desafio que a própria Tartt se impôs. E no qual se saiu de maneira brilhante.

    Percebo porém que estou falando generalidades. Os argumentos que expus até aqui, você pode encontrar melhor ou pior apresentados em qualquer texto sobre o livro. Mas o que eu queria mesmo é dar motivos "concretos" para você encarar "O pintassilgo", tentar encantar você como Donna Tartt me encantou: com elementos de uma história muito, mas muito bem contada. Assim, recomeço com a mesma pergunta que fiz acima: por que ler um livro de 719 páginas? Abaixo, algumas respostas:

    Porque antes mesmo da centésima página, depois de ser oficializado "órfão" (ninguém consegue encontrar seu pai), Theo se divide entre a saudade da mãe, a rica família (os Barbour) de seu melhor amigo (Andy) que o adotou, e as injustiças que sofre na escola - tudo muito "Dickens", claro.

    Porque quando seu pai finalmente aparece, com a hilária namorada Xandra, e leva Theo para morar com ele num desolado canto de Las Vegas - esqueça os cassinos feéricos, sua casa (o cenário mais forte que formei na minha mente ao longo do livro) é um fim de mundo à beira do deserto - é possível sentir ainda mais pena do pequeno órfão.

    Porque é lá em Las Vegas mesmo que Theo fica amigo de Boris - o mais perdido e fascinante personagem da enorme galeria que Tartt apresenta em "Pintassilgo", que vai apresentá-lo para o mundo do álcool e das drogas, transformar a sua vida, e ensinar ao "protagonista" que a única coisa que realmente importa na vida é a amizade.

    Porque depois de escapar de Vegas - fugindo de mais algumas circunstâncias trágicas da sua biografia - Theo volta, depois de uma improvável e rocambolesca viagem de ônibus, para Nova York e se aboleta com o dono do estabelecimento (um antiquário) para onde o senhor que ele conheceu (e viu morrer) na explosão do museu o mandou ir, descobrindo assim não só uma profissão, mas um jeito nada lícito de enriquecer.

    Porque é nessa casa que ele alimenta sua paixão por uma menina ruiva, Pippa, que ele viu junto com o senhor que morreu (era sua sobrinha) e, em encontros esporádicos, experimenta pequenas redenções de seu coração desorientado.

    Porque não só Boris, que tinha ficado para trás em Las Vegas, volta a aparecer na sua vida, mas vários dos personagens reaparecem, depois da metade do livro - considerando que você conseguiu chegar à página 360 com o mesmo entusiasmo do início da leitura - e fazem com que Theo se lembre (e que nós também nos lembremos) de que nada nessa vida é sem consequência.

    Porque o "Pintassilgo", sempre que é lembrado, surge como um alerta de moral e de beleza, de lembrança e de salvação - até que, já nas últimas 200 páginas, ele vira "de fato" o pivô da história, transformando um livro num inesperado romance policial, transportando o leitor não só para boas cenas de ação, mas também para uma Amsterdã chuvosa e triste na véspera do Natal (a mesma cidade onde Theo escolhe para abrir sua história nas primeiras páginas, onde, relendo depois, é possível detectar várias pistas do que viria a seguir...).

    Porque Dickens mesmo, sutilmente, só é mencionado na página 522 - e aparece com uma elegância que reforça a homenagem que a própria autora está fazendo a ele.

    Porque a cada guinada que a história dá - e eu enumerei apenas algumas delas acima, para não cutucar de perto a "brigada do spoiler" - você se sente não desanimado de enfrentar mais uma dezena de páginas, mas estimulado por não acreditar que Tartt conseguiu (novamente) sequestrar sua atenção.

    Porque, na página 706, Hobie (o restaurador sócio do antiquário) dá essa explicação: "Se uma pintura realmente afeta e muda sua maneira de ver, de pensar, de sentir, você não pensa 'Ah, eu amo essa pintura porque ela é universal. Eu amo essa pintura porque ela fala a toda humanidade.' Não é por isso que alguém ama uma obra de arte. É um sussurro secreto vindo de um beco. Psst, você. Eu, garoto. Sim, você."

    Porque no discurso final, quando Theo nos explica a razão de ter resolvido escrever sua história, a autora ainda te consegue fazer chorar, e você fica ligeiramente indignado de perceber que se entregou de maneira tão fiel a sua narrativa, apenas para levar aquela punhalada de emoção nas duas últimas páginas, literalmente - mundo injusto...

    Porque no último parágrafo (e isso não é um "spoiler", juro), Tartt usa a voz de Theo para escrever: "E, no meio do nosso morrer, enquanto saímos do orgânico e afundamos ignominiosamente de volta nele, é uma glória e um privilégio amar o que a Morte não toca".

    Diante disso, todas as 719 páginas não pesam no nosso ombro mais que um folhetim. Em compensação, as lembranças de tudo que você amou - e que a Morte nunca vai tocar -, os livros, as pinturas, os filmes, as músicas, os lugares, e até mesmo seus amores (os eternos), ganha um peso muito maior do que você jamais imaginou. E é isso que te move.

    O refrão nosso de cada dia:"Habits (stay high)", Tove Lo - com 28 milhões de acessos (só no YouTube), estou ciente de que não estou aqui exatamente apresentando uma novidade. Mas a sueca Tove Lo, virtualmente desconhecida até estourar com esse sucesso, fez simplesmente a melhor música pop do ano - desbancando, em termos de originalidade (veja o clipe até o fim para reforçar este ponto) todo pelotão de vozes femininas que reinou nos últimos anos - de Kate Perry a Beyoncé - mas que tem apresentado, com todo o respeito, mais do mesmo. "Habits" é não só estupidamente original como irremediavelmente viciante.

Autores

  • Zeca Camargo

    Mineiro de Uberaba, o apresentador do ‘Fantástico’ começou a carreira no jornal ‘Folha de S. Paulo’, participou da primeira turma da MTV no Brasil e foi editor da revista “Capricho”.

Sobre a página

Em seu blog, Zeca Camargo transita pelo universo da cultura e discute músicas, filmes e exposições.