• Como começar falando de Woody Allen e terminar com VMA's (passando por "Breaking bad")

    Novo filme de Woody Allen - Homem Irracional

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     


    Até os últimos três, talvez quatro minutos de "Homem irracional" eu estava adorando este último trabalho de Woody Allen. Afinal, ele carrega a mensagem básica que o diretor coloca em seus melhores filmes - de "Poderosa Afrodite" a "Crimes e pecados", passando por "O sonho de Cassandra" e, sobretudo "Match point". Que mensagem é essa? A de que se as pessoas não ficam sabendo de um determinado evento, ele praticamente não aconteceu.

    Porém, no finalzinho do filme, eu passei a gostar ainda mais! O diretor - de maneira inédita, pelo menos para mim (e olha que sou seguidor assíduo de todos seus filmes) - muda essa regra. E, de uma maneira que não posso nem ousar contar aqui para não estragar seu prazer de assistir a "Homem irracional", a história tem um final surpreendente. Não apenas como uma "virada de roteiro" - que em inglês geralmente aparece como "plot twist" - mas uma "virada" na própria maneira como o diretor vê o mundo. Tudo sempre por conta do acaso...

    Falar sobre o que vem antes no filme, porém, não entrega muita coisa. Joaquim Phoenix faz o papel de um professor de filosofia, Abe, que é uma espécie de superstar. Imagino que conceber um personagem desses por aqui é um ato de fantasia mais surreal do que criar um garoto de quatro cabeças alado - mas acredite: num universo onde as pessoas pensam e querem aprender a pensar mais, isto é, no circuito universitário, tal criatura não apenas é possível como tem credibilidade.
     
    A chegada de Abe no campus é aguardada com ansiedade - e um certo pé atrás. Sua fama é de um pensador liberal, que inclusive vê com certo desprezo o papel da própria filosofia no nosso dia-a-dia. Mas, mais interessante ainda, o professor também é conhecido como um grande conquistador. O que já faz com que os hormônios de alunas e professoras comecem a se descontrolar.
     
    No time das professoras, Rita (Parker Posey num surpreendente renascimento) faz a mulher de quase 50 anos que quer testar seu decrescente poder de sedução - que já não segura nem mesmo seu casamento - com Abe.

    As primeiras tentativas - obstruídas pela impotência "psicológica" do professor - não são um impedimento para ela. Mas Rita enfrenta concorrência pesada de uma aluna de Abe, Jill, vivida por Emma Stone - que é, já no segundo filme com o diretor, sua nova musa (algo que este espectador só tem a aprovar - fui só eu que achei que a única coisa boa de "Birdman" é aquela cena em que ela esculacha com seu pai, interpretado por Michael Keaton, ou será que eu divago?). Sendo um homem de mais de 40 anos, o personagem de Phoenix não decepciona: cai como presa fácil na direção da opção mais jovem.
     
    Essa trama, mais que surrada - mesmo na filmografia de Woody Allen - é, porém, só um pano de fundo. É num encontro com Jill que, por acaso numa lanchonete, os dois ouvem uma conversa que muda o destino de Abe. Não quero contar muito, mas vamos falar aqui, só para o texto poder seguir fazendo um mínimo de sentido, que o professor descobre uma coisa errada que ele acha que pode transformá-la em certa.

    Usando sua filosofia distorcida, ele crê que, se cometer um crime, pode mudar a vida de uma pessoa que ele nem conhece para melhor - e isso, apenas isso, já justificaria sua existência na Terra. Falando em ética e moralidade...
     
    Allen mais uma vez tem o dom de nos conduzir por pensamentos grandes com histórias do nosso cotidiano - e só por isso o filme já é um primor de entretenimento (especialmente para um espectador que, como eu, está cansado de ver tramas que não fazem sentido na tela grande). Mas dessa vez, melhor ainda que em, como já citei, "Match point", um crime (mesmo cometido em segredo) nunca é exatamente perfeito. Vivemos à mercê do acaso, tolos, sempre achando que nossas decisões são as coisas mais importantes deste mundo...
     
    Somos, na verdade, uns coitados - quase trouxas - achando sempre que somos donos das nossas ações. E, pior, como o professor parece comprovar, temos a prepotência de achar que podemos mudar, com uma atitude nossa, a vida dos outros. Só que não.
     
    O tal final inesperado de "Homem irracional" - alias, título perfeito (traduzido literalmente do original) para um perfil de alguém que tem certeza de que é superior - não apenas nos pega de surpresa. Ele também nos recoloca no mundo, retoma a nossa insignificância e reforça a ideia de que crime e castigo nem sempre andam juntos. Quem manda sempre é mesmo o acaso. Pergunte a Walter White.
     
    Na mesma semana em que vi "Homem irracional", terminei as longas cinco temporada da série que tirou do sério boa parte das pessoas cujo gosto - e juízo - eu respeito. Lamento informar, porém, que o mesmo não aconteceu comigo. Não é uma série ruim - que fique bem claro que não me arrependo nem um pouco de tê-la conferido, ainda que atrasado (levei uns bons dois meses para completar a tarefa - ao contrário de meus amigos que viravam noites sem dormir por não parar de conseguir ver, sentia apenas uma curiosidade branda a cada episodio).
     
    Também não ouso dizer que é uma série mal escrita - ainda mais quando temos como referência uma produção nacional tão carente deste talento. Mas, talvez pelo "hype" - mais de um conhecido meu não conseguia discutir "Breaking bad" sem hiperventilar! - ou por pura teimosia, acompanhei tudo com um certo olhar rabugento. Que ficou, reforço, plenamente satisfeito com a conclusão da série. Mas que também se aborreceu bastante com longos momentos em que toda a trama parecia se arrastar.Breaking Bad’

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     


    Como em toda a primeira temporada, por exemplo, quando a sensação que eu tinha era a de que eu estava vendo o mesmo episódio inúmeras vezes. Ok, eu concordo com o argumento de que, para o personagem entrar em você, é preciso que ele cresça num processo lento assim... Mas o problema é que não me encantei com Walter White logo de cara - e, sendo assim, não "comprei por inteiro" sua saga.

    Ele é chatíssimo - e irracional de uma maneira que faz Abe, de Woody Allen, parecer uma obra-prima cartesiana. A justificativa para a escalada de suas loucuras - a família - vai ficando cada vez mais absurda, e só se torna honesta mesmo no último diálogo que vemos de Walt com sua mulher Skylar. Nesse desgaste, fui me decepcionando aos poucos, com minha vontade de seguir em frente mantida por um punhado de excelentes episódios - sobretudo na terceira temporada.
     
    A quinta, onde o protagonista perde totalmente a cabeça, começa como farsa, e é "manchada" por mais coincidências do que o próprio Woody Allen se permitiria num roteiro - e só fica realmente empolgante nos últimos seis episódios, quando Walt está muito próximo de ser capturado (para quem não sabe de nada da série, ele é um professor de química que descobre que tem câncer e que pode fazer uma pequena fortuna no final de sua vida produzindo a metanfetamina mais pura que o mercado já conheceu). O saldo, porém, é positivo - se não inspirador. Afinal, tudo isso é "show business", uma negócio que os americanos elevaram à categoria de arte.
     
    Miley Cyrus durante performance no MTV Video Music Awards

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    O que nos leva então à festa de ontem à noite do Video Music Awards 2015, transmitido ao vivo pela internet. "That's entertainment"! Se você não acompanhou integralmente, pode pelo menos pegar alguns dos melhores momentos no site da MTV americana - e ver com seus próprios olhos como uma festa deve ser feita. Não estou provocando nenhuma premiação nacional, mas sim todas as outras, mesmo as americanas. O que vi ali, foram mais de duas horas de puro entretenimento - não só nos efeitos, cenários e iluminação feéricas, mas na própria inteligência do roteiro, das situações que ele criava, e na ousadia geral.
     
    Podia começar com a cartada mais fácil: Miley Cyrus, que era a mestre de cerimônias (uma em si bizarra e maravilhosa) tirando uma selfie e pedindo para todo mundo que queria sair na foto dizer "marijuana" (maconha) bem alto na hora de sorrir. Quer provocar alguém? Não conheço pontapé inicial melhor. Mas a festa toda teve vários momentos inspirados - muitos deles escritos pelos roteiristas e outros de pura espontaneidade, graças ao talento e à inteligência de artistas convidados. Prova disso: o discurso de Kanye West que terminava com ele lançando sua candidatura para a presidência dos Estados Unidos em 2020.
     
    Você consegue imaginar um artista como os que conhecemos aqui, comportadinho, interessado apenas em encher uma plateia, provocar as próprias pessoas que foram lá para vê-las? A palavra de ordem no nosso pop é fazer direitinho para ganhar dinheiro e não causar muita confusão. Não é à toa que nossas paradas estão do jeito que estão...
     
    Vamos virar uma ou duas gerações até conhecermos uma maluca como Nicki Minaj - ou ver uma artista do porte de Miley (guardadas as proporções para o território nacional) entrar no palco com um corpo de baile só de drag queens numa festa que tem a dimensão do VMA's...
     
    Estou, claro, um pouco desanimado com tudo que vejo e leio e ouço e sinto. Está na cara. Mas quem sabe não estamos diante de uma grande virada cultural - não no relógio, mas nas nossas mentes. Ou isso - ou eu viro logo um homem irracional... Já ouviu aquela expressão: "Ignorance is a bliss"?

    (FOTOS: No topo, cena de 'Homem Irracional' - CRÉDITO: Divulgação / No meio, cena de Breaking Bad - CRÉDITO: Divulgação / No fim da página, Miley Cyrus durante performance no MTV Video Music Awards - CRÉDITO: Matt Sayles/Invision/AP)

  • Pare o que estiver fazendo e vá ler o novo livro de Marcelo Rubens Paiva

    Passamos por um longo hiato - e, de repente, tanta coisa boa para escrever. Ontem fui à pré-estreia do novo filme de Woody Allen, "Homem irracional" (uma espécie de biografia alternativa de todos nós), que é tão genial que eu queria ter escrito sobre ele ontem mesmo, tarde na noite quando cheguei em casa. Na música, uma estranha coincidência fez com que eu ouvisse, na mesma semana, os novos álbuns de Emicida e de Dr. Dre - e meus dedos já começaram a tamborilar... Na TV, entusiasmei-me com "O Hipnotizador" e estou começando a gostar de "Show me a hero". Mas mesmo diante de assuntos tão suculentos, acho que temos que estabelecer prioridades - e a minha agora é te convencer a ler "Ainda estou aqui", o livro mais recente de Marcelo Rubens Paiva.O pai de Marcelo, Rubens Paiva foi morto durante a ditadura

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    Não será uma tarefa árdua, uma vez que o trabalho já é elogiado por todo mundo que cruza com ele. Raras vezes vi um "boca a boca" tão forte - e, como sabemos bem, essa é a melhor "rede social" quando queremos divulgar algum produto cultural. Tal fenômeno aliás nem deveria ser recebido com tanto espanto. Ao longo de mais de três décadas, Marcelo colecionou um público cativo, fruto de um romance de estreia estupendo que praticamente marcou uma geração - se não duas (ou três).
     
    Falo, claro, de "Feliz ano velho", livro de 1982 - uma brutal biografia relâmpago, de uma juventude interrompida por um acidente que, em 1979, que deixaria Marcelo tetraplégico. Curiosamente, porém, essa tragédia pessoal, que sempre emociona, não é o único elemento de sucesso do livro. Com uma franqueza às vezes chocante, ele nos leva à cena universitária daquele período, ao seu envolvimento com movimentos políticos estudantis - um talvez inevitável desdobramento da história de seu pai, preso e assassinado pela ditadura militar em 1971 (outro enredo paralelo bem explorado nas suas páginas) -, e sobretudo é um guia emocional para uma geração que estava saindo de uma repressão política e substituindo modelos de família que não cabiam mais no Brasil.
     
    Tudo isso ressoou forte com a moçada dos anos 80. Fenômeno de vendas, "Feliz ano velho" catapultou Paiva para um patamar de autor admirado. O livro foi adaptado espertamente para o cinema, sob a direção de Roberto Gervitz, e ainda ganhou uma aclamada montagem teatral "histórica", com Lilia Cabral, Paulo Betti e Marcos Frota no elenco. Eu mesmo fui conferir mais de uma vez...
     
    A onda "Feliz ano velho" foi tão forte que criou uma enorme expectativa: a de que Marcelo continuasse sua saga no livro seguinte. Saudavelmente teimoso, ele veio, muitos anos depois, com uma ficção chamada "Blecaute". Os fãs estranharam - muitos elogiaram. Mas Marcelo foi em frente, na sua missão velada de provocar com as letras - algo raro naquela década, ainda mais raro hoje em dia. Seguiu na sua missão de escrever segundo apenas seu próprio instinto. Até que...
     
    Eu ia escrever "até que finalmente ele achou que seria hora de publicar uma continuação do seu livro de estreia" - mas se fizesse isso, estaria cometendo uma injustiça. "Ainda estou aqui", o volume que acaba de sair pela Alfaguara, é menos um "Feliz ano velho - parte 2" do que um revigorante olhar sobre a mesma geração com quem ele havia estabelecido diálogo mais de trinta anos atrás, com uma nova variável: sua mãe, de quem ele empresta a frase para o título da obra, está com Alzheimer.
     
    Assim como seu acidente de 1979, a doença da mãe é um evento trágico de onde Marcelo parte para fazer inúmeras observações sobre sua vida - e sobre nossa vida. Além disso, munido de bem mais informações sobre a atrocidade que a repressão do nossos governantes de então impôs sobre seu pai - e sobre toda sua família - somos expostos a bastidores ainda mais constrangedores e sórdidos do nosso cenário político dos anos 70.
     
    O toque de mestre de Marcelo, no entanto, é transformar esses momentos grotescos em uma narrativa não apenas lúcida como acessível. Com uma fluência invejável, o escritor divide seus problemas pessoas com o leitor, jamais para se colocar como vítima, mas para convidar para uma reflexão sobre a vida, o amor, a família - e essa praga que se abateu tanto tempo sobre nosso país: a ditadura militar. Seu tom nunca é de rancor. Talvez de leve indignação. Mas a ideia não é chocar - é dialogar. Uma sábia proposta de quem aprendeu com a paciência dos anos que olhar para a vida com revolta só gera mais ignorância - e que o melhor caminho para tudo é sempre o da investigação (seja pessoal ou universal), o da pergunta e o da resposta.
     
    Escrevendo assim, talvez eu passe a impressão de que "Ainda estou aqui" não é um livro emocionante. Se fiz você achar isso, aqui vai um trecho para derrubar essa ideia, um parágrafo já quase no final, quando o Alzheimer da sua mãe já está em estágio bem avançado:

    "No entanto, enquanto seu raciocínio está confuso, ela pega minha mão esquerda, mais fechada que a direita, e abre com carinho, dedo a dedo, para alongá-la. Como faz há trinta e cinco anos, desde os primeiros dias em que viu numa UTI paralisado. Seguindo uma recomendação da fisioterapeuta: alongar sempre que der a mão do filho tetraplégico, para não atrofiá-la. Um instinto materno poderoso atravessa o choque e o caos em que vive, e ela faz aquilo que rotineiramente foi parte da vida, cuida do filho."
     
    O tempo em "Ainda estou aqui" é elástico. Marcelo abre com o relato (quase cômico) do dia em que legalmente passou a ser responsável por sua mãe - já que a doença estava interferindo demais no seu poder de decisão. Vem para o presente em emocionantes registros de sua relativamente recente paternidade. Volta ao Rio de Janeiro da sua infância privilegiada. Passeia pelas incertezas e descobertas dessa fase da vida. Apresenta o pai primeiro como tal - o homem que é tudo na vida de uma criança - e depois como figura política. Avança para seu acidente quase casualmente (raras são as vezes onde sua paralisia é mencionada nas mais de 250 páginas), mas tudo é sempre para fazer um pano de fundo para a trajetória fulgurante de sua mãe.
     
    Eunice Paiva não é um exemplo de relação afetiva "mãe e filho". Num divertido capítulo, "Mãe-protocolo", Marcelo define com poesia dura o relacionamento entre eles:
     
    "Minha mãe era assim: não me deu uma dura por engravidar a namorada, me deu uma força para resolver o problema. Minha mãe não era minha amiga. Não saíamos juntos. Não bebíamos ou fumávamos juntos. Eu não falava pra ela do que eu vi e vivi. Era minha mãe."
     
    No entanto, é essa mãe que sai adorada de todas as histórias que Marcelo conta no livro. E como não admirá-la? Criou o autor e suas quatro irmãs enfrentando dificuldades - principalmente emocionais - inimagináveis para o brasileiro comum de hoje (suas dificuldades legais, bem descritas por Marcelo, por não ter um marido "oficialmente morto" são surreais!). Reinventou-se como profissional, como mulher - até como mãe. E, acima de tudo, serviu de inspiração para um livro maravilhoso.
     
    Aos poucos, lendo "Ainda estou aqui", fui percebendo como estamos longe do Brasil que Marcelo descreve no livro. Não apenas na política - vivemos um momento de crise ideológica, mas nada que se compare às trevas daquela época. O Brasil do qual Marcelo nos faz sentir saudades é aquele que tem, em seus jovens, alguma coisa para dizer.
     
    Quatro anos nos separam - Marcelo é de 1959, eu sou de 1963 - mas acho que posso falar em nome da "nossa" geração. Vivemos, nesses nossos cinquenta e poucos anos, uma abundância de referências culturais, de vozes criativas que mexiam com nossa cabeça e nossos corações. E, mais importante que isso, essas eram as mensagens que dominavam nossa vida, nossa comunicação - rádios, programas de TV, cinema, jornais e revistas.
     
    Não havia internet na nossa juventude, claro, mas não faltavam ideias e provocações. E como gostávamos de ser provocados e de provocar! Aliás, ainda gostamos - é por isso que fico tão maluco quando vejo-me diante de tantas coisas legais para escrever, como citei logo no primeiro parágrafo do texto de hoje. E é só por isso que nos decepcionamos diante de uma geração que insiste em gostar da mesma coisa, de músicas que não dizem nada, de modelos culturais que só reforçam os limites de sua fragilidade.
     
    "Ainda estou aqui" é oposto de tudo isso. É pura inteligência, sensibilidade e provocação. É também um livro - um artefato meio fora de moda, e imensamente menos popular do que twitter, que com seus 140 caracteres (se é que tem gente que usa "tudo isso" para expressar sua infelicidade e projetar sua bile hoje em dia). Mas é exatamente um livro como esse que faz a diferença.
     
    É um livro como esse que alguém lê aqui, recomenda para uma amiga ali, que passa para um colega lá, que discute com sua classe mais adiante, que leva para suas casas novas ideias. E de repente, quando a gente nem percebe, estamos todos pensando de um jeito diferente.
     
    Se hoje tudo parece muito medíocre, basta lembrar que o mundo muda sempre. E muda por causa de coisas como as que Marcelo Rubens Paiva escreve.Ainda estou aqui, de Marcelo Rubens Paiva

     

    (FOTO: Marcelo Rubens Paiva CRÉDITO: FLÁVIO MORAES/G1)

  • Por que é tão difícil fazer rir?

    Uma rápida olhada nas programações da TV aberta - e sobretudo nas atrações dos canais a cabo - nos faz crer que estamos na "era de ouro" da comédia televisiva no Brasil, tamanha a oferta de novos programas e novos talentos do riso que os estrelam. Mas será que estamos rindo disso tudo?
     
    Estamos certamente precisando de mais humor nas nossas vidas - especialmente quando olhamos em volta e encontramos uma realidade que nos convida a chorar... Essa profusão de novos programas, que tenho conferido com regularidade, é bem-vinda - e tem um timing perfeito. A pergunta importante a ser feita, porém, é se essa farta seleção está indo de encontro às expectativas de quem precisa urgentemente de alívio para um cotidiano pesado...
     
    Nós brasileiros, que sempre nos orgulhamos de viver num país tão bem-humorado, que adora estampar um sorriso no rosto, muitas vezes temos dificuldades em traduzir isso na arte de fazer humor - especialmente na comunicação de massa. Não é tarefa simples. Uma piada que você conta na mesa de um bar, entre amigos, nem sempre funciona quando você fala com o grande público. Mesmo aquilo que é testado e aprovado em um palco - e nossos teatros andam animados com tantos artistas de "stand up" pipocando por todo o Brasil - nem sempre sobrevivem a transição para a televisão. Qual o segredo de fazer rir na telinha?
     
    As primeiras pessoas para quem eu faria essa pergunta são, claro, Marcelo Adnet e Marcius Mehlem - responsáveis pela maior revolução recente no humor televisivo, com seu "Tá no ar" (que mexeu positivamente até com o novo "Zorra", que leva também a assinatura de Mehlem). As respostas que eles dariam estão nos próprios programas que fazem, nos esquetes que gravam, nas piadas que contam.
     
    O "pulo do gato" desse novo humor que eles inauguraram foi ter apontado o humor para a própria TV, além de terem se livrado de um surrado tripé que sustentou por décadas o humor que ela exibia: piadas com 1) mulheres burras; 2) homens "cornos"; 3) estereótipos homossexuais - quando não a combinação de mais de um deles, ou mesmo os três juntos. Resquícios disso existem até hoje - e são, lamentavelmente, o maior obstáculo de boa parte das novas atrações que ironicamente pretendem "renovar" o humor na TV. Mas o sucesso de "Tá no ar" aponta para uma alternativa, quem sabe, mais interessante.
    Marcelo Adnet e Marcius Melhem em esquete de 'Tá no Ar'

    Como já foi, por exemplo, o escárnio de celebridades e pessoas que estão na mídia - hoje um conceito tão velho e desgastado que sequer alavancar uma audiência. Essa estratégia - que, desde o início tinha vida curta (quantas vezes você pode pintar alguém famoso de idiota e ainda parecer que está apresentando algo diferente?) - reinou no início deste século, mas já deixa gosto de comida vencida, com o público respondendo a isso com a indiferença de quem ouve uma piada cujo final é conhecido. A tendência é, como é possível notar, perder cada vez mais espectadores.
     
    Por onde ir então nessa árdua tarefa de fazer um telespectador rir?
     
    Não são poucos os programas e artistas que olham para a TV americana como inspiração. O sucesso de apresentadores como Jimmy Fallon (gênio) ou Jimmy Kimmel (um gênio menor) - para citar duas fontes nem sempre disfarçadas de vários modelos de apresentadores no Brasil - é uma ótima referência, não fosse por um detalhe: a simples reprodução do modelo de alguém que abre um talk show contando piadas esconde as verdadeiras razões do sucesso de Fallon & Kimmel (entre outros) - que são 1) a inteligência dos apresentadores (nem sempre presente em quem simplesmente reproduz a fórmula); 2) mais importante ainda, uma equipe de redatores excelente, não só afiada na ironia, mas também antenada com o que está acontecendo no mundo a sua volta, e com uma inteligência capaz de desafiar a da própria estrela para quem escreve. Ah! Vale a pena falar também que essa equipe de redação sabe ouvir críticas e tem a sabedoria de voltar para a página em branco quando o resto do grupo não acha a menor graça no que um deles escreveu.
     
    O que nos leva ao ponto crucial pra gente tentar responder à pergunta que fiz no título do post de hoje: tudo começa num bom texto.
     
    A maioria dos programas de humor que fracassam parecem desconhecer a importância dessa "matéria-prima". Em mais de um exemplo que pode ser garimpado hoje em dia numa zapeada casual, parece que o ponto de partida para um programa de humor é a capacidade do ator ou atriz principal fazer uma careta. A gente gosta muito disso sim - de Mazzaropi a Lady Kate, aprendemos muito a rir com essas caricaturas. Mas ter isso como ponto de partida é receita de fracasso: vamos rir no primeiro episódio - ou talvez no primeiro bloco do primeiro episódio. Mas e depois?
     
    Depois, é melhor você ter um bom texto. Não exatamente boas piadas - elas funcionam também "até a página 15", mas quando você está desenvolvendo um roteiro de meia-hora (ou, para ser preciso, de 23 minutos, que é tempo de produção padrão de um sitcom), é preciso mais do que um punhado de gracinhas para tudo fazer sentido. É preciso texto, ideias, argumentos - enfim, é preciso inteligência.
     
    Para reforçar minha defesa do bom texto, trago aqui uma prova irrefutável de que, quando tudo isso que citei na última frase está jogo e bem azeitado, a coisa funciona: "Connection lost", o décimo-sexto episódio da sexta temporada de "Modern family". No que diz respeito a escrever comédia para TV, isso para mim é uma obra-prima - você consegue encontrar isso sem dificuldade na internet.
     
    Claro que só parei para elaborar isso depois que vi o episódio pela terceira vez. Na primeira - assisti na casa de uma amiga minha quando estava hospedado com ela em Miami - mal consegui ver tudo: fiquei provavelmente metade do episódio de olhos fechados, rindo - e não apenas da piada, mas da sequência absurda dos eventos que iam se desenrolando. A segunda vez que vi "Connection lost" - logo depois da primeira - foi para ver a outra metade que eu não tinha conseguido prestar atenção enquanto eu estava rindo. Semanas depois, em visita ao Brasil, esta minha amiga - que trabalha com TV aqui e lá nos Estados Unidos - trouxe-me um DVD promocional que eles distribuíram, e que eu assisti novamente... e cheguei à conclusão de que é sim um trabalho de gênio!
     
    Resumindo muito brevemente o que acontece no episódio, Claire (a premiada Julie Bowen) está "presa" no aeroporto de Chicago - e resolve chamar o marido Phil (o também premiado Ty Burrel) para saber como estão as coisas em casa. As confusões começam quando ela percebe que sua filha mais velha não está por ali e, para piorar um pouco as coisas, ela (a filha) mudou o status do seu Facebook de "solteira" para "casada". Detalhe: todo o episódio se passa na tela do laptop de Claire!
     
    Isso mesmo: a história toda é contada nas janelas - de redes sociais, de ferramentas de buscas, de lojas virtuais, de aplicativos de localização, de balões de conversa - que se abrem no computador de Claire enquanto ela está em O'Hare. Se a premissa parece ser bem aborrecida - geralmente, quando uma tela de computador ou mesmo de smartphone aparece na televisão nossa tendência é rejeitar a informação que ela traz -, "Connection lost" parece ter conseguido o impossível: trazer a dinâmica da vida real para uma tela de cristal líquido.
     
    No lugar de repetir a mesma piada - Claire está conversando no FaceTime -, os roteiristas extrapolaram sua criatividade e usaram todas as ferramentas mais conhecidas da internet (de Wikipédia aos sites conhecidos de compra) para buscar, no próprio imaginário popular, elementos de identificação que pudessem provocar o riso.
     
    Por exemplo, quando Claire fala com seu irmão Mitchell (Jesse Taylor Ferguson) para ter notícias de sua filha e ele pergunta se ela está ligando porque tinha lembrado esquecido do seu aniversário, Claire nega o esquecimento - e diz que já mandou um presente, ao mesmo tempo em que escolhe alguma coisa para ele no site de uma loja de roupas. Ou ainda, quando sua filha Haley (Sarah Hyland) aparece e pergunta como a mãe dela entrou no seu Face (já que ela a havia recusado como amiga virtual), Claire responde que usou um nome falso - e a filha desabafa horrorizada: "Meu Deus, eu ando jogando Candy Crush com minha mãe!". E toda vez que Claire conecta com seu pai, Jay (Ed O'Neil), ele, como o membro mais velho da família, nunca sabe direito "mexer com aquilo" - aparece sempre fora de foco, fora da tela, fora de si!
     
    Tudo é brilhante - e brilhantemente escrito. "Connection lost" - que recebeu no Imdb a maior pontuação da história do sitcom (9,3) - é a prova de que é possível sim fazer humor de novas maneiras. O fato de um episódio original como esse ser o destaque da sexta temporada do programa, quando a maioria desses sitcoms começam a dar sinais de cansaço, só reforça seu mérito. Que é, desculpe, insistir, mais uma vez o mérito do texto. Ou ainda do texto inteligente - de uma equipe que senta numa sala e só sai não quando tem piadas suficientes para preencher vinte e poucos minutos de show, mas quando tem piadas engraçadas para preencher esse tempo, e ainda jogar algumas fora porque não estão cabendo naquele episódio.
     
    E esse é um processo que só se faz com tentativa e erro, com humildade de perceber que nem tudo que você fala é "super divertido", que nem a careta mais engraçada do mundo salva uma piada previsível.
     
    E quem diz isso não sou só eu não. Posso talvez ter elaborado um pouco demais aqui sobre algo que deve ser tão intuitivo quanto a arte de contar piadas. Mas no final, o veredicto é sempre dele - do público que queremos fazer rir. São eles que dão o retorno maior sobre esse trabalho difícil - que no final, sempre se traduz em números de aprovação.
     
    Pensando justamente neles, pergunto para terminar: tem alguém aí rindo?

    (FOTO: Marcelo Adnet e Marcius Melhem em esquete de 'Tá no Ar'. CRÉDITO: Arquivo/Globo/Alex Carvalho)

  • Saindo da geladeira

    Por mais que isso me envergonhe, tenho de confessar que estou atrasado com algumas séries de TV. Por exemplo, ao mesmo tempo que consegui ver "Sense8" assim que saiu, estou enrolando com a terceira temporada de "Orange is the new black"; nem peguei ainda a primeira de "True detective"; e - pior dos pecados! - só resolvi encarar "Breaking bad" recentemente.
     
    Como estou no sexto episódio da última temporada - e já passei por momentos de extrema excitação, massagem à inteligência, pura enrolação, ódio à estupidez de Walter White, suspense absoluto e inexplicável indiferença (o que todo mundo viu de tão legal naquele "da mosca"?) - ainda vou levar um tempo para escrever sobre isso aqui. Quero escrever, aliás - muito! Mas cito a série hoje aqui não para falar de TV, mas de música.
     
    A certa altura da quarta temporada, quando Mike resolve levar Jesse para "passear" (aos que ainda não colocaram "Breaking bad" na sua vida, não se preocupem - é apenas uma citação ilustrativa), a trilha sonora das imagens deles viajando pelas estradas desertas no estado americano de Novo México me chamou a atenção. Um estranho "sample" com uma data incompleta cantada em espanhol ("mil novecientos setenta y...") tomou conta de todo meu sistema auditivo e me fez pular do sofá. Fui correndo atrás do smartphone pedir para o Shazam me ajudar (falo, claro, do aplicativo que identifica - quase - qualquer trecho de música.)
     
    E lá estava a canção que tinha mexido inesperadamente comigo: Ana Tijoux cantando, claro, "1977". Do pouco que pesquisei ali na hora na internet - com o "Breakig bad" em "pause" - descobri, para a minha surpresa, que ela não é naturalmente mexicana, mas franco-chilena. Gravou no México sim - inclusive com uma cantora que eu adoro, Julieta Venegas. Mas o que mais gostei era justamente dessa sua história misturada, que certamente a influenciou a pegar referências de vários lugares - como aliás é possível ouvir no seu álbum que baixei (que tem o mesmo nome da faixa que gostei, "1977").
     
    O que aconteceu depois disso foi uma daquelas histórias que você, que já está acostumado com a dinâmica dos "causos" que conto aqui neste espaço, conhece bem. Deixei o "Breaking bad" de lado (só retomei no dia seguinte), e fui procurar, cutucado por Ana Tijoux, um CD de uma cantora que eu não ouvia há um tempão para ouvir. A ligação entre as duas era tênue: tanto Tijoux quanto essa cantora (e compositora) - que já falo quem é - têm essa origem mesclada, que deixam inevitáveis marcas em seu trabalho. Sempre positivas.
     
    Na bagunça das minhas estantes, não achei nenhum CD de Lhasa - a tal cantora que procurava (e que já homenageei aqui mesmo neste blog quando soube da sua morte). Americana, ela foi criada no México e viveu no Canadá e na França. Cantava e compunha em inglês, francês e espanhol - brilhantemente nas três línguas, sempre com uma tristeza contagiante. Gosto tanto de Lhasa (até hoje), que minha tentação era falar mais sobre ela agora - mas acho que o texto do link acima já dá uma boa ideia da minha devoção.
     
    Até porque nosso assunto de hoje não termina nessa minha procura frustrada pelos discos de Lhasa (que eu ainda não passei, acredite, para meu arquivo digital). Pelo contrário, ela começa por aí! Revirando pilhas e fileiras de CDs - lembrando que a minha coleção "analógica" ainda tem pouco mais de dois mil títulos - acabei encontrando coisas inacreditáveis: discos que estavam absolutamente esquecidos nas prateleiras! Artistas, músicas, álbuns inteiros que ouvi uma época quase sem parar - e que guardei na boa fé de que um dia voltaria a eles. Sem dúvidas! Bem, faço aqui um "mea culpa": alguns estavam esquecidos ali há mais de década!
     
    Ligeiramente fascinado por essas (re)descobertas, fui separando-as numa pilha, no intuito genuíno de ouvir a tudo aquilo novamente - um pouco por nostalgia e um pouco por pura indignação. No caso, comigo mesmo. Como eu poderia ter esquecido, colocado na geladeira, tanta música boa - e em alguns casos excelentes?
     
    Como já era tarde da noite, se eu fosse de fato ouvir aquilo tudo, eu só terminaria no dia seguinte - e olhe lá! Mas escutei um pouco de tudo, e matei as saudades. Mais do que isso, reforcei a lembrança de como já se fez música boa no pop - e como eu já me diverti com tanta diversidade de sons. Ter tirado esses CDs da geladeira só prova que a gente às vezes inconscientemente manda para lá coisas muito boas que, num determinado espaço de tempo, não têm como aparecer. Resolvi então reparar isso. E, como sempre, dividir com vocês.
     
    Tenho quase certeza de que não falei de nenhum desses trabalho ainda aqui com você - mesmo nos quase nove anos de existência deste blog! Mesmo assim, serei breve nas descrições de cada trabalho - menos por economia de texto (você sabe que eu tenho problemas com isso, eheh) do que para deixar que essa descoberta (ou, se for como no meu caso, redescoberta) seja o mais espontânea possível.
     
    São discos de várias épocas que, como disse, foram escolhidos por acaso - totalmente. Coloco eles aqui sem ordem de preferência. Foi um prazer - que agora compartilho com você. Não se trata de uma daquelas listas de meio de ano que estão na moda agora - o que aconteceu com as pessoas que agora não esperam mais dezembro para saber dos melhores lançamentos dos últimos doze meses? Já viu o que está saindo de lista de "melhores livros, discos, filmes... até agora"?
     
    Bem, divago - e é sempre melhor divagar com música. Tire também esses artistas e suas músicas da geladeira. Você vai ver como vale a pena...
     
    Reachin

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     


    "Reachin' (a new refutation of time & space)", Digable Planets - desconsidere o título mega pretensioso. Para não falar do tolo nome da banda. Em 1993, o que havia de mais "cool" no rap americano era essa promessa de de jazz nas músicas (que já chegava um pouco atrasada do outro lado do Atlântico). Mas funcionava, tudo bem. E funciona até hoje. Esse foi o primeiro que escutei da pilha - e nem lembrava qual faixa era o sucesso do álbum, "Rebirth of cool (slick like that)". Acabei gostando mais de coisas que nem registrei ter ouvido, como "What cool breezes do" e "Femme fetale" (sim, eles eram ruins de títulos!). Nota interessante: um dos componentes do trio, que tinha também uma mulher, era Ishmael Butler - que hoje segue trabalhando com o excelente Shabazz Palaces.
     
    It's Jo And Danny

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    "Lank haired girl to beraded boy", It's Jo And Danny - por falar em nomes estúpidos... Mas novamente, isso é relevante diante dessa muralha de sons que essa dupla inglesa trouxe lá pelo ano de 2000. A maioria das músicas começa de um jeito simples, quase repetitivo. Mas vai crescendo de um jeito que parece que tá tocando dentro da sua caixa toráxica! Meio folk, meio psicodélico - mas esqueça os rótulos. Quando você chegar à faixa 8 ("Pilgrim's prayer"), já vai estar tão em transe que o que você menos quer é entender o que está ouvindo. Simplesmente embarque. Ou, como eles dizem nessa letra: "deixem o mar e céu se encontrarem"...
     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     "La candela viva", Toto La Momposina Y sus Tambores - você sabia que Peter Gabriel já teve um selo só para divulgar o que gostava de "world music"? Felizmente esta expressão ficou tão datada que nem faz sentido mais usá-la. Mas lá por 1993, ela ainda fazia algum sentido - e foi por isso que eu conheci a colombiana Totó. Comprava quase tudo que o Real World (o selo de Gabriel) lançava - e ficava literalmente viajando nos seus sons. Totó, com seus tambores e cantos hipnóticos, estava completamente esquecida... Uma injustiça que corrigi na mesma hora: este é um dos CDs que ouvi por inteiro naquela "madrugada de descobertas"... Quero ver você também resistir a essas batidas!
     
    Covering

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    "Covering them", R.E.M. - às vezes as coisas "obscuras" vêm de referências muito próximas. Eu nem sei como esse CD veio parara na minha coleção - é um "bootleg", ou "pirata", de 1994, lançado na Itália! Mas acho que o comprei porque queria uma nova versão da versão da banda para "Love is all around"... Já nem me lembro mais. Veio muita coisa boa junto! Covers de Lou Reed ("Sweet Jane", "Femme Fatale"), Stones ("Paint it black"), Iggy e Bowie ("Funtime"), e até uma inesperada "California dreamin' " (o clássico de Mamas & The Papas). Esse nem deu para ouvir tudo - tenho que retomar.
     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    "Happy families", Blancmange - poucos discos da minha coleção são mais estranhos do que esse. E poucos são tão bons. Começo dos anos 80. Pense em Depeche Mode e Soft Cell. Blancmange - uma dupla britânica eletrônica - poderia estar lá, lado a lado com eles. E esteve. Mas por uma dessas injustiças que só o pop consegue produzir, eles não entraram na história como essas outras bandas. Fiquei passado quando descobri que eles reapareceram em 2014, com uma nova versão desse álbum, "Blancmange too..." - que vou baixar assim que terminar de escrever isso aqui. Tanta coisa boa, "Living on the ceiling", "Waves", "Feel me", "Sad day" - e a (desculpe) inexplicável "I can't explain"...
     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    "Agora", Bojo e Maria Alcina - acho que esse é o único disco de Maria Alcina que eu tenho. Não lembro de ter comprado nada nos anos 70, quando ela surgiu com sua voz estonteante. Porém, neste mundo de "ultradisponibilidade" virtual, achei um monte de coisa boa dela - inclusive um com o hilário título de "De normal bastam os outros" - que vou baixar já já. Mas naquela madrugada, ouvi esse encontro inusitado entre ela e Bojo - e que foi feito no céu em 2003. Um toque de moderno ("Kataflan") e um de clássico ("Filho maravilha") - e vários toques do indizível ("Pan pan pan")...
     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     


    "Logos", Atlas Sound - este não faz muito tempo que foi lançado... é de 2009! Na época ouvi do início ao fim um zilhão de vezes - com direito a vários "repeats" na faixa "Sheila". Sim, eu sei: Bradford Cox, o nome por trás da banda, é da turma do Panda Bear. Mas não descarte o Atlas Sound só porque ele é "transadinho". O disco todo é sensacional - esse foi dos que "reescutei" por inteiro. Há uma melancolia doida ali nele, um lirismo escondido, uma estranheza maravilhosa - e algumas outras coisas que eu não consigo muito bem explicar... Comece por "Quick canal" para tentar entender melhor. Sem falar que a capa do disco tem uma inesquecível imagem de Cox sem camisa...

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    "The world is shaking - Cubanism from the Congo, 1954-55", Vários artistas - por onde começar? Músicas do Congo. Via Cuba. Nos anos 50. Como assim???? Eu adoro imaginar que, enquanto alguém acha que não existe música melhor do que aquela que estão falando para ela escutar - que é mais do mesmo - em algum lugar tem sempre gente experimentando coisas inimagináveis! E não é de hoje! Adianta se eu destacar algumas coisas dessa coletânea que é de 2009? Tipo... "Musinichkie", de Robert Yuakarie. "Moni moni non dey", de Adikwa Depala. "Yala to kala", de Vincent Kuli. Conhece alguma delas? Então comece a se mexer agora para conhecer - e esteja pronto para uma aventura musical
     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    "Steps in time", King - Queen e Prince não foram as únicas realezas a ocupar o trono do pop. Em 1994, uma banda com o nome de King ("Rei") tomou conta das paradas britânicas - e embora não tenha feito muito sucesso em outras fronteiras, agradou aqui um certo brasileiro que naquela época era obcecado por tudo que tivesse a ver com o "UK chart". Apesar de "Love & pride", o single que estourou a banda, ser uma excelente mistura de metais e guitarras - algo que o ABC talvez fizesse com um pouquinho mais de elegância para a época - a carreira deles não foi muito pra frente. Lembro-me de que Paul chegou a ser VJ da MTV inglesa - mas o que esses caras têm na cabeça quando vão para a TV apresentar videoclipes? (Para quem não entendeu, esta foi uma auto-ironia). Não ouvi inteiro, mas gostei de relembrar.
     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    "Schoolyard ghosts", No-man - eu já estava bem cansado quando resolvi ouvir mais um CD. E acho que dei uma sorte incrível que foi esse - o último que vou indicar hoje. No-man existe desde o início dos anos 90, mas eu só o conheci em 2008, quando, de passagem por Nova York, estive na Other Music (minha loja de CDs favorita no mundo) e um cara que trabalha lá me recomendou "Schooyard", que é o trabalho mais recente deles. Que clima sensacional - ainda mais para a hora da manhã em que eu ouvia isso. Ponha para relaxar e viajar - e até chorar um pouco. No caso, recomendo a segunda faixa "Beautiful songs you should know". Como não gostar de uma banda que grava uma música chamada "Belas canções que você deveria conhecer"? Um verso que simplesmente resume tudo que eu quis te apresentar aqui hoje...

  • O problema com os Wachowski

    sense8 - netflix - blog legendado

    "Matrix". Tudo começou ali, no filme - que tenho certeza de que você já viu, apesar de nossa cultura pop já ter rodado pelo menos uma geração (ou talvez um geração e meia) desde a sua estreia em 1999. Se você só conferiu este marco do cinema moderno na TV (ou na tela de um computador ou num tablet), perdeu um dos grandes espetáculos da grande tela do finalzinho do século passado. Eu diria até do começo deste século...
     
    Numa curiosa ironia, porém, o próprio título do filme parecer ter batizado o estilo da própria dupla de irmãos, Andy e Lana (que naquele tempo ainda atendia pelo nome de Larry - já falamos mais sobre isso daqui a pouco): uma visão quase sempre apocalíptica do mundo, não sem uma adorável (e quase sempre complicadíssima) "teoria da conspiração" por trás de toda história. Essa acabou sendo a "matriz" deles...
     
    O que era genial em "Matrix" - o filme original - tornou-se mirabolante nos filmes que se seguiram: "Matrix reloaded" e "Matrix revolutions". As tramas, embora em última análise coerentes, iam se complicando num nível que beirava o incompreensível. Não incompreensível nível "Vingadores: era de Ultron", mas mesmo assim, os trabalhos que vieram depois do primeiro pareciam privilegiar mais a própria "conspiração" do que a "explicação", numa espiral de "mistérios" que pareciam não apenas insolúveis, mas... messiânicos. E esse era o problema.
     
    Veja bem, nunca deixei de acompanhar o que eles faziam - e eventualmente até de gostar (se bem que nunca tanto quanto o primeiro "Matrix"...). Tive sim um choque com "V de vingança" (2005) - de tão pretensioso e mal resolvido que me saiu o roteiro final. Fui talvez dos poucos que tenha me divertido (pelo menos um bocadinho) com "Speed Racer" (2008). Como grande fã do livro em que o filme foi inspirado ("Cloud atlas", de David Mitchell, que segue misteriosamente inédito no Brasil), fui ver "A viagem" com uma enorme expectativa - e saí ligeiramente decepcionado.
     
    Dou esse pequeno histórico para dizer que fui então de mente e braços abertos conferir "Sense8" recentemente. Este é, claro, o último projeto da dupla - uma produção exclusiva da Netflix, que há pouco ficou disponível para "streaming" no canal de assinaturas. De cara, antes mesmo de me importar com o nome dos Wachowski nos créditos, me entusiasmei com o fato de a série ter seu pivô (pelo menos no início da história) em torno de Daryl Hannah!
     
    Os mais jovens certamente não registram esse nome - sequer se lembram de que ela foi a musa de incontáveis "Sessões da tarde". Se eu escrever "Splash: uma sereia em minha vida" - ajuda? Pois então... Sou fã mesmo da atriz  - a ponto de achar que uma de suas melhores aparições na tela foi num ponta (que nem está creditada) num dos melhores filmes de Woody Allen, "Crimes e pecados", onde ela participa de uma cena junto com um diretor de cinema que está procurando alguém tipo Daryl Hannah para fazer um filme (e no final ele olha para ela e decide que ela não é "tipo Daryl Hannah" o suficiente para o papel...).
    Por isso tudo, me proponho a ver qualquer coisa com a atriz - e quando, já lendo as primeiras críticas, soube que ela, no episódio inicial de "Sense8", "dava à luz" a oito, hum, "criaturas" em todo o mundo, achei que ia gostar. Mesmo sabendo que a série vinha com a "marca" do Wachowski: uma conspiração mundial - no caso, seres humanos "evoluídos", com superpoderes mentais, que têm de lutar contra uma espécie de "polícia supra-humana" que não quer que eles se espalhem pela Terra.

    sense8 - netflix - blog legendado

     
    Lendo assim parece que o argumento de "Sense8" é bastante tolo. E é mesmo. Nessa breve definição, toda a série dá a impressão de não ter uma história para contar muito diferente do que todos esses filmes de super-heróis que estão cada vez mais genéricos (e presentes) nas nossas salas de cinema (nesta temporada de férias então, fale aqui para mim, você tem conseguido ver alguma coisa "decente"? - eu até estou com uma pequena vontade de ver "Homem Formiga", mas... eu divago...). Mas ela é mais que isso. E ao mesmo tempo menos - como vou tentar explicar agora.
     
    As "crias" de Daryl Hannah (que na série chama-se, hum, Angel) foram escolhidas aleatoriamente em várias partes do globo - a saber: Chicago, São Francisco, Londres (que reveza com Reykjavík, na Islândia), Berlim, Mumbai, Nairóbi, Seoul e Cidade do México. Só isso já dá um colorido bem interessante em todas as histórias - sem falar numa oportunidade única de imagens para a sequência de abertura (com os créditos) que é talvez a mais bonita que já vi na TV nos últimos tempos (apesar de o tema musical ter emprestado um pouco demais da trilha de outra série de própria Netflix, "House of cards").
     
    O elenco é quase todo bom, com destaques para Tina Desai (a exuberante atriz indiana que faz Kala), Tuppence Middleton (no papel da islandesa Riley), Miguel Ángel Silvestre (que vive um ator mexicano canastrão), e Jamie Clayton, a atriz transexual que faz o papel da lésbica Nomi (e eu hesitei muito em contar aqui esse detalhe, porque eu mesmo levei uns quatro ou cinco episódios para entender o que estava acontecendo, mas parece que a maioria das coisas que se escreve sobre a série já revela isso logo de cara) - esse personagem, aliás, mesmo a escalação da atriz, é uma "piscadela" para a história da própria Lana Wachowski, que, como já lembramos acima, começou sua carreira como, Larry.
     
    Os outros atores principais são adequados, mas não chegam a brilhar: Doona Bae é a sul-coreana durona Sun Bak; Max Rielmelt faz o estereotipado alemão Wolfgang; Brian J. Smith é um policial americano bem convencional, Will Gorski; e Ami Ameen é o "sofrido" queniano Chapeus. Apesar de essas performances serem bem aquém do brilhante, elas acabam funcionando na engrenagem da trama. E tudo seria uma maravilha, não fosse...
     
    Bem, deixe-me reforçar aqui mais algumas coisas positivas. O cenário "apocalíptico" é quase um clichê - mas no contexto geral, ele é bem resgatado. A conexão dos oito personagens principais é bem bolada: um aparece na vida do outro, mostrando um talento seu que pode ajudar o companheiro ou companheira justo na hora que ele/ela mais precisa. Mas isso só acontece lá pelo quinto capítulo, quando as histórias das pessoas já estão bem desenvolvidas - e elas são ótimas. (Atenção "brigada do spoiler": avance com cautela pelos próximos dois parágrafos!).
     
    Minha favorita talvez é a da indiana, que tem um casamento marcado com um magnata da indústria farmacêutica, mas, além de não ser muito apaixonada por ele, descobre que seu futuro sogro quer derrubar um templo de Ganesha - exatamente o que ela vai rezar todos os dias... Nomi, que fugiu de sua família porque ela não aceitava sua troca de sexo (a mãe, sempre que aparece, insiste em chamá-la de Michael), e que é um gênio da informática, é um dos personagens mais bem construídos. O mistério por trás de Riley é tão bem guardado que só vem à tona no final desta primeira temporada (o que só a torna mais interessante). E o dilema da estrela do showbizz mexicano que é gay, ganha tons extras de humor com a ótima/péssima atuação de Miguel Ángel.
     
    Mesmo os atores mais fracos têm boas histórias de vida. O queniano dirige uma van popular (batizada de Van Damme, e, homenagem ao seu ídolo) e vê-se obrigado a entrar no mundo do crime para comprar remédios para sua mãe, que tem Aids. Sun Bak, em sacrifício à memória da mãe, honra a palavra de proteger a família - e até vai para a cadeia por conta disso! O policial americano tem uma dívida no passado com o pai. E mesmo a trama de Wolfgang - que envolve uma vingança de família e roubo de diamantes - não é de todo ruim...
     
    O que une todas essas histórias - e aí que entra o tal "problema dos Wachowski" - é uma "conspiração maior". Alguém - o malévolo Mr. Whispers (em português, "Sr. Sussuros", interpretado por Terrence Mann) - quer acabar com os "filhos" de Daryl Hannah, e eles têm que se unir para combater o inimigo. É então que as coisas começam a ficar complicadas...
     
    No roteiro, começam a acontecer coincidências demais - mas isso não chega a ser um obstáculo grave. Qualquer pessoa que goste minimamente de fantasia pode acatar esses exageros. Meu problema é com os diálogos - que do meio para o final dessa primeira temporada começam a ficar incomodamente pretensiosos. É como se os criadores se "Sense8" se sentissem na obrigação de colocar alta filosofia - e grandes preocupações existências - na boca de personagens que, pelo menos até terem "renascidos" com a ajuda de Angel, não passavam de pessoas ordinárias. E, pior, com atores que não tem muito gabarito para isso.
     
    A ideia é até interessante - e funcionou muito bem, repito, em "Matrix". Mas em "Sense8", esses diálogos não soam mais do que banalidades, deslocadas em momentos de ação (quando o roteiro pede rapidez, alguém para falar uma platitude), desnecessárias em sequências de conversa (quando acabam atravancando o desenvolvimento da história). Entendo que o tom tem a ver com a curva geral da história de "Sense8". Mas essas coisas não podiam ser ditas de uma maneira um pouco menos "empolada"?
     
    Faço essa reclamação porque, de maneira geral, adorei a série. Mas toda vez que um personagem vinha com uma fala na linha "o mal não pode vencer a beleza dos corações de uma nova espécie que está surgindo entre os seres humanos" (esta não é uma frase que tirei literalmente da série, mas ela dá o tom do que estou sugerindo), minha vontade era de não ir até o décimo-segundo episódio - que fecha esta temporada de estreia.
     
    Felizmente eu não desisti! No balanço geral, senti-me recompensado de ver "Sense8" - e mais feliz ainda de imaginar que a gente vive uma era onde é possível um canal de "streaming" apostar num projeto tão ousado. Acabei até me envolvendo mesmo com as histórias pessoais que menos me atraiam - como a de Sun Bak. E, no final - que é muito bem resolvido, não só como conclusão da temporada, mas como gancho para a gente querer assistir à próxima - eu saí satisfeito.
     
    Apesar do meu problema com os Wachowski...

  • A artista

    Cena do documentário 'What Happened, Miss Simone?', sobre Nina Simone
    Assim que acabei de assistir ao documentário "What happened, Miss Simone?", disponível já há alguns dias na Netflix, quis saber exatamente sua duração: 101 minutos. Fiz uma conta rápida, e cheguei à conclusão de que devo ter chorado mais ou menos - descontando os créditos (se bem que a música que toca no final também fez balançar o meu queixo) e um ou outro momento em que o choque do que você está vendo supera a emoção da história - uns 94, 95 minutos enquanto via o filme.
     
    Chorei menos da segunda vez - que foi logo em seguida à primeira. Já era tarde da noite, e eu consegui me controlar em boa parte do documentário. Mesmo assim, em um ou outro trecho, as lágrimas vieram. Por exemplo:
     
    - todo o número de abertura, num de seus retornos ao Festival de Montreaux, onde ela mistura amargura, convicção, arrependimento, e êxtase musical
     
    - uma de suas primeiras entrevistas no filme, quando ela tenta explicar quando ela já se sentiu livre
     
    - quando Nina fala da música "To be young, gifted and black" (e a performance que ilustra esse depoimento)
     
    - a preciosa versão de "I got life", resgatada pela diretora Liz Garbus
     
    - no depoimento de Attallah Shabazz, a filha mais velha de Malcolm X, explicando como via uma artista da grandeza de Nina Simone, muito à frente do seu tempo - algo como a nobreza andando sobre a lama
     
    - numa entrevista numa lanchonete quando Nina fala sobre sua vontade de resgatar a autoestima de pessoas como ela, que a vida inteira foram discriminadas
     
    - no "sacode" que foi a ousadia de lançar uma música chamada "Mississippi goddam" (que as legendas da Netflix traduziram assanhadamente por "puta que o pariu")
     
    - na quase humilhante performance sua no "surreal" programa da TV americana "Playboy's Penthouse"
     
    - na primeira versão de "My baby just cares for me", mas sobretudo na versão final, novamente em Montreaux, onde uma Nina Simone "derrubada", mas longe de estar derrotada", pega aquele piano e transforma ele e a música que está sendo executada numa coisa do outro mundo!
     
    A cantora Nina SimoneAliás, quero começar por este final. Depois de quase duas horas praticamente só ouvindo Nina Simone falar, cantar e tocar, você imagina que já está um pouco acostumado a sua genialidade. Mas aí ela entra, senta em rente ao piano Bösendorfer - a única coisa que realmente vale a pena, como ela sugere, naquele momento - e te convence novamente de existiram (ou existem) poucos artistas como ela, capazes de pegar uma música que já é sensacional e transcender com ela para outro patamar.
     
    Do momento em que suas mãos dedilham as primeiras notas - se bem que usar o verbo "dedilhar" aqui é um eufemismo brabo, uma ver que cada um de seus dedos cai naquelas teclas como um martelo de Thor! - você sente que não vai ouvir uma versão qualquer da música. Nina parece possuída - mais do que o normal. E o som que sai daquele piano só pode ser descrito com uma analogia líquida: é uma torrente de notas, de cadências, de pausas e continuidades, um turbilhão de melodias musicais, precisamente montadas umas sobre as outras, desconsiderando a polida (e já perfeita) canção original - como se ela soltasse um "goddam" a cada verso.
     
    Mesmo depois de ter visto o documentários duas vezes seguidas, ainda fui à internet procurar um registro dessa performance inteira e ouvi a performance mais umas cinco vezes. Porque é genial. E porque não tem mais ninguém fazendo uma coisa assim - ou melhor, se tem, a possibilidade de ele ou ela se tornar um artista cujo trabalho seja ouvido por um público maior, nos dias de hoje, é praticamente zero.
     
    Ah, lá vem o cara de cinquenta e não sei quantos anos (52, para ser exato!) reclamar que não se faz mais música como antigamente... Bom... Um pouco é isso mesmo. Mas se você achar que só pessoas com a minha idade e, hum, com meu gosto musical - que é notoriamente elástico - podem apreciar o documentário sobre Nina Simone, bem... tem certeza de que você ainda está me lendo?
     
    Este não é mais um texto, entre tantos que já escrevi aqui, para celebrar a diversidade musical que temos - no Brasil e no mundo. O que quero é te convencer a assistir a "What happened, Miss Simone?" para que você me ajude a argumentar que o que passa por música hoje em dia, especialmente música pop, apesar de ser feita com grande qualidade, está longe dos propósitos, da missão de uma Nina Simone.
     
    Ela não é o único exemplo. Tiro fácil uma lista rápida de artistas que já fizeram - e muito ainda fazem - algo de revolucionário com seu poder pop. Dylan, Stones, Lennon, Chico Buarque, Madonna, Sex Pistols, Caetano Veloso, Tim Maia, Bono, Raul Seixas, Cassia Eller, Lobão, Public Enemy, Racionais MC, Ney Matogrosso, Kurt Cobain... tantos. Talvez eu esteja ainda sob o embalo do documentário, mas Nina tem ainda uma loucura a mais - não nas causas que resolveu defender - mas no seu impressionante conhecimento musical, que a coloca um pouquinho mais à frente desse time que já não é fraco.
     
    Como vemos no trabalho de Liz Garbus - um excelente garimpo de performances e entrevistas raras -, Nina nunca deixou de flertar com a tristeza. Trechos de seus diários, que são mostrados no filme, mostram uma artista (e uma mulher) em um questionamento constante - quando não beirando a autodestruição. A sensação de "outsider", da pessoa que "não pertence", vinha desde a sua infância, quando fazia aulas de piano com uma senhora "branca", cercada de "pessoas brancas" - um ambiente que a pequena Nina nunca havia experimentado - na intenção de se tornar a primeira pianista clássica negra a tocar no Carnegie Hall! (Um sonho que nunca se realizou por completo, como ela é duramente obrigada a reconhecer no próprio documentário).
     
    Esse registro de menina segue com ela mesmo quando ela vai ficando adulta e cada vez mais conhecida - a já citada aparição no programa da "Playboy" é um exemplo disso, uma vez que ela, por ser a artista em destaque, é a única negra em todo o cenário. Mergulhada em trabalho - por obra de seu marido Andrew Stroud, ela ganhou o mundo com uma agenda lotada de shows - ela foi paradoxalmente se sentindo mais isolada, até que os movimentos civis do final dos anos 60 nos Estados Unidos conquistaram sua atenção e seu talento. E quando ela começou a canalizar sua raiva para sua música, a mistura a certa altura começou a ficar ameaçadora demais para sua carreira.
     
    No início dos anos 70, Nina Simone literalmente enlouqueceu. Mudou-se para a Libéria, na África - para ficar conectadas com suas raízes e, por conta de uma bipolaridade (que só seria diagnosticada anos depois) afastou-se de todos, até de sua única filha. O retorno foi penoso - com momentos tipo "fundo do poço", como a deprimente imagem de uma Nina Simone tentando ser moderna na época da "disco" (meu estômago revira só de lembrar...). Mas quando ela volta...
     
    Quando Nina lembra da artista que é, quando ela percebe novamente que a música é a sua salvação, ela volta a ser a estrela maior que despontou lá atrás. E a partir de então retorna em apresentações pelo mundo, andando com as próprias pernas - e sendo a mesma Nina Simone enfezada e brilhante de sempre. Eu tive a chance de ver uma de suas passagens pelo Brasil - ah, o privilégio da idade ehehe - e me lembro da imponência com que sua simples presença no palco, mesmo antes de encostar no piano, deixou uma plateia inteira em silêncio...
     
    Em outro momento precioso do documentário, depois de ter começado a tocar uma música, Nina Simone para tudo, olha para um ponto no auditório e ordena: "A senhora aí, sente-se". Poucos ensaiam um riso, e, mesmo sem a câmera sair do rosto da cantora, você tem a certeza de que a "senhora" a obedeceu. Porque talento é assim, manda!
     
    E artista é feito disso. De arte e de respeito, de coragem e de ousadia. E não dessa bajulação tola que a gente vê por aí, onde todo mundo parece estar cantando a mesma música, numa fórmula que fala, talvez, ao coração, mas nem se dirige à mente. O que é válido também - todo mundo gosta, e eu também, de se juntar a um coral maior e gritar um refrão que nos faça chorar. Mas que tal, só para variar, entoar uma canção que nos faz também pensar?
     
    Logo no início de "What happened, Miss Simone?", o escritor Stanley Crouch comenta algo sobre Nina Simone, sobre como ela tinha uma voz que você ouvia uma vez, e em seguida ouvia de novo algumas semanas depois e dizia: "Ah! Essa era aquela de outro dia"... Quantos artistas assim podemos apontar hoje?
     
    Me ajude nessa conta! Mas antes assista ao documentário. E depois a gente conversa...

Autores

  • Zeca Camargo

    Mineiro de Uberaba, o apresentador do ‘Fantástico’ começou a carreira no jornal ‘Folha de S. Paulo’, participou da primeira turma da MTV no Brasil e foi editor da revista “Capricho”.

Sobre a página

Em seu blog, Zeca Camargo transita pelo universo da cultura e discute músicas, filmes e exposições.