• Os melhores álbuns que você não ouviu em 2015

    É chegada aquela hora do ano... Sim, aqui está ela, a "nossa" lista dos melhores álbuns de 2015 que você não ouviu. Você que me acompanha aqui há tempos, já conhece as regras - a mais importante de todas, é a de que se trata de uma seleção bastante idiossincrática. Aqui está um punhado de músicas boas que escutei nos últimos 12 meses e que, pelas injustiças que o pop sempre comete, acabou não chegando ao grande público. Chegou a hora de resgatá-las!

    Tem de tudo, claro. Como sempre, você pode esperar novidades da Colômbia à Nova Zelândia, passando pela Suécia (via território curdo), Honduras, Congo, Tailândia - ah! e Brasil também. Gente nova e gente veterana - que tem em comum a capacidade de fazer música boa e nos surpreender com o dom infinito de criar com sons de todas as origens, todas as fontes, todos os tempos.

    Em 2015, a lista - que, só lembrando, não está em ordem de preferência - vem ainda com uma inovação: você pode ouvir (quase) todos os artistas num playlist que criei na minha conta no Spotify (fácil de chegar, ainda mais se você for no meu perfil https://facebook.com/ozecacamargo). Chama-se "Ainda não ouviu? 2015". Aventure-se.

    E o "quase" lá em cima é porque pelo menos uma artista escolhida este ano desafia todos esses serviços de "streaming" de música: não achei nada, em nenhum deles, sobre a sensacional Hongthong Dao-Udon... Mas para situações como essa, temos sempre o YouTube: descubra todo o esplendor desse pop tailandês aqui. No mais, aqui estão eles: os grandes injustiçados de 2015 - só que não...

    Express of1) "Me", Empress of - no princípio, era a voz. Digamos que Lorely Rodriguez, o nome por trás do Empress of, não tivesse um bom repertório nesse seu segundo álbum. Mesmo assim você ainda teria sua voz - e eu seria capaz de parar para ouvi-la nem que fosse anunciando os portões de embarque permanentemente alterados de um aeroporto brasileiro como o de Congonhas (certamente a tortura auditiva mais sádica que já inventaram). Mas ocorre que o punhado de faixas que Rodriguez juntou em "Me" é também sensacional. Sobretudo porque justamente utiliza o potencial vocal da cantora para explorar texturas inéditas no pop. Você vai ficar intrigado da primeira vez que escutar - mas também irresistivelmente atraído. Ainda mais quando souber que ela é meio americana e meio hondurenha. "Everything you do" é provavelmente a música que mais ouvi este ano (depois de "Borders", de M.I.A.) - mas tente ouvir tudo, e ainda um remix de "How do you do it", assinado por Ash Koosha!

    ffs2) “F.F.S.”, Franz Ferdinand & Sparks - Dois ídolos, de duas gerações. Posso apostar que a maior parte dos fãs de uma banda não faz a menor ideia de quem é a outra banda. Mas tenho certeza de que os próprios artistas sempre foram fãs uns dos outros. Mas o que importa mesmo é que Franz Ferdinand e Sparks um dia se encontraram e descobriram que foram feitos um para o outro. Mesmo separados por décadas (o primeiro álbum do Sparks é de 1971), os dois grupos têm tudo a ver. Tanto que criaram essa generosa coleção de colaboração - que curiosamente inclui uma faixa que se chama “Collaborations don’t work”  (ou, em português, “Colaborações não funcionam”). Se puser na balança, acho que o álbum tem mais de Sparks do que de Franz - mas isso é um detalhe. O importante é o fã de uma descobrir o som da outra. E o mundo pop sair ganhando!

    Elza capa3) "A mulher do fim do mundo", Elza Soares - quando li, mais ou menos em outubro, que Elza Soares liberara canções inéditas para o ouvinte da internet, a princípio estranhei. Pareciam duas notícias que vinham de mundos diferentes - um onde Elza grava discos e outro onde as pessoas ouvem música pela internet. Mas então você lembra quem é a cantora, de tudo que ela já fez - e começa a achar não só normal que seu novo disco tenha aparecido primeiro para os internautas, mas ainda se pergunta por que Elza, uma mulher sempre à frente do seu tempo, demorou tanto para fazer isso. As boas notícias não vieram apenas no formato do disco, mas nos arranjos modernos e ousados - mesmo para uma artista como ela. A faixa-título é algo definitivamente além do seu tempo, quase irreconhecível no repertório da cantora - a não ser, claro, pelos grunhidos (sua marca registrada) que ela deixa para o final. "Maria da Vila Matilde" quase faz inveja a Nicki Minaj. E "Benedita" - uma parceira com o sempre bom Celso Sim - é definitivamente um samba extraterrestre. Fico pensando qual a próxima galáxia que Elza Soares vai visitar...

    HongthongDao4) Hongthong Dao-Udon, “Bump Lan Floen: Essential Hongthong Dao-Udon” - Um disco de um ídolo especial - espero que você acate essa minha, digamos, excentricidade. Hongthong Dao-Udon é uma espécie de Rita Lee da Tailândia, uma cantora que juntou tudo de pop que era feito por lá e criou um gênero próprio,  e conquistou o coração dos tailandeses (e de alguns brasileiros no meio do caminho, como este que vos escreve). Não, você não vai entender nada. Não, você vai achar muito estranho nas dez primeiras vezes que escutar. Mas uma hora vem o “click” - e você descobre a música mais fascinante que seus ouvidos não estão acostumados. É um relançamento, claro - uma compilação dos “hits” dos anos 70 e 80. Mas você vai ser surpreender com a modernidade. Ou então vai achar que eu enlouqueci de vez. O que também é uma possibilidade interessante.

     La onda de Elia y Elizabeth 5) “La onda de Elia y Elizabeth”, Elia y Elizabeth - duas irmãs colombianas descobertas por acaso num programa da TV peruana no início dos anos 70 que homenageava o avô delas - Miguel Fleta -, que foi um famoso cantor lírico. Desse começo inusitado, Elia e Elizabeth acabaram por criar um verdadeiro sopro de esperança na música latino-americana daquela década - que como tantos nesse universo pop, não foi muito adiante. Mas pelo menos ficou esse registro, que foi relançado no final do ano passado - e tornou-se uma espécie de trilha sonora para todo o meu último verão. Você não faz ideia!! Cada faixa é de uma inventividade e de uma harmonia absurdas (“Alegría” e “Libre” são dois exemplos de pop perfeitos, até atemporais - e não vamos nem falar de uma que chama “Mis 32 dientes”…). Tão bom que faz você lamentar que elas tenham abandonado tão cedo a carreira, com apenas um punhado de canções gravadas. Ou não! Elia virou freira e saiu cantando para a alegria de fiéis pelo mundo - até em Camarões… Aleluia!

    Ici le jour (a tout enseveli)”, Feu! Catterton6) “Ici le jour (a tout enseveli)”, Feu! Catterton - Se tem um gênero que realmente estava precisando de renovação, ele era a canção francesa. Não o pop em geral - que é bem diverso (pergunte ao Daft Punk). Mas a tradição de canção mesmo. E então chega Feu! Chatterton e muda a regra do jogo. O nome deles tem essa exclamação mesmo no meio - que pode parecer um detalhe pretensioso, mas é a justa medida da euforia que eles trouxeram este ano para a música francesa. Celebrados já por lá, eles agora partem para outros horizontes - e tenho certeza de que vão encontrar porto seguro nos seus ouvidos aventureiros. Aliás, não desanime com o que falei acima sobre a relação deles com as antigas “chasons”… Como eles falaram uma vez ao “Les Inrockuptibles”, suas influências estão mais para Radiohead e Pink Floyd do que para Charles Aznavour. Mas a mistura é o que interessa. E ela está lá, misteriosa, sensual, existencialista e - sobretudo num ano em que essa cultura se viu ameaçada pela ignorância dos fundamentalistas - mais francesa do que nunca.

    Vitrola Sintética7) "Sintético", Vitrola Sintética - faço aqui a "mea culpa": desconhecia o trabalho desta banda. E só esbarrei com ela ao ler uma notícia sobre Tulipa Ruiz (que este ano veio com o também ótimo "Dancê" - veja mais abaixo), que era companheira do Vitrola entre os indicados na categoria "Melhor artista revelação" do Grammy Latino deste ano. Eles ainda concorreram ao "obscuro" prêmio de "Melhor engenharia de gravação". Mas nada disso (juro!) me influenciou para eu gostar tanto de "Sintético" - e depois correr atrás das outras coisas que essa banda paulistana já gravou. A voz de Felipe Antunes vai na contramão de todos os trinados que nos acostumamos a ouvir nessa época de programa de calouros disfarçados em reality shows (mesmo os que chamam bandas de rock para a brincadeira...). E as letras das músicas, bem... que diferença poder ouvir alguém cantando sobre alguma coisa além do último fora que o cantor deu ou levou - ou as promessas de reconciliação depois desse fora. Modernos, mas ao mesmo tempo quase atemporais.

    John Grant8) “Grey tickets, black pressure”, John Grant - veterano aqui para os leitores deste espaço (já falei de John Grant algumas vezes ao longo desses anos...), ele está de volta. Que culpa tenho eu se ele segue fazendo um disco bom atrás do outro? Ao mesmo tempo que "Grey tickets" é o trabalho mais animado do ex-integrante dos Czars, é também o mais sombrio. O que não significa que este novo conjunto de canções de Grant não tenha humor. Se tudo parece um pouco contraditório, fico feliz: não posso imaginar uma maneira melhor de apresentar mais uma vez um trabalho desse artista, que tem uma das vozes masculinas mais poderosas do pop atual - fazendo até um belo efeito ao lado de Lolely Rodriguez, do já citado Empress of. Músicas como "Global warming" ou "Disappointing" (cujo clipe não é para os fracos do coração) mostram como ele tem uma capacidade única de (ainda) nos embalar nessas canções.

    From Kinshasa9) “From Kinshasa”, Mbongwana Star - como diria David Byrne, eu odeio "world music". Odeio principalmente porque ela não existe. Porque é um rótulo idiota que alguém inventou pra chamar todo tipo de música pop que não fosse americana ou inglesa. Dito isto, este é um ano particularmente feliz para a "world music". Se você entendeu minhas últimas palavras, nem preciso ir adiante nos elogios a Mbongwana Star - uma dupla (Cono Ngabali e Theo Nzonza) de Kinshasha. Isso mesmo: a capital da República Democrática do Congo. Nem precisa procurar no mapa - a localização geográfica pouco importa, já que a mistura de sons aqui é tão inventiva e inesperada que a busca de "origens" torna-se um exercício inútil. Como bônus, dá uma olhada no clipe de "Kala" e tenha a prova definitiva de que estilo não é uma questão de dinheiro... Eu diria que Mbongwana Star deveria ser uma referência para qualquer banda das nossas inúmeras comunidades no Brasil - mas você vai dizer que eu estou provocando...

    Vietcong10) "Viet Cong", Viet Cong - no princípio era o barulho. Se que já comecei um parágrafo hoje com essa fórmula, mas ouvindo novamente o álbum dos canadenses do Viet Cong (dois deles ex-Women) eu só consigo pensar nisso: no barulho. E nas infinitas possibilidades que ele (ainda) traz para o rock e para o pop. Sim, logo que escutei pela primeira vez pensei em The Jesus and Mary Chain. Mas este é, como sempre um manto muito pesado para qualquer banda usar. Mas digamos então que essa é uma referência forte - bem como qualquer banda que tentou ressuscitar o punk nos últimos 40 anos. Mas e se em vez de ressuscitar, alguém vem e reinventa o gênero? Eu acho que é isso que o Viet Cong está tentando fazer, com faixas que são puro... Barulho. "Pointless experience", "Silhouttes" - e mesmo a ironicamente inspiradora "Death" - são a esperança de que o punk morreu. E virou uma coisa muito melhor.

    Zhala11) "Zhala", Zhala - qualquer artista que grava uma música chamada "Aerobic lambada" sabe que já tem um lugar garantido em qualquer lista que eu fizer. Para a sorte de Zhala, sua inclusão aqui vai além dessa gracinha. Zhala é sueca, mas de origem curda - se você achou que Empress of, que abriu essa lista, tinha uma mistura exótica, ainda não viu nada... Para sua sorte, ela ainda caiu nas graças de ser descoberta por Robyn - outra escandinava poderosa, especialmente nas pistas de dança. E, com essa madrinha, estava selado o seu sucesso. O resultado é um dos álbuns dançantes mais inesperados do ano. E, como uma espécie de bônus, ela é boa nos clipes também - "Holly bubbles" consegue ser neo-hippie e "ostentação" ao mesmo tempo. E "I'm in love" é daqueles rodados em volta (literalmente) de uma ideia tão boa que dá até raiva... Mas acima de tudo, tem as batidas (serão curdas?) de Zhala - e são elas que podem fazer você dançar com prazer neste nosso verão!

    12) "Riot Boi", Le1f - lendo uma das inúmeras críticas positivas do primeiro álbum de Le1f - deparei-me com a melhor definição do seu trabalho: ninguém está fazendo algo sequer parecido com o que ele faz. De fato, apaixonar-se por suas canções é quase um ato de guerrilha - dá até medo. Mas quanto mais você ouve, mais fica encantado com as várias camadas de som que esse artista de hip-hop americano (de Nova York) oferece. Gay e ativista, suas letras trazem mensagens nem sempre explícitas - até porque, o que é mais importante no seu trabalho é justamente a música. De onde saem aqueles sons? Até o mês passado eu só tinha ouvido um EP de Le1f (pronuncia-se "Líf"). Mas agora, com "Riot boi", fica claro que ele não era só uma sensação de momento - nem um simples DJ da moda. Suas faixas são quase "cerebrais" de tão elaboradas. Algumas beiram o "espacial" - como "Umami/Water". Outras, o etéreo - "Taxi". E ainda há aquelas que são inexplicáveis - como a belíssima colaboração com o "Pharell Williams alternativo", Devonté "Dev" Hynes, "Change". Mesmo sem entender nada, avance. A recompensa está lá te esperando.

    Capa Tulipa Ruiz13) "Dancê", Tulipa Ruiz - quando vai ser finalmente o ano de Tulipa Ruiz? Não é de hoje que eu adoro o seu trabalho - talvez sempre com uma sensação, nos seus ábuns anteriores, de que faltava alguma coisa. A voz estava lá - aliás, ainda está. Mas às vezes era o repertório, às vezes um detalhe de produção... Só que agora não tem mais desculpa: com "Dancê", Ruiz finalmente entregou um disco completo. Ótimas músicas, produção afinada, ritmo, suíngue, bom humor - e a sabedoria de ir buscar nas fontes certa do pop brasileiro e mundial. Ah! E você ainda pode dançar tudo!  Juro que o fato de ela estar nesta lista junto com o Vitrola Sintética é mera coincidência - explico mais sobre isso quando falo acima desta outra banda. Mas que é bom saber que existem artistas como estes no Brasil que são reconhecidos não por cantar as mesmas coisas - em modinhas importadas (fingindo que são brasileiras) - é certamente um bafejo de esperança pro nosso sempre frágil pop nacional.

    Fantasma, Free Love14) "Free love", Fantasma - não tô falando que esse é um bom ano para o pop do mundo todo? Não resisti em colocar mais um artista... "do mundo". E o Fantasma vem da África do Sul. Spoek Mathmabo já é há algum tempo um dos nomes mais interessantes da música feita por lá - e agora ele juntou um bando de músicos interessantes (inclusive o fantástico DJ Spoko!). O resultado? Algumas das músicas mais estranhas que você (com um pouco de sorte, especialmente no Brasil) vai encontrar na pista de dança. Ah! E vai dançar com vontade. Duvido, por exemplo, você ficar parado ao ouvir "Shangila". Se bem que eles são ótimos também para criar um clima meio "trip hop" (lembra?) - ouça "Cat and mouse" para entender que clima é esses. Hip-hop, "maskandi", house, "shagaan", "guzu" - e mais alguns ritmos daquele canto da África que você (aposto) nunca ouviu falar -, todos se juntam para criar este disco alucinado.

    Unknown Mortal Orchestra15) "Multi-love", Unknown Mortal Orchestra - continuando nossa "volta ao mundo" (se bem que eu duvido que alguém chamaria uma banda com essa origem de "world music", mas eu divago...), chegamos à Nova Zelândia, onde este grupo com um nome improvável chamou minha atenção logo no começo do ano - e a de boa parte da crítica. Unknown Mortal Orchestra faz o mais puro pop, sem muitas novidades a não ser aquele "velho" truque de não fazer com que uma faixa se pareça com a outra. Uma hora você tem a impressão que vem um Belle and Sebastian; noutra, você tem certeza que está ouvindo Metronomy; daí vem algo que lembra Air; aí você sente um clima de Avalanches... E assim você vai atravessando "Multi-love" como se fosse uma compilação. Só que não. Este é um dos álbuns mais inventivos desta lista. Se já quiser começar dançando, abra com "Can't keep checking my phone". Ou se quiser algo mais inesperado, entre direto na faixa-título. Ou melhor: comece por onde quiser - a diversão será sempre garantida.

    Capa do álbum 'Vulnicura', de Björk16) "Vulnicultura", Björk - surpreso (surpresa) de ver um disco da Björk aqui nesta lista? Pois olhe novamente o título lá em cima - e responda com sinceridade: você ouviu o último disco dela? Ouviu "mesmo"? Tem mais de uma década que, garanto, Björk é mais falada do que ouvida. O que é uma coisa a se lamentar. Tudo bem, concordo que ela andou meio, digamos, experimental - apesar de eu ter o aplicativo de "Biophilia" na primeira página do meu smartphone, admito que é um disco difícil. Mas esnobar "Vulnicultura" é mais que uma injustiça - é um pecado. Björk é vítima, às vezes, da sua própria genialidade - quem mandou ser uma artista tão interessante não só na música mas também visualmente (e ainda com suas ideias!)? Mas explore o álbum, quem sabe até nessa versão só para cordas, que é a que eu indico aqui - lembrando que o original também é muito bom. E vá bem além de "Lionsong", que é provavelmente a única que você ouviu (se ouviu). Desnecessário acrescentar que a viagem será memorável...

    Mika17) "No place in heaven", Mika - talvez você já tivesse esperando Mika numa das entradas desta lista. Afinal, já perdi a conta de quantas vezes falei do seu talento aqui mesmo neste espaço. E já que ele lançou mais um álbum brilhante, seria apenas natural que ele estivesse aqui. Aliás, a surpresa talvez seja ele não estar como "melhor álbum do ano que você não ouviu", mas sim aqui no meio desses outros artistas. Mas por pouco ele não ocupou a "pole position" este ano também - você vai entender quando vir minha escolha final, lá embaixo. Mas voltando a Mika, minha pergunta sempre que ouço suas músicas é: como ele consegue? Como saem coisas tão lindas - música, vocal, refrão, piano, abertura, melodia, cadência, harmonia - tudo junto de sua imaginação? Como isso não para de brotar da sua cabeça? "Good guys", "Talk about you", "All she wants", "Rio" - é impossível não cantar junto qualquer uma dessas músicas já na segunda vez que você as ouve. E depois tem a faixa-título, em que Mika expressa sem meias palavras seu estranhamento quando - ainda adolescente - descobriu que sua orientação sexual não era compatível com o que dizia sua religião. Mas isso, claro, foi antes de chegar o Papa Francisco... Enfim, três vivas para a inspiração infinita de Mika - que sua fonte nunca seque.

    18) "Sremmlife", Rae Sreemurd - o que ainda é possível inventar no hip-hop? Aparentemente muita coisa! Pergunte para esses irmãos de Atlanta (Georgia, EUA). Num ano em que Missy Elliot mostrou que ainda reina suprema, ouvir uma faixa como "Throw sum mo" é mais que ousadia, é provocação. Mas os garotos seguram bem. Tem horas até que eles parecem que estão desafiando o próprio "deus supremo" Kanye West - como na faixa de abertura, "Lit like bic", ou "No type". Melhor ainda, na maioria das faixas o que transparece é que eles estão fazendo a coisa deles mesmos, sem ligar muito para os outros. Novamente, conforme os anos passam, eu procuro novos artistas de hip-hop cada vez com menos esperanças. Mas quando a gente encontra um álbum como "Sremmlife", dá vontade de "cavar" ainda mais fundo, num gênero que a gente já achou que tinha se esgotado. Que nada...

    19) "O.K.", Eskimeaux - ter um nome às vezes ajuda. Pelo menos a chamar a atenção num cenário musical onde as possibilidades são infinitas com a internet - e Spotify e Deezer e Apple Music... Encontrei Esquimeaux - na verdade, um projeto de uma artista chamada americana Gabrielle Smith - quase que por acaso, vendo uma dessas listas de "melhores discos da primeira metade do ano", que agora estão na moda (aparentemente as pessoas não aguentam mais esperar até o fim do ano para dar sua opinião eheh). E aí fui atrás e encontrei um álbum quase fora de moda: uma garota cantando faixas quase acústicas, quase "neo folk", quase intimistas. Mas mais que isso, encontrei talvez um tesouro escondido. A simplicidade de seus arranjos e a suavidade da sua voz nos trazem um conjunto de canções, insisto, em que algumas pessoas já tinha desistido de apostar. Mas Gabrielle, perdão, Eskimeaux, só ganhou pontos comigo desviando da rota. E vai ganhar pontos com você também. Minha faixa favorita chama-se "Thanks" - mas, sinceramente, sou eu que agradeço...

    20) "At least for now", Benjamin Clementine - em um ano em que Adele lança um novo álbum, não tem pra mais ninguém que queira simplesmente cantar com um vozeirão. Eu mesmo talvez não estivesse escutado Benjamin se não fosse pelo Mercury Prize que ele ganhou este ano - e mesmo assim, houve um tempo em que acompanhar este prêmio e seus indicados era praticamente uma religião, mas a gente sabe que não é mais assim. Mas enfim, baixei "At least for now" sem muitas esperanças e... Bem, é de tirar o fôlego. E não venha me dizer (como alguns disseram) que o Mercury deu um passo para trás ao escolher Benjamin como o vencedor deste ano. Pelo contrário: seus arranjos são surpreendentes, a estruturas de algumas músicas são bem pra lá de convencionais, e o que esse cara faz com a voz... É incrível que ele tenha demorado tanto para ter sido descoberto - e quando você descobre que ele viveu anos de tocar música nas ruas de Paris, toda sua história ganha outra dimensão. Muito lindo...



    E o melhor - melhor, melhor mesmo - álbum do ano que você não ouviu é... "White men are black men too", do Young Fathers. Por quê? Eu poderia listar umas 500 razões aqui, mas vou ficar apenas com essa: o Young Fathers fez o melhor disco do ano - que você não ouviu (confessa!) - porque você vai ouvir e vai ficar chocado; vai se perguntar "o que é isso?"; vai se indignar com a minha escolha; e vai querer sair cantando (e talvez até dançando) mesmo sem saber as suas letras, de repente, como se você estivesse tomado, contagiado pela energia, criatividade e brilho dessas faixas criadas por dois escoceses - um de origem nigeriana - e um cara da Libéria (com passagem por Gana, como qualquer perfil deles faz questão de citar). E então, pessoalzinho que gosta de usar a expressão "world music": o Young Fathers qualifica nessa categoria? Nem precisa responder. Ouça o disco deles - ouça tudo que eles fazem (tem um single solto que saiu no meio do ano, "Soon come soon"). E vamos para 2016 mais animados - por favor. O pop - nem o rock nem o hip-hop nem o R&B nem o samba nem nada - não está (estão) nem perto de morrer...

  • Chico no Chacrinha

    Chico Buarque canta em cena do documentário 'Chico: Artista brasileiro'
    A certa altura do documentário "Chico: Artista brasileiro", o diretor Miguel Faria Jr nos oferece uma preciosidade - entre tantas de um trabalho "arqueológico" notável: Chico Buarque cantado no palco do programa do Chacrinha. Só mais uma cena curiosa daquele verdadeiro caldeirão de misturas que o apresentador acostumou o Brasil a assistir - você pode pensar. O "Velho Guerreiro" está vestido - se captei bem a fantasia - de tirolês. As chacretes, como sempre, se esforçando para achar alguma sincronia nos seus passos. Do alto do cenário, caem serpentinas evocando um clima duvidoso de Carnaval (não consegui apurar de quando exatamente é essa imagem, mas no palco de Chacrinha, Carnaval era uma festa permanente, claro). Até aí, "tudo bem" - apenas mais uma atração do programa mais anárquico que a TV brasileira já conheceu. Mas aí você reconhece a canção que Chico está cantando e vem então o estranhamento.
     
    A música que ouvimos explodindo de alegria para todo o Brasil é "Vai passar" - um hino não-oficial das "Diretas Já", o primeiro movimento de atitude política que minha geração conheceu - e o ponto de partida para o país que temos hoje (para bem ou para o mal). Como diz o próprio Chico no documentário, "Vai passar" é talvez sua última grande composição política - uma celebração de uma nação que começava a mudar, depois de anos de repressão (ideológica e cultural) e de ditadura militar.
     
    Minha reação ao ver aquilo não foi de choque, mas de lamento. Ter um artista de peso como Chico Buarque cantando uma espécie de manifesto em meio a caóticas bailarinas é uma imagem impensável na TV de hoje. Não só duvido que algum programa de televisão hoje em dia tivesse coragem de lançar uma mensagem tão engajada aos seus "sensíveis" telespectadores, mas também não acredito que nosso próprio cenário musical atual (falo do pop, claro), com refrões que são pouco mais que sílabas fáceis para quem não quer pensar cantar, tivesse a competência de oferecer uma atração dessa qualidade.
     
    Na transmissão resgatada pelo documentário, Cacrinha dança alheio à poesia forte e insinuante de Chico, enquanto um assistente de palco limpa o chão para o apresentador não tropeçar na quantidade de papel que chove. A dança das bailarinas - mais uma vez, desencontrada - raramente traduz, ou (menos ainda) se encaixa naqueles versos. Mas a mensagem está lá: "A nossa pátria-mãe tão distraída / sem perceber que era subtraída / em tenebrosas transações"... Corta para as atrações recentes que vemos em programas de auditório... Preciso ser mais claro?
     
    Enquanto começava a pensar a escrever este texto, com o filme rolando, num trecho da sua entrevistas, quando ele fala da qualidade da música que se faz (e se ouve) hoje no Brasil - há um momento delicioso, uma das várias gargalhadas que Chico solta nos seus depoimentos, em que ele fala sobre o que seu neto, Chico Freitas, filho de Helena Buarque de Holanda e Carlinhos Brown, apresenta como sons e artistas que ele deve conhecer -, enfim, enquanto o filme estava acontecendo na tela e eu viajando nas suas ideias provocadoras, o próprio Chico Buarque veio desmontar meu raciocínio.
     
    Eu havia sido tomado por mais uma calafrio de desânimo, certo de que jamais veríamos momentos como aquele de Chico no Chacrinha, quando então o cantor e compositor fala sobre como nosso país mudou - e mudou para melhor. Não sei reproduzir seu texto fielmente aqui, mas o que ele quis dizer é que um movimento como a Bossa Nova, hoje, seria impossível de ter a repercussão e a e a influência que teve nos anos 50. Por que? Ora, porque era algo que surgiu num tempo em que aquela elite que criou o gênero e se apaixonou pela música, era a mesma que dominava o discurso cultural. Se bem me lembro, Chico diz algo como: "Seria muito bonito se o Brasil fosse tão bonito com aquelas músicas cantam, mas..." (se destoo da frase original não é por distorção voluntária, mas por culpa da minha péssima memória).
     
    Quem domina o discurso cultural hoje, claro, não são mais artistas com talento suficiente não só para criar um verdadeiro movimento musical, mas também reinventar a própria música. O que ouvimos atualmente, os maiores sucessos das rádios, do YouTube, Vevo - e mesmo dos programas de televisão - são meros pastiches de gêneros estrangeiros, eventualmente com um ou outro "sabor" nacional, mas tão pasteurizado que é quase um ingrediente de fantasia. Para usar a analogia de Chico, é um Brasil talvez menos belo - mas é o que está mandando. E é melhor você se contentar com isso.
     
    Felizmente, tem gente que não se contenta. Ao largo desse gosto massificado, sigo procurando - e para minha grata surpresa, encontrando - artistas que seguem caminhos próprios, que fazem música que, se não revolucionária, é de uma qualidade absurda e... que nos enche de esperança. O Brasil, como (novamente) Chico diz no documentário, está melhor. É um pais mais justo, mais transparente, com mais oportunidades - sobretudo mais oportunidades de expressão. Não é, lamentavelmente, o melhor momento para se ouvir essa exuberante sinfonia de ritmos e sons que produzimos com criatividade e talento únicos no mundo. A palavra de ordem, tirada ao que parece da própria essência dos algoritmos que hoje conduzem nossa vida (e nossas vontades), é "goste só daquilo que você goste" - ou do que os outros gostam. "Não explore, não se aventure, repita as mesmas coisas"... Por isso mesmo, é um prazer descobrir artistas - e olhe que, como tenho rodado o país, tenho descoberto muitos deles recentemente - que estão a fim de fazer diferente. E quem sabe um dia serem tão populares como Chico já foi.
     
    Para esses talentos - e para as pessoas que, como eu você, têm os ouvidos abertos para o novo -, "Chico - Artista brasileiro" é um filme inspirador e imperdível. Funciona bem, mas não é um documentário excepcional - é até bem convencional, daqueles que misturam trechos de entrevistas com clipes de música. Nessa categoria, todos os arquivos são sensacionais. Desde um raro registro em que Chico, em pleno palco, esquece a letra de uma de suas músicas, até uma perdida gravação de estúdio, com Bethânia cantando "Olhos nos olhos" - com Chico apenas olhando ali ao seu lado, enquanto a cantora dá uma nova dimensão a uma de suas composições mais bonitas. Os surrados clipes dos festivais de música estão ali também, com um ótimo tratamento de som - e pelo menos uma cena que eu nunca tinha visto: quando Chico chama sua mãe (que tinha horror de ver seus filhos no show business) ao palco para dar um "oi".
     
    Mas há também clipes exclusivos, feitos especialmente para o filme, com uma escolha bem eclética de reportório e de intérpretes. A cantora portuguesa Carminho tem a honra de ganhar duas canções - se bem que uma é em parceira com Milton Nascimento. E por falar em colaborações, o dueto de Mart'nália com Adriana Calcanhoto (cantando "Biscate") é um presente inesperado. E a melhor descoberta desses convidados - pelo menos para mim, que não conhecia seu trabalho - foi Moyseis Marques, que - ouso arriscar - faz a melhor interpretação que já ouvi de "Mambembe".
     
    Outros depoimentos são ilustrativos - algum momento da irmã Miúcha, a intimidade de Edu Lobo, e certamente a história que Bethânia conta, de quando foi conhecer Mãe Menininha pela primeira vez e cantou para ela, sim, "Olhos nos olhos" -, mas no final, o "dono da festa" é o próprio Chico. Meu momento favorito não vem da entrevista "sentada", bem iluminada, perfeitamente enquadrada, que é a costura principal do filme, mas de uma "história roubada", que quase não fica registrada - não fosse pela insistência do próprio Chico de chamar a câmera e se abrir num sorriso a narrando.
     
    Tem a ver com a sua procura pelo "irmão alemão" - ao mesmo tempo personagem da vida real e do livro mais recente de Chico. Em Berlim, à procura dessa história que seus pais sempre esconderam a vida inteira, ele descobre finalmente que seu irmão não está mais vivo, mas acha uma consolação feliz para esse desfecho triste através da - o que mais? - música. Lembrando que seu primeiro sucesso no Brasil foi também um sucesso internacional - "A banda" (imagine "Gangnam style" só que como uma canção de verdade... bem, eu divago, eu sei) -, gravada no mundo todos e em várias línguas, ele pergunta às pessoas se existiu uma versão em alemão, e se ela foi popular. Com ambas as respostas afirmativas - e ciente de que seu irmão flertou com a vida artística e a carreira de cantor (há um impagável clipe de época com ele no filme) -, Chico chega à conclusão de que um dia, muito provavelmente, seu irmão teria cantado "A banda" em Berlim - e sorri pensando que a música, afinal de contas, teria os unido.
     
    Nessa hora, Chico solta mais uma de suas gargalhadas - daquelas que seus amigos conhecem bem, e que o divertem tanto que muitas vezes afoga seu próprio fôlego e nem permite que ele termine de contar a história que começou. Ele chega a ficar vermelho de euforia - e a gente poderia até achar que ele se perderia para sempre nesse momento de alegria, não fosse o próprio Chico ter nos lembrado, minutos antes, que "entusiasmo é feito pra passar"...
     
    Como passa o samba que um dia ele cantou no Chacrinha. Passam as modas musicais. Passam a arrogância e a prepotência de quem acha que sabe tudo. Passam o lixo que as pessoas de poder insistem em nos entregar no lugar do bem que poderiam fazer. Passam as mágoas e os amores. Passam os insultos e as ofensas. Passa tudo. E passa bem.

  • De volta para o futuro

    Elenco da MTV Brasil se reencontra para comemorar 25 anos do canal
    Quando o Police lançou seu álbum “Synchronicity”, em 1983, a MTV Brasil não estava sequer em gestação. A própria MTV americana ainda saía da infância, estava mais precisamente no seu segundo ano. Mas esse conceito precioso de sincronicidade que a banda de Sting me apresentou mais de 30 anos atrás caiu como uma luva hoje, quando acordei ainda da “ressaca boa” da festa de reencontro dos 25 anos da nossa MTV, que aconteceu ontem em São Paulo.

    Explicando rapidamente, sincronicidade “é quando”… Digamos que é a capacidade infinita e inexplicável do Universo de fazer com que coisas correlatas aconteçam ao mesmo tempo - as famosas “coincidências” que a gente observa no dia a dia, elevadas a uma potência muito maior. Pois foi exatamente disso que me lembrei quando zilhões de mensagens - nos meus e-mails, whatsapps e mesmo no Facebook (pois é, estou ensaiando para explicar aqui para você porque abracei a rede social - mas não vai ser hoje, desculpe) - me lembrando que hoje é o “Back to the future day”, o dia tão celebrado no filme cult “De volta para o futuro”.

    Não, este não será um post dedicado a este assunto - se você não é fã da saga de Michael J. Fox e Christopher Lloyd, lançada originalmente em 1985, não se preocupe, siga comigo (até porque, apesar de a minha fraca memória registrar que tenha gostado bastante do filme na época, e reconhecer seu valor no cânone da nossa cultura pop, nunca fui um grande entusiasta do movimento). Uso o título da produção - que é genial - e a data de hoje (que é quando nossos “heróis” do filme retornam para a história original) para celebrar outro aniversário: justamente o de 25 anos da MTV Brasil.

    De uma maneira que só a sincronicidade nos ajuda a entender, ao reunirmos boa parte das pessoas que fizeram a história do canal - não só VJs, mas todo o pessoal que trabalhou com tanta paixão nesse projeto - estávamos celebrando uma volta ao passado que é ao mesmo tempo um retorno ao futuro. Ou pelo menos ao que, naquela época achávamos que seria o futuro da TV.

    Hoje quando alguém me faz uma pergunta sobre o que vai ser da televisão nos próximos anos, eu nem arrisco uma resposta. Tudo está mudado tão rápido que qualquer previsão, tenho certeza, será risível daqui a um par de meses. Mas lá no início dos anos 90, uma molecada achou que estava sim desenhando esse futuro - se não o da maneira como nós assistimos à TV (que é o que o aspecto mutante mais acelerado desse objeto do nosso fascínio), pelo menos o futuro da maneira como ela era feita.

    O primeiro impacto dela, que é sempre mais fácil de citar, é o visual. Quando a TV convencional estava no auge da sua sofisticação, veio a MTV “sujar” tudo - para melhor. Se uso aspas, é para lembrar que essa sujeira era colorida, rabiscada, irreverente - e sobretudo jovem. Poderíamos falar horas sobre isso - especialmente sobre seus impactos positivos (mais de um programa no ar atualmente, em TV aberta, bebe nessa fonte de 25 anos atrás) - e até mesmo os negativos (a “sujeira” mal aproveitadas de tantos programas que apelam, substituindo falta de recursos não por criatividade, mas por soluções fáceis… e geralmente de mau gosto). Mas a “quebra de paradigma” que a MTV Brasil trouxe vai muito além disso.

    Eu sempre digo que as saudades maiores que eu tenho de trabalhar lá têm a ver com a possibilidade de errar. Entre tantos programas que fizemos, vários foram bem-sucedidos: viraram assunto, foram copiados na TV aberta (e mesmo no cabo), lançaram talentos. Mas muitos foram retumbantes fracassos - que nem o fã mais devoto, que acompanhou tudo que foi mostrado desde 20 de outubro de 1990 talvez queira se lembrar.

    A MTV Brasil sempre andou na corda bamba da baixa audiência. Mas para uma TV cujos números indicavam que “quase ninguém” estava vendo, até que ela fazia um razoável barulho - e espalhava uma respeitável influência. Quando mostrávamos um programa que não tinha sido muito legal (alguém aí se lembra de um chamado “Bibibo no bobobó”?), a gente logo tirava do ar. Mas quando uma coisa dava certo… aí a gente repetia até as pessoas começarem a prestar atenção! E o barulho só ia crescendo…

    Não tínhamos orçamento para nada - e por isso éramos obrigados a contar apenas com nossa criatividade. Nisso, e em tantas outras coisas, fizemos escola. Que prazer que foi encontrar as pessoas ontem e ver que todas estão num momento ainda mais inspirado nas suas vidas do que quando nos “separamos” - eu deixei a MTV Brasil em março de 1994, mas muita gente que estava lá ontem se desligou em outros momentos, seguindo carreiras ainda mais duradouras e brilhantes, dentro e fora dela.

    Não foram poucos os que faltaram à festa porque estavam envolvidos em outros projetos - filmes e séries de TV assinadas por diretores premiados, que começaram como nossos estagiários, alguns deles até fora do Brasil… Mas quem estava lá anunciava sem nenhuma falsa modéstia onde andava empregando seu talento - ou, em vários casos, seus talentos.

    Reencontrei gente que está até hoje na MTV e se orgulha de ter participado de todas as transmissões dela até hoje. Um ótimo editor de imagens que hoje trabalha num dos maiores sites de notícia do Brasil. Uma estagiária que hoje é assistente de direção na mesma TV em que trabalho. Um outro editor que hoje é dono, ao lado de sua mulher, de um serviço de “delivery” de comida orgânica. Uma figurinista que assina o visual de boa parte dos principais filmes brasileiros. Uma maquiadora que se tornou a “visagista” favorita de um dos cantores que mais arrastam multidões pelo Brasil. Outro estagiário que está prestes a lançar sua primeira série - sobre o Zé do Caixão (e mal podia esconder sua excitação). Uma produtora de elenco que hoje é a maior autoridade de música alternativa por aqui. Um câmera que montou sua produtora. Aliás, dois. Um outro que é câmera até hoje - e com orgulho. Uma produtora que largou a TV para ter três filhos - e viver para criá-los. Uma VJ que é uma das DJs mais requisitadas das noites paulistanas e cariocas - além de uma boa atriz. Outra VJ que virou uma das repórteres mais curiosas do circuito a cabo. Uma diretora comercial que teve o orgulho de ver seu filho - que era criança quando trabalhamos juntos - crescer para trabalhar na MTV quando já tinha seus 20 anos. Uma programadora musical que virou também uma “expert” em playlists. E um monte de gente que eu nem sei direito o que faz hoje em dia mas que, só pelo carinho dos abraços que trocamos, tenho certeza de que está mais do que realizado.

    Fomos sim privilegiados de poder trabalhar nesta MTV - e acho que isso deixou marcas em todos nós. Não havia ninguém que não respondesse ao reencontro com uma história engraçada para contar - mesmo que ela obedecesse a lógica napoleônica de que primeiro a história acontece como tragédia e depois volta como farsa… Sim, episódios “desastrosos” eram motivos de risada nesta noite de confraternização - quando aquele bando de gente “sem experiência” resolveu brincar de futuro da TV.

    Lamentamos a falta de um “esforço concentrado” como era a MTV naquela época, no início dos anos 90 - um espírito que, talvez com menor intensidade, perdurou nela até recentemente. Hoje tem muita gente boa fazendo coisas diferentes - sempre tem. Mas onde? Como um amigo meu comentou na festa, elas estão espalhadas pelo YouTube, torcendo para seu talento acender alguma centelha que o torne viral - e possa chamar atenção de mais gente. Acho válido - sempre é válido apostar no novo. Mas essa “pulverização” dos talentos, ao mesmo tempo que torna tudo mais democrático também dispersa nossa atenção. Vai sair gente boa disso tudo? Sempre sai. Mas o esforço para se destacar agora é muito, muito maior.

    O que vai ser dessa gente que tem tanta coisa pra mostrar - e um espaço infinito para a exposição? Nem arrisco um palpite. Assim como não quero fazer previsões sobre o futuro da TV. Todas elas - e sobretudo a TV aberta - estão passando por processos transformadores interessantes, em grades e em formatos. Há inúmeras produções atualmente que são atestados de ousadia - e que, por isso mesmo, enfrentam obstáculos, primeiro da crítica (que ironicamente segue olhando a TV como se fossem os anos 80), depois do público, que naturalmente rejeita o novo (ao mesmo tempo que cobra renovação).

    Mas esta que é a “dor e a delícia” de fazer TV: arriscar! Essa é, resumindo, a grande lição que aprendi na MTV - eu e todo mundo que estava naquela festa ontem. Ali, no dia 20 de outubro de 1990, compramos um bilhete para o futuro. Para o nosso futuro! E nos encontramos 25 anos depois com muita coisa para contar e para refletir. Ah! E com pelo menos uma coisa que não mudou nada: a vontade de fazer diferente.

    Foi com essa sensação que todo mundo que estava lá acordou hoje. Inspirado por isso, escrevi um agradecimento para um grande grupo de Whatsapp que se formou às vésperas da festa - e que não para de trocar fotos e ideias mesmo no momento em que escrevo isso. Pelas respostas que recebi, acho que estava certo quando disse que:

    “No fim, foi a festa que a gente queria que fosse. Foi uma festa de encontros, de muitos beijos e abraços - de ver e conversar. De maneira tão querida, que aconteceu uma coisa que jamais pensei que poderia acontecer numa festa da MTV: ninguém queria dançar. Claro que a banda salvou a honra da nossa pista. Mas mais que isso, o povo queria trocar, queria falar, lembrar, queria ter certeza de que o espírito da coisa ainda estava lá! Se não no ar, pelo menos dentro da gente. Foi uma festa nossa. Conseguimos ainda que fosse íntima, mesmo com centenas de pessoas juntas. A gente inventou, colocou tudo de pé, chamou, transmitiu, apresentou… Fizemos essa doideira em dez dias, juntamos o povo, deixamos todo mundo feliz. Sinal de que ‘the groove is STILL in the heart’. Tava tão boa nossa festa que eu acho até que vou pedir pra editarem uma matéria sobre ela para a próxima edição do Semana Rock”…

    Se você não tem pelo menos uns 35 anos, não faz ideia do que eu estou falando quando cito o “Semana Rock”. Mas não tem problema. Sei que no meio dessa suposta inércia que assola o nosso pop, tem gente (talvez você?) com vontade suficiente para fazer novas revoluções. Lembre-se: nenhuma delas é pequena demais ou não vale a pena.

    Vamos em frente com o mesmo espírito. Como diria George Michael em “Freedom 90” - a mesma música com os versos que descreviam que ele “foi pra casa e voltou com uma cara nova para os garotos da MTV”: “now I’m gonna get myself happy”…

  • Onde moram as bestas

    Cena de 'Beasts of no nation', do Netflix
    Como as assustadoras decorações de Natal dos shoppings que começam a pipocar cada vez mais cedo no ano - quer apostar que até o final deste mês você já viu uma ou duas na tua cidade? - os rumores sobre indicações para o Oscar são lançados cada vez com mais antecedência. Você que - como este que vos escreve - gosta do cinema americano e acompanha seus caminhos errantes - como os deste que vos escreve - já leu ou ouviu uma ou outra previsão ligeiramente prematura a esta altura do ano. A mais improvável delas, talvez, a de que o Abraham Attah, um garoto ganense de 15 anos, é uma aposta certa para concorrer à estatueta este ano.

    Eu escrevi improvável? Bem, eu talvez esteja sendo conservador demais com o que a gente já conhece como a "máquina de promoção de Hollywood" - a mesma que, três anos atrás, conseguiu emplacar uma indicação para a (ainda mais jovem) Quvenzhané Wallis por sua participação em "Indomável sonhadora". Implicância minha - eu sei. Talvez eu tenha um problema com atores mirins - especialmente os que fazem papéis de oprimidos, algo que facilmente comove plateias. E é esse "problema" que ficou zunindo no meu ouvido durante as mais de duas horas do filme "Beasts of no nation" - uma das estreias mais esperadas do ano que conferi não numa sala de cinema, mas no conforto da minha sala, graças à Netflix (mais sobre isso daqui a pouco).

    Já sabia que ia escrever sobre "Beasts" mesmo antes de ele estar disponível. Eu venero o livro de Uzodinma Iweala em que ele foi baseado (no Brasil ele ganhou o título de "Feras de lugar nenhum") - aliás, tenho um carinho especial porque ele foi tema de um dos meus primeiros posts deste blog que mês passado comemorou 9 anos! Foi então com muita expectativa - insuflada pelas críticas extraordinárias que o filme já vinha recebendo nos Estados Unidos - que dediquei minha tarde de domingo para ver a história de um garoto que é recrutado numa milícia depois de ter escapado da sua cidade onde seu pai, seu avô e seu irmão (sua mãe e sua irmã bebê tinham escapado já para a "capital") foram assassinados cruelmente em nome da guerra civil estúpida que assola um anônimo país africano - mas que possivelmente é o Congo.

    A cada cena de Agu, o personagem interpretado por Attah, eu ficava pensando: será que este é mesmo um grande trabalho de ator, ou estamos mais uma vez diante de uma generosa crítica que, para diminuir sua culpa de uma vida tão opulenta, concede a uma história trágica (e ao menino que a interpreta) um passe-livre para o tapete vermelho das premiações hollywoodianas? Pode uma criança realmente interpretar, viver um sentimento que não conhece? Podemos ver, em suas expressões faciais ainda em formação, traços de angústia, terror, dor, eventual alegria, vergonha - e até alguma esperança? "Beasts of no nation" já estava quase terminando e eu não estava convencido de que esse rapaz - que não aparenta seus 15 anos, mesmo que o personagem que ele interpreta tenha aquela idade indefinida no filme, que pode ser qualquer coisa entre 7 e 14 anos - era mesmo um possível candidato a "grande ator". Aí vem o seu texto final.

    Cena de 'Beasts of no nation', do Netflix

    Seria uma confissão - se Agu tivesse tido a coragem de contar as coisas que fez para a educadora que está na sua frente. No lugar disso, ouvimos ele simplesmente dizer que fez coisas inimagináveis desde que foi recrutado como soldado mirim por uma milícia maluca que nem sabia direito pelo que estava lutando. E aí, como num daqueles socos finais que os grandes lutadores sabem dar para encerrar um embate no ringue, ele olha para a câmera e diz que um dia já teve um pai. Uma mãe. Um irmão e uma irmã. E eu não tive mais dúvidas: a não ser que se cometa uma grande injustiça, o Oscar é de Abraham Attah.

    Dito isto, "Beasts fo no nation" é um filme que você tem que assistir - e não uso essa expressão como figura de linguagem. Ele fala sim de um dos aspectos mais horríveis da humanidade - esse aliciamento de menores, sobre o qual a gente ouve falar tanto nos noticiários internacionais, quando não mudamos de canal porque, afinal de contas, que chatice saber dessas coisas hediondas que acontecem do outro lado do Atlântico naquele que muitos preferem chamar de "continente perdido". Mas espere um pouco: será que esse processo cruel que o filme mostra é muito diferente daquele que a gente sabe que acontece no tráfico de drogas - que é uma inegável realidade das grandes cidades brasileiras?

    Em mais de uma cena de "Beasts" - que é brilhantemente dirigido por Cary Joji Fukunaga, que assinou a primeira temporada de "True detective" - lembrei-me de cenas que já vi no próprio noticiário nacional: aquele bando de garotos avançando fortemente armados numa comunidade. Nossa realidade brasileira já está tão descaradamente desigual, que é num certo estado hipnótico que registramos imagens como essa, ainda que presenciadas ao vivo. Uma amiga que foi a um evento semana passada no Rio, chamado "Comida de favela", contava-me que quase não se espantou ao ver pelas mesmas calçadas em que ela experimentava delícias culinárias do morro, garotos empunhando fuzis.

    A palavra-chave aí - e que o filme explora espertamente - é o "quase". Todos nós já estamos saturados de registros desse "mundo cão". Quase não nos importamos mais. Mas Fukunaga, inspirado pela história original e poderosa de Iweala (que aqui foi editado pela Nova Fronteira, mas está fora de catálogo - boa sorte!) - nos lembra que sempre é possível chamar nossa atenção para problemas como esses. Ainda que seja com uma estratégia de choque.

    O trailer original que pega ligeiramente emprestado, na sua estrutura de "Sniper americano" ("será que ele vai matar ou não?") - já dá o tom do que vamos ver. As escolhas que Agu tem de fazer o tempo todo são brutais. Sua experiência - que, como logo percebemos, não é só sua, mas de todos os garotos quer estão sob a guarda do Comandante (assustadoramente perfeito na interpretação de Idris Elba) - é batizada no sangue, no ódio, num inexplicável desejo de vingança que é implantado na sua jovem cabeça sem que ele nem tenha noção ainda do que significa essa palavra.

    O horror inicial de Agu logo é substituído por uma rotina. É isso que ele tem que fazer? Ok. Vamos em frente. A sequência de atrocidades que ele vê - e que nós acompanhamos - é tão atordoante que, já na segunda metade do filme é preciso que uma mãe e uma filha sejam sacrificadas de maneira mais horrorosa que já vi o cinema retratar uma crueldade (lembra de "Full metal jacket"? ... fichinha!) para que você saia do seu torpor e fique então indignado. Ou melhor, revoltado. Ou ainda, horrorizado de lembrar que coisas como essas - ou o sacrifício de pessoas com granadas grudadas nas suas bocas, que vemos numa outra cena chocante - acontecem no exato momento em que você está confortavelmente assistindo ao filme na sua casa.

    Quero falar disso - dessa reviravolta que a Netflix está fazendo no mercado cinematográfico (depois de fazer coisa parecida com a televisão). Mas antes, deixe-me insistir: veja "Beasts of no nation". Na sua casa. Na casa de um amigo que tenha a assinatura. Dê um jeito e assista. Ponto. Você vai sair na rua de um jeito diferente, tenho certeza.

    Aliás, as coisas estão mesmo mudando. Achei curioso que em nenhuma crítica que li sobre "Beasts" na imprensa americana eu vi uma linha sobre a sequência inicial do filme - que é uma referência ao mesmo tempo provocante, irônica e inesperada. Ou ainda, uma meta referência. Antes de a tragédia se abater sobre Agu e sua família, ele está brincando com seus amigos de "televisão". A primeira imagem do filme é a que ele é um colega fazem uma espécie de "casting": recrutando outras crianças para alguma coisa. Com uma caixa de TV antiga, Agu sai pela sua cidade tentando vender aquilo como se fosse uma televisão de verdade: ele coloca a carcaça na frente de alguém, gira os canais (sim, é das antigas), e dentro do "monitor" (na verdade, um "buraco mágico"), a ação se desenrola: pode ser um filme romântico, uma luta de kung-fu, ou até mesmo uma "imagem em 3D", como Agu anuncia - e seu elenco versátil interpreta. Nós mesmos, espectadores (ou telespectadores?) acompanhamos tudo por essa janela.

    "TV da imaginação", é seu "slogan" - e não pude deixar de reparar na ironia de estar vendo o próprio futuro de Hollywood retratado ali naquele filme que, no lugar de estrear em milhares de salas de cinema nos EUA, foi apresentado ao público por um serviço de "streaming" de TV - a própria Netflix (este é o primeiro filme de longa metragem produzido por ela, disponível para seus assinantes desde sexta-feira passada). Com essa estratégia de lançamento, "Beast" provocou um boicote das empresas exibidoras de cinema americanas - e estreou apenas em algumas poucas salas em Nova York e Los Angeles, para poder qualificar ao Oscar. Mas o recado está dado: o futuro da telona talvez esteja na telinha. E eu diria que é um futuro interessante - mas eu divago...

  • Os sons (e imagens) ao (meu) redor

    Três bons filmes brasileiros em quatro dias? Quando foi a última vez que eu escrevi uma frase como essa? Ou melhor: quando foi a última vez que você escreveu uma frase dessas? Ou sequer pensou nisso?

    Claro que estou falando de uma situação especial: tenho tido a sorte de estar com tempo disponível num dos melhores festivais de cinema do Brasil - o do Rio de Janeiro. E por uma estranha confluência (“astral”, para os que acreditam nisso), várias pessoas próximas (e queridas) estão com trabalhos nesta mostra. Fui assistir ao primeiro deles na sexta passada. Depois vi um outro ótimo no sábado. E ontem “fechei” o ciclo com um filme que, além de ter inúmeras razões pessoais para gostar - já falo sobre isso com mais transparência daqui a pouco -, é um dos mais legais que vi nos últimos tempos.

    Cada um deles, pelos parâmetros deste espaço (você que me acompanha há muito tempo sabe do que eu estou falando), mereceria um post separado. Mas vou cometer a “injustiça” de falar de todos eles num texto só - e apostar que isso já será suficiente para despertar sua curiosidade quando eles entrarem em cartaz. Isto sendo o cinema brasileiro, como você pode imaginar, vai demorar um pouco para acontecer. Isto, porém, é um detalhe.

    O que vale a pena a gente celebrar aqui hoje é esse vigor de uma criação nacional, que finalmente deixou de ser monotemática (ou só regional ou só “ urbana problemática”) e revela, finalmente, aquilo que a gente que é fã de novela sabe há tempos: que o brasileiro tem sim muito talento para contar histórias.

    Parte dessa tendência tem a ver com a percepção de que o cinema brasileiro é um formato criativo sim - e não apenas no “pedestal da grande arte”. Quando nossa produção era pequena, a vertente para este universo ao mesmo tempo protegia e enobrecia nosso magro acervo de títulos. No entanto, agora com uma explosão de títulos - facilitada pela facilidade cada vez maior de fazer um filme - temos, ao que parece, a oportunidade de ver surgir trabalhos ainda mais incríveis e criativos.

    Não sou “teórico” de cinema - nem aspiro ser um. Observo tudo isso com a minha contumaz curiosidade de espectador - e celebro essa “temporada fértil” do nosso cinema com a alegria de quem, algumas décadas atrás, ia na venerada Mostra de Cinema de São Paulo (e aqui pago mais respeito a seu criador, Leon Cakoff - sobre quem já escrevi aqui mesmo), e sonhava em ver aquela exuberância cinematográfica que ela trazia do mundo todo um dia sendo feita no seu próprio país. Mas estou falando muito de teoria - vamos à prática.

    Cartaz de 'Zoom'O filme que abriu esta minha temporada nacional foi “Zoom”, de Pedro Morelli. O motivo principal que me levou à pré-estreia foi a proximidade com a protagonista do filme, Mariana Ximenes - uma companheira de TV, de vida, de arte, alguém cuja minha admiração que dedico a ela é sempre recompensada com inteligência, sensibilidade e… uma energia que mal consigo descrever.

    Quando a gente entra para ver o trabalho de alguém tão próximo, é sempre uma situação esquisita. Eu tento já não “chegar gostando só porque sou amigo” - eheh. Tento ser neutro - talvez até pendendo para o lado oposto, como quem entra já esperando que não vai gostar do que vê. E no caso de “ Zoom” isso é fácil: o filme tem um começo que é difícil de engolir. Só depois de mais ou menos meia hora de filme você começa a entender que tudo que ele está te “vendendo” é exatamente para criar o universo narrativo extremamente sofisticado que o diretor quer te apresentar.

    Uma vez que você percebe que não se trata de apenas uma história, mas de três - que estão conectadas da maneira mais surpreendente que você pode (ou não) imaginar -, “Zoom” vira uma imensa fonte de diversão. Confusa às vezes, mas adoravelmente confusa. Eu diria até que essa confusão é parte da intenção do diretor… mas vamos ver o que posso contar do filme sem estragar suas ótimas surpresas.

    Começando por Mariana! Sua personagem é uma modelo brasileira - deslumbrante, óbvio -, que mora no Canadá com seu namorado (interpretado pelo ídolo da antiga série “Barrados no baile”, Jason Pristley). Ela quer escrever um livro, mas ninguém (nem seu namorado dá esse crédito a ela). Seu livro, porém, tem uma história muito parecida com a de uma menina que trabalha numa bizarra fábrica de bonecas eróticas, tem uma vida sexual longe de ser ideal, envolve-se em uma confusão por causa do silicone que implantou nos seios, e ainda tem um inesperado talento para imaginar (e desenhar) incríveis histórias em quadrinhos. Que por sua vez contam a história de um diretor de cinema, ultra bem-sucedido financeiramente (só sucessos de bilheteria) mas que resolve fazer um “filme de arte”, contando a história de uma modelo brasileira que mora no Canadá e quer escrever um livro…

    Sim, é de dar nó - mas o filme é bem construído o suficiente para, quando você percebe que está no meio de uma trama complicadíssima, já é tarde demais: quer ir até o final. A recompensa por emprestar sua atenção à história de Morelli é grande, já aviso. E o trabalho de Mariana - que tem boa parte das suas falas em inglês - empresta não só sua beleza e a delicadeza (com o perdão da rima) a sua personagem, como também uma leveza (outra rima!) para a personagem que tem a difícil missão de nos desorientar entre o plausível e o improvável da história.

    Falei que parte do charme de “Zoom” é que um terço da sua história é na linguagem de quadrinhos? Gael Garcia Bernal, por exemplo, que faz o papel do diretor de cinema, só aparece na tela como um cartoon - jamais em “pele e osso”… E o cuidado gráfico vai além dessa parte do filme, oferecendo “Zoom” não só como um trabalho esperto, mas também lúdico e estético.

    Cartaz do filme 'Jonas'Agora, “Jonas”. Sempre em nome da transparência, minha conexão com este filme também é pessoal. Sou amigo, há décadas, da diretora Lô Politi - amigo, se não de adolescência, da melhor parte da juventude. Lô é uma daquelas amigas com quem nos conectamos não só pelas pessoas e conexões que nos colocam juntos, mas por uma estupenda afinidade de humor, que costura nossa relação há anos. Digo tudo isso para explicar que, como no caso do filme de Mariana, cheguei à sessão de “Jonas” com cuidado. Não queria gostar logo de cara do filme. Mas aí…

    Aí Lô nos oferece logo nos primeiros minutos um Jesuíta Barbosa (Jonas) apaixonado - pela filha do patrão da casa onde sua mãe é doméstica; Criolo no papel de um traficante; e uma promessa de triângulo amoroso que… Bem, melhor eu parar por aqui: você já entendeu que “Jonas” tem muita coisa para prender sua atenção logo de cara.

    Este é um filme estranho: usa o Carnaval como pano de fundo, mas o cenário é a festa paulista, não a carioca; traz o melhor cantor e compositor atual do Brasil (Criolo) e nos convence de que ele é também um ator com potencial; fala sobre a sempre complicada relação entre patrões e empregados, mas vai além dos clichês da “boa vizinhança” e pega fundo nas consequências do que pode acontecer quando esses dois universos se misturam. Enfim, vários aspectos que poderiam funcionar contra a história acabam se somando num trabalho que, acima de tudo, tem um cuidado visual que vai até além das expectativas de quem conhece o trabalho de Lô como diretora de filmes publicitários (esta é sua estreia na ficção).

    Como todo bom Jonas, este do filme também tem sua baleia - no caso, um carro alegórico de escola de samba, que funciona como um cativeiro não apenas de reféns, mas também dos sonhos de um “filho de empregada” que de repente se vê diante de situações que ele nunca foi preparado para enfrentar - dilemas éticos e emocionais que, pela complexidade que adquiriram, só poderiam terminar em chamas. Amor demais dá nisso. Ou dá em “California”.

    Vamos ao “caso” Marina Person - uma estagiária que, lá pelo começo dos anos 90, veio se juntar à fauna exuberante que fazia a MTV “dos velhos tempos”. Fui eu, ao lado da minha colega Jacqueline Cantore, que contratei Marina para cuidar de um programa que se chamava “Cine MTV” - suas credenciais não mais sólidas do que o fato de ela trazer cinema no DNA (Marina é filha do venerado diretor Luis Sergio Person, de “São Paulo, Sociedade Anônima”). Acho que eu e Jacqueline estávamos bem de intuição…

    De lá para cá, Marina cresceu não só como apresentadora de TV (algo que se tornou um tempo depois de ter assumido o “Cine MTV”), mas também como diretora. Ah! Cresceu também como minha amiga: já são duas décadas e meia de convívio intenso - nas cozinhas de nossas casas (há uma velada competição entre a gente para ver quem surpreende mais o outro com seus dotes culinários), no nosso ócio pelo mundo, por aí. Mas focando na carreira, Marina evoluiu de um simples (e divertido) curta-metragem, “Almoço executivo” - que conta com minha “nobre” participação (!) - para um filme completo de maneira brilhante. (Passou também pelo batismo no formato longo com o emocionante documentário “Person”, um retrato mega pessoal e tocante do diretor que também era um pai - um filme tão forte que merece ser discutido com mais espaço uma outra hora).

    Cartaz de 'Califórnia'Num daqueles resumos cruéis de site de venda de ingressos (ou de roteiro de jornal), “Califórnia” fala de uma adolescente que descobre o tortuoso caminho do amor quase ao mesmo tempo que se vê obrigada a abraçar o sentido da morte - e sai desse processo como uma menina não exatamente adulta, mas interessante, preparada, aberta, com menos medo do que geralmente essa fase da vida nos assola.

    Se nos filmes que citei anteriormente minha intimidade com as pessoas envolvidas me protegeu de certa maneira do processo de criação deles - senti saudades de Mariana quando ela foi filmar no Canadá, e tinha notícias apenas distantes sobre o trabalho da Lô -, meu contato com Marina é tão intenso que não tinha como eu escapar dos seus bastidores. Dei conta dos primeiros esboços do roteiro, das seleções de elenco, das filmagens, da montagem - e das dificuldades de todas essas etapas.

    E ainda tive o prazer de poder palpitar na trilha sonora que é não só a espinha dorsal de “Califórnia”  como também uma referência forte para nós, que fizemos parte do início da MTV - sem falar que, uma vez que a história se passa em meados dos anos 80, quando eu tive boa parte de minha educação musical, os temas que estão no filme me são especialmente caros… A música principal, no entanto, já estava definida desde o começo: “The caterpillar”, do The Cure - uma feliz metáfora do reinos dos insetos para falar de uma menina que se transforma num ciclo de vida, como uma lagarta (“caterpillar”). A referência vale até na descrição física da personagem principal do filme, Estela - vivida de maneira natural e emocionante por Clara Gallo: ela tem sobrancelhas escuras, fortes, marcadas, e acaba se tornando ela mesma a “garota taturana” cantada por Robert Smith.

    Mas a história que “Califórnia” conta é bem menos superficial do que a descrição de uma linha que fiz acima - e mais interessante até do que um mero paralelo musical. Apesar de todas as referências temporais - e para alguém da minha geração, as músicas, gírias, modas e os trejeitos dos anos 80, fielmente reproduzidos no filme, são quase uma distração, de tão interessantes -, o que Marina mostra é uma história que deve emocionar qualquer adolescente. De qualquer idade.

    Toda menina é ou já foi Estela - assim como todo menino já foi ou desejou ser JM (Caio Horowicz), o “curioso e problemático” menino que entra no colégio no meio do ano, e é imediatamente assunto em todas as classes. Estela e JM não são um par romântico óbvio. Quando a conhecemos ela tem uma paixão bem careta pelo menino mais convencional da turma: um loirinho que acha que é surfista, e que, bem interpretado por Giovanni Gallo, é protagonista de um dos raros casos de “assassinato” de uma música de Lulu Santos (aquela que com o mesmo título do filme). Leva um tempo para Estela se desiludir com esse garoto - e mais um tempo ainda para ela perceber que o “cara da sua vida” é JM.

    Assim como sua personagem encontrou a atriz perfeita em Clara, Marina teve também a felicidade de encontrar seu JM perfeito. Os dois atores recheiam seus pares fictícios com a dose necessária de paixão, dúvida e desprendimento que faz com que qualquer pessoa que já teve 17 anos se identificar imediatamente com eles - e com a história de (quase) amor que eles vivem.

    Sim, mais uma história de amor adolescente - mas dessa vez pontuada por uma trágica narrativa de morte. O tio de Estela, interpretador por Caio Blat, é adorado por ela. O sonho da menina é ir para Califórnia e passar uma temporada com ele. Os planos, infelizmente, são interrompidos bruscamente quando sua mãe (Virginia Cavendish) anuncia que seu irmão está voltando por tempo indeterminado para o Brasil.

    Nós, espectadores, já sabemos que a notícia é ruim: ele é uma das primeiras vítimas da Aids - ainda pouco entendida nos anos 80. Mas Estela demora para sacar o que está acontecendo, sobretudo porque no seu retorno, numa cena que é uma espécie de “master class” (mesmo para um ator já tão reconhecido como Blat) ele disfarça muito bem o que está passando por sua cabeça: assediado pela sobrinha e suas amigas, ele tem que esconder a tragédia da sua volta com a excitação do reencontro. É um exemplo de atuação, que Blat só faz crescer à medida que a saúde de seu personagem deteriora. Para salvá-lo do embaraço nesse retorno, o tio traz para a sobrinha o presente da música - Bowie sobretudo, mas também uma banda “diferentona” que arranca até um elogio do calado JM: uma tal de New Order…

    A esta altura, estou aqui me segurando para não falar mais de “Califórnia”. Quero guardar alguma coisa para dezembro - quando o filme deve estrear em circuito nacional. Mas para me despedir - e fechar essa trilogia de filmes nacionais bons que o Festival do Rio me proporcionou este ano - vou só resumir dizendo que ele é muito maior que qualquer fragmento da sua trama que eu resolver comentar aqui.

    Porque “Califórnia” não é um filme sobre amor. Não é um filme sobre adolescência. Não é um filme sobre a estranheza da alma nem sobre todas as dúvidas que a gente tem sobre o que a gente espera da vida. Nem sobre o que a vida espera da gente. Não é tampouco um filme sobre nossa incapacidade de entender nosso desejo. É tão simplesmente um filme sobre música. E, sendo assim, é um filme sobre tudo isso…

  • Será o pai de Amy o único vilão?

    Pôster do filme 'Amy'Uma vez durante uma aula de filosofia, o professor fez uma referência curiosa. Nem sei se vou citá-la da maneira correta – mesmo tendo cursado essa faculdade por dois anos, não é meu forte (muito menos o filósofo que figura essa passagem). Mas ela é uma ilustração curiosa para uma provocação que me ocorreu enquanto assistia ao documentário "Amy", de Asif Kapadia, que já está em pré-estreia no Brasil.

    A aula que presenciava nem era sobre Nietzsche – aliás, já nem me lembro mais do que era. Mas, ao comentar o fato de uma aluna ter chegado atrasadíssima, e se desculpado jogando a responsabilidade no trânsito, o professor brincou que ela fazia como o "homem de Nietzsche" que percebe a História (com "H" maiúsculo mesmo) como algo que ele esquece de que faz parte, não apenas como espectador, mas também como agente. A aluna, frisava ele, reclama do trânsito como se ela, ao pegar o carro para ir para a aula, não contribuísse ela mesma com o congestionamento.

    Por que eu lembrei disso ao ver "Amy"? Já chegamos lá.

    Tive a felicidade de assistir a "Amy" há algumas semanas, fora do Brasil – quando estava numa passagem rápida por Paris. Esta é, talvez, a cidade que mais têm opções de cinema no mundo – e do mundo! Então, tive de colocar prioridades nas minhas escolhas. Antes de tudo, queria assistir à trilogia "As mil e uma noites", do diretor português Miguel Gomes – o mesmo que fez um dos filmes da minha vida, "Tabu", já comentado aqui. Por ser uma obra de mais de seis horas de duração – isso mesmo, mais de seis horas! –, e com um ritmo que, se eu chamasse de lento estaria sendo modesto, as chances de um trabalho assim passar no Brasil são pouquíssimas. Então, primeiro eu fui encarar os três volumes dessa saga de Portugal nos tempos de crise – o filme não é baseado no clássico do mesmo nome nem serve como uma adaptação de algumas histórias: usa apenas a estrutura dos contos de Sherazade, que eventualmente é também uma personagem (mas eu aqui divago, vamos deixar as "Mil e uma noites" para uma outra hora...).

    Em segundo lugar na lista de prioridades estava então o documentário "Amy" – que eu sabia que tinha grandes chances de estrear no Brasil (o lançamento está previsto para esta semana!), mas que mesmo assim... É Amy né minha gente! Qual é o fã que não estaria comigo nessa decisão?

    Fui com tanto afã ao cinema que nem me dei conta de que estava indo assistir ao trabalho de um diretor que já admirava: Asif Kapadia. Ele é o responsável pelo brilhante documentário "Senna", nosso piloto maior (um trabalho que também já comentei aqui). Só isso já seria motivo para eu gostar do filme, mas como entrei na sala sem me dar conta deste "detalhe" (que só percebi na hora os créditos – eu sei, falha minha...), a surpresa de encontrar um filme tão bem feito foi ainda maior.

    A primeira coisa que me ocorreu, já na primeira meia hora, é que ele fugia da armadilha básica que assola toda a nova onda de documentários, sobretudo quando fala de  de uma figura musical querida, como tantos que vêm sendo produzidos no Brasil (e por aí afora): "Amy" não tem a estrutura preguiçosa de colocar um depoimento de uma pessoa próxima ao artista e intercalar a sonora seguinte (também com outra pessoa próxima, num enquadramento muito parecido com o anterior) com um número musical. Já viu alguma produção assim recentemente? Então você sabe do que eu estou falando...

    "Amy" começa com uma imagem inédita até bem pouco tempo – e que foi, numa brilhante estratégia de marketing, viralizada há algumas semanas: Amy Whinehouse, com cara ainda de adolescente, cantado "Happy birthday to you" para um amigo, numa festa bem informal. Esse achado – que é uma benção para qualquer diretor que decide escolher como assunto um artista que já cresceu na era das imagens, selfies, Periscopes – é uma espécie de cápsula do tempo, onde é possível quase imaginar tudo que está para acontecer com ela: da mesma maneira que ali ouvimos naquelas imagens, num simples "Parabéns a você",  todo potencial do vozeirão que o mundo conheceria – e idolatraria –, um olhar mais observador pode perceber também a tragédia que estaria para se desenrolar...

    O clima é de festa, mas seu olhar é triste. Ela está "produzida", mas alguma coisa nos indica que ela não está feliz naquele corpo. E, mais grave de tudo, apesar de estar cercada de amigos queridos, que deveriam ser seu suporte para tempos mais turbulentos, sente-se, naquela jovem Amy Winehouse, uma necessidade de ser amada que jamais será preenchida.

    A narrativa do filme é cronológica – e até, sob um ponto de vista, bem careta. Mas o que é brilhante ali é escolha do que mostrar – e isso, sem dúvidas, é a mão do diretor que nos traz. Para uma figura pop que teve sua imagem superexposta durante toda sua carreira – e mesmo depois de sua morte – mostrar algo novo para os fãs era sim um desafio, que Kapadia cumpre com louvor. Para isso ele parece ter mergulhado não apenas nos arquivos pessoais e profissionais de Amy – foram inúmeros "making offs" de várias aparições e trabalhos que Amy fez na sua trajetória artística –, mas também num material que, muitas vezes, parecia ter saído de baús de fãs que seguiam a cantora.

    A fonte, no entanto, é menos importante do que o retrato que essas imagens nos ajudam a pintar. E que é, na primeira parte do filme, bem "cor-de-rosa". Aliás, como deve ser. Apesar de vir de um cenário familiar turbulento, Amy parece aceitar naturalmente todas as dificuldades da sua vida, inclusive aquelas que diziam respeito a sua arte. É emocionante ver como sua carreira – que, uma vez que a conhecemos já como artista consagrada, parece que foi construída facilmente – tropeçou em vários momentos, e quase não aconteceu. Por pouco ela não era mais um caso de talento desperdiçado – como, tenho certeza, vários que existem por aí. (Você tem a mesma sensação, do efeito da combinação necessária de sorte e talento para o sucesso artístico ao ler o livro "Apenas garotos", de Patty Smith, outro assunto sobre o qual já me debrucei aqui com entusiasmo, mas cá estou eu novamente a divagar...).

    Amy Winehouse e Blake Fielder-Civil em foto de 2007, quando ainda eram casadosMas num certo momento tudo deu certo – e a estrela de Amy começou realmente a brilhar. Esta etapa, o filme retrata com um ritmo diferente, quase eufórico – e você tem a incômoda sensação de que vai ser uma biografia "bonitinha" e que não vai a fundo nos problemas que ela tinha pela frente. Aí entra em cena Blake Fielder-Civil (foto) – a paixão da vida dela, ou, conforme você quiser interpretar, o cara que arruinaria sua vida.

    Há divergências. Muitas coisas que já li sobre "Amy" apontam o pai dela, Mitchell Winehouse, como "o grande culpado" da tragédia da filha – mais sobre Mitchell, culpa e Nietzsche, daqui a pouco. Mas eu ainda acho que Blake foi a pedra de toque da desgraça de Amy. E não só apenas porque foi ele – como o próprio Blake conta no seu depoimento em off (nenhuma pessoa entrevistada para o documentário aparece falando para as câmeras – quando isso acontece, é com material de arquivo) – que apresentou cocaína e heroína para sua namorada. O que vemos, ao longo do filme, é um cara totalmente manipulador, egoísta e, em última análise, bastante burro.

    A relação de Amy com Blake é meio que o pivô da sua degradação – pessoal e artística. E é a brutalidade dessa fase da vida da cantora que torna "Amy" uma obra ainda mais interessante. Jamais vi um painel tão honesto quanto este sobre como a mídia, a voracidade mórbida dos fãs, a manipulação de imagens, a estrutura corrosiva do show business, e a fragilidade de um artista podem se unir para destruir uma pessoa. Ah! Ia quase esquecendo de falar que ter um pai como Mitchell também ajuda bastante nessa decadência...

    Por mais que Amy o amasse – algo que fica claro em vários momentos do filme –, seu pai era sim uma figura destrutiva. Kapadia não chega ao ponto de acusar Mitchell de se aproveitar do sucesso da filha para ganhar dinheiro, mas nem precisa. As próprias imagens nos deixam concluir que ele era sim um aproveitador, colocando interesses próprios (e uma boa dose de ganância) na frente da saúde da filha.

    Sim, foi ele que, aos primeiros sinais de que Amy precisava de internação para tratar dos seus problemas com drogas, disse que a filha estava bem e que poderia continuar a cantar (lembra daquele verso de "Rehab", "And if my daddy thinks I'm fine", ou, "Se meu pai acha que eu estou bem"... Pois é... É autobiográfico!). Sim, foi ele que fechou shows e até turnês quando ela não tinha condições de subir ao palco. E sim, foi ele que, num raro momento em que Amy estava bem, limpa – numa temporada que passou na ilha de Santa Lucia, no Caribe –, chegou com uma equipe de TV de um reality que estava fazendo sobre ele mesmo (!), sobre ser pai de Amy Winehouse, e forçou a filha a aparecer na frente das câmeras. (A imagem dela pedindo para eles não filmarem e o pai sugerindo com gestos para a equipe algo como, "pode vir, eu conheço ela", é uma das mais chocantes do documentário).

    Mas a atitude predatória de Mitchell, ainda que inconcebivelmente exagerada, não é exatamente singular. Todos em torno de Amy – até mesmo seu segurança, que por vezes mostra uma certa candura e piedade com relação à patroa – estão lá para tirar um pedaço dela. Inclusive você – fã incontestável, ou mero observador da tragédia alheia. E aqui chegamos finalmente à referência de Nietzsche, que aquele professor de filosofia fez numa certa aula a que eu assisti.

    Como o homem que observa a História sem se dar conta de que ele também faz parte dela - e como a aluna que chegou atrasada reclamando do trânsito sem perceber que ela mesma, ao vir de carro, contribuía para o engarrafamento –, nós saímos da sessão de "Amy" horrorizados com o que "a mídia" fez com a cantora. Mais de uma vez, vemos ela tentando se locomover de um lugar para outro, apenas para ser violentada com uma explosão de flashes de papparazzi – que, claro, iriam vender suas imagens para sites e revistas sensacionalistas (ou talvez até para uma imprensa mais "respeitada"). E que, claro, você iria consumir quase sem pensar, com a mesma curiosidade mórbida que normalmente você condena nos outros. Mas se esquece de que também faz parte desse grupo de pessoas tão peculiares: os humanos.

    Quando digo nós, coloco-me também nessa turma. Como fã e até como jornalista (fui a Londres dias após sua morte, até a porta de sua casa, fazer uma reportagem), fiz parte desse massacre  – quase sem pensar. Mas aí vem um filme como esse de Asif Kapadia e nos faz lembrar, de maneira sutil e inteligente, que somos hoje uma sociedade estúpida, sem assunto, e que, mais que nunca, dependemos do sangue de pessoas brilhantes como Amy Winehouse para emprestar algum sentido para nossas vidas.

Autores

  • Zeca Camargo

    Mineiro de Uberaba, o apresentador do ‘Fantástico’ começou a carreira no jornal ‘Folha de S. Paulo’, participou da primeira turma da MTV no Brasil e foi editor da revista “Capricho”.

Sobre a página

Em seu blog, Zeca Camargo transita pelo universo da cultura e discute músicas, filmes e exposições.